Crônica: Minha terra, minha casa e minha gente
Viriato Corrêa
PIRAPEMAS, o povoado em que eu nasci,
era um dos lugarejos mais pobres e mais humildes do mundo. Ficava à margem do
Itapicuru, no Maranhão, no alto da ribanceira do rio.
Uma ruazinha apenas, com vinte ou
trinta casas, algumas palhoças espalhadas pelos arredores e nada mais. Nem
igreja, nem farmácia, nem vigário. De civilização — a escola, apenas.
A rua e os caminhos tinham mais bichos
do que gente. Criava-se tudo à solta: as galinhas, os porcos, as cabras, os
carneiros e os bois.
Vila pacata e simples de gente simples
e pacata. Parecia que ali as criaturas formavam uma só família. Se alguém
matava um porco, a metade do porco era para distribuir pela vizinhança. Se um
morador não tinha em casa café torrado para obsequiar uma visita, mandava-o
buscar, sem-cerimônia, ao vizinho.
A melhor casa de telha era a da minha
família, com muitos quartos e largo avarandado na frente e atrás. Chamavam-lhe
a casa-grande por ser realmente a maior do povoado.
Para aquela gente paupérrima, éramos
ricos.
Meu pai tinha umas duzentas cabeças de
gado no campo, uma engenhoca de moer cana, uma máquina de descaroçar algodão e
uma casa de negócios, em que vinham comprar moradores até de quinze ou vinte
léguas distantes.
Não havia no lugarejo ninguém mais
importante do que meu pai. Era tudo: autoridade policial, juiz, conselheiro,
até médico.
A sua figura inspirava respeito; a sua
presença serenava discórdias. Se havia uma desordem, mal ele chegava à desordem
acabava. Bastava que desse razão a uma pessoa, para que todo mundo afirmasse
que essa pessoa é que estava com a razão. Os seus conselhos faziam marido e
mulher, desunidos, voltarem a viver juntos. Ninguém tomava um remédio sem lhe
perguntar que remédio devia tomar.
Era um homem inculto, mas com uma
inteligência tão viva, que se acreditava ter ele cursado escolas. E, ao lado
disso, uma alma aberta, franca, alegre, jovial e generosa, que fazia amigos ao
primeiro contato.
Nossa casa vivia cheia de gente. Gente
da família, gente do povoado, gente de fora.
Meus pais eram padrinhos de quase toda
a meninada dos arredores e o maior prazer de minha mãe era criar.
Se uma de suas comadres morria,
deixando filhos pequeninos, ela, a pretexto de que as madrinhas devem ser
segundas mães, ia buscá-los para que não morressem de abandono e de fome.
Às vezes, pela porta adentro, nos
entravam verdadeiras braçadas de fedelhos, enchendo os quartos de alaridos e de
berros. E minha mãe os criava com os mesmos cuidados e os mesmos carinhos com
que criava os filhos.
Os “gaiolas” (vaporezinhos de roda que
faziam a navegação do rio) paravam no povoado para se abastecer de lenha e para
embarcar e desembarcar mercadorias e passageiros.
Não sei por que, os fazendeiros do
sertão, quando tinham de tomar passagem para a capital, preferiam aquele porto
insignificante. Rara era a semana em que não chegava gente de fora à povoação.
E, como a nossa casa era a maior de
todas, era nela que eles se hospedavam.
No interior do Brasil a hospitalidade é
um dever sagrado que se cumpre religiosamente. Nossa casa vivia apinhada de
criaturas estranhas vindas de longe.
Às vezes, tarde da noite, ouviam-se
rumores no terreiro. Eram hóspedes pedindo pousada.
Ao hóspede que chega não se pergunta de
que precisa. Quem vem de longe, através de caminhos difíceis e desertos,
certamente tem cansaço e fome. Necessita de alimento e de cama.
À nossa porta, ora à meia-noite, ora
mais tarde, chegavam frequentemente dez, doze, quinze pessoas desconhecidas. A
essa hora acordavam meu pai e minha mãe para mandar fazer comida para os
hóspedes.
Em certos dias, ao amanhecer, eu
despertava num quarto que não era o meu e no meio de um punhado de crianças. É
que nem sempre havia redes para todas as pessoas de fora. A família
desalojava-se: dormiam duas ou três pessoas juntas, para que não faltasse
acomodação aos estranhos.
Em outras ocasiões, quando os hóspedes
chegavam, o "gaiola" havia passado na véspera. Só havia outro, dez ou
quinze dias depois.
Dez ou quinze dias ficavam famílias
inteiras em nossa casa, morando e comendo tranquilamente.
Ao se despedirem apertavam a mão de
minha mãe, apertavam a mão de meu pai, dizendo-lhes "obrigado" e nada
mais.
É que nada mais lhes era permitido. No
sertão do Brasil, quem perguntar o preço da hospedagem ofende aquele que a deu.
A hospitalidade por lá é uma religião e
ninguém se furta a um dever religioso.
Viriato Corrêa. Cazuza.
27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.
Entendendo a crônica:
01 – Qual é o cenário descrito
na crônica "Minha terra, minha casa e minha gente" de Viriato Corrêa?
O cenário descrito é o povoado de
PIRAPEMAS, localizado à margem do Rio Itapicuru, no Maranhão.
02 – Como era a vida no
povoado de PIRAPEMAS, de acordo com a crônica?
A vida em
PIRAPEMAS era simples e pacata, com poucas casas, ausência de infraestrutura, e
os habitantes viviam em harmonia, compartilhando recursos e ajudando-se
mutuamente.
03 – Qual era o papel do pai
do autor na comunidade de PIRAPEMAS?
O pai do autor
desempenhava múltiplos papéis na comunidade, sendo considerado uma figura de
autoridade policial, juiz, conselheiro e até médico. Ele era uma pessoa
respeitada e influente.
04 – Como a crônica descreve a
hospitalidade na região do sertão do Brasil?
A crônica destaca
a hospitalidade como um dever sagrado cumprido religiosamente no sertão do
Brasil. A casa do autor era frequentemente visitada por estranhos, e oferecer
comida e abrigo a viajantes era uma prática comum.
05 – Por que os fazendeiros do
sertão preferiam o porto insignificante de PIRAPEMAS para tomar passagem para a
capital?
A crônica não
fornece uma explicação específica, mas sugere que os fazendeiros preferiam
PIRAPEMAS devido à sua hospitalidade e à tradição de receber bem os viajantes.
06 – Como a mãe do autor
demonstrava seu envolvimento com a comunidade?
A mãe do autor
era madrinha de muitas crianças da região e tinha o hábito de acolher órfãos,
cuidando deles como se fossem seus próprios filhos. Ela era ativa na criação e
educação das crianças da comunidade.
07 – Quais são as
características da casa do autor em PIRAPEMAS?
A casa do autor
era a maior do povoado, chamada de casa-grande, com muitos quartos e uma ampla
varanda. A família do autor era considerada rica pelos padrões locais, com
posses como cabeças de gado, uma engenhoca de moer cana e uma máquina de
descaroçar algodão.