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sexta-feira, 6 de setembro de 2024

CONTO: A AVÓ, A CIDADE E O SEMÁFORO - MIA COUTO - COM GABARITO

 CONTO: A avó, a cidade e o semáforo

               Mia Couto

        Quando ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Ndzima emitiu as maiores suspeitas:

        -- E vai ficar em casa de quem?

        -- Fico no hotel, avó.

        -- Hotel? Mas é casa de quem?

        Explicar, como? Ainda assim, ensaiei: de ninguém, ora. A velha fermentou nova desconfiança: uma casa de ninguém?

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjCqliSHZim7Zwd1YDElnlt3Fxj5o87F8OwkugZ3y4Q_PCf1jNX-2D6WtCRW0dfPKUHvVhn74RABpdcd6rO-ogtLy2mrS-7xZYfSv2UWBBY_j1anVvgJAugmnFOcV9aJ_zr6oJ1mO4Y9Li7ni6BCDzpRK9HoqNIKzTCEN0oE-OWSD1NIq2E_Rc7ohGVryQ/s320/casa-de-av%C3%B3.jpg

        -- Ou melhor, avó: é de quem paga – palavreei, para a tranquilizar.

        Porém, só agravei – um lugar de quem paga? E que espíritos guardam uma casa como essa?

        A mim me tinha cabido um prêmio do Ministério. Eu tinha sido o melhor professor rural. E o prêmio era visitar a grande cidade. Quando, em casa, anunciei a boa nova, a minha mais-velha não se impressionou com meu orgulho. E franziu a voz:

        -- E, lá, quem lhe faz o prato?

        -- Um cozinheiro, avó.

        -- Como se chama esse cozinheiro?

        Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso, nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado ato. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegurava a pureza da peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anônima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinhador de que nem o rosto se conhece.

        -- Cozinhar não é serviço, meu neto – disse ela. – Cozinhar é um modo de amar os outros.

        Ainda tentei desviar-me, ganhar uma distração. Mas as perguntas se somavam, sem fim.

        -- Lá, aquela gente tira água do poço?

        -- Ora, avó...

        -- Quero saber é se tiram todos do mesmo poço...

        Poço, fogueira, esteira: o assunto pedia muita explicação. E divaguei, longo e lento. Que aquilo, lá, tudo era de outro fazer. Mas ela não arredou coração. Não ter família, lá na cidade, era coisa que não lhe cabia. A pessoa viaja é para ser esperado, do outro lado a mão de gente que é nossa, com nome e história. Como um laço que pede as duas pontas. Agora, eu dirigir-me para lugar incógnito onde se deslavavam os nomes! Para a avó, um país estrangeiro começa onde já não reconhecemos parente.

        -- Vai deitar em cama que uma qualquer lençolou?

        Na aldeia era simples: todos dormiam despidos, enrolados numa capulana ou numa manta conforme os climas. Mas lá, na cidade, o dormente vai para o sono todo vestido. E isso minha avó achava de mais. Não é nus que somos vulneráveis. Vestidos é que somos visitados pelas valoyi e ficamos à disposição dos seus intentos. Foi quando ela pediu. Eu que levasse uma moça da aldeia para me arrumar os preceitos do viver.

        -- Avó, nenhuma moça não existe.

        Dia seguinte, penetrei na penumbra da cozinha, preparado para breve e sumária despedida, quando deparei com ela, bem sentada no meio do terreiro. Parecia estar entronada, a cadeira bem no centro do universo. Mostrou-me uns papéis.

        -- São os bilhetes.

        -- Que bilhetes?

        -- Eu vou consigo, meu neto.

        Foi assim que me vi, acabrunhado, no velho autocarro. Engolíamos poeiras enquanto os alto-falantes espalhavam um roufenho ximandjemandje. A avó Ndzima, gordíssima, esparramada no assento, ia dormindo. No colo enorme, a avó transportava a cangarra com galinhas vivas. Antes de partir, ainda a tentara demover: ao menos fossem pouquitas as aves de criação.

        -- Poucas como? Se você mesmo disse que lá não semeiam capoeiras.

        Quando entramos no hotel, a gerência não autorizou aquela invasão avícola. Todavia, a avó falou tanto e tão alto que lhe abriram alas pelos corredores. Depois de instalados, Ndzima desceu à cozinha. Não me quis como companhia. Demorou tempo de mais. Não poderia estar apenas a entregar os galináceos. Por fim, lá saiu. Vinha de sorriso:

        -- Pronto, já confirmei sobre o cozinheiro...

        -- Confirmou o quê, avó?

        -- Ele é da nossa terra, não há problema. Só falta conhecer quem faz a sua cama.

        Aconteceu, depois. Chegado do Ministério, dei pela ausência da avó. Não estava no quarto, nem no hotel. Me urgenciei, aflito, pelas ruas no encalço dela. E deparei com o que viria a repetir-se todas tardes, a vovó Ndzima entre os mendigos, na esquina dos semáforos. Um aperto me minguou o coração: pedinte, a nossa mais-velha?! As luzes do semáforo me chicoteavam o rosto:

        -- Venha para casa, avó!

        -- Casa?!

        -- Para o hotel. Venha.

        Passou-se o tempo. Por fim, chegou o dia do regresso à nossa aldeia. Fui ao quarto da vovó para lhe oferecer ajuda para os carregos. Tombou-me o peito ao assomar à porta: ela estava derramada no chão, onde sempre dormira, as tralhas espalhadas sem nenhum propósito de serem embaladas.

        -- Ainda não fez as malas, avó?

        -- Vou ficar, meu neto.

        O silêncio me atropelou, um riso parvo pincelando-me o rosto.

        -- Vai ficar, como?

        -- Não se preocupe. Eu já conheço os cantos disto aqui.

        -- Vai ficar sozinha?

        -- Lá, na aldeia, ainda estou mais sozinha.

        A sua certeza era tanta que o meu argumento murchou. O autocarro demorou a sair. Quando passamos pela esquina dos semáforos, não tive coragem de olhar para trás.

        O verão passou e as chuvadas já não espreitavam os céus quando recebi encomenda de Ndzima. Abri, sôfrego, o envelope. E entre os meus dedos uns dinheiros, velhos e encarquilhados, tombaram no chão da escola. Um bilhete, que ela ditara para que alguém escrevesse, explicava: a avó me pagava uma passagem para que eu a visitasse na cidade. Senti luzes me acendendo o rosto ao ler as últimas linhas da carta: “... agora, neto, durmo aqui perto do semáforo. Faz-me bem aquelas luzinhas, amarelas, vermelhas. Quando fecho os olhos até parece que escuto a fogueira, crepitando em nosso velho quintal...”.

COUTO, Mia. A avó, a cidade e o semáforo. In: COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 125-129.

Fonte: Linguagens em Interação – Língua Portuguesa – Ensino Médio – Volume Único – Juliana Vegas Chinaglia – 1ª edição, São Paulo, 2020 – IBEP – p. 258-260.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Capulana: pano utilizado tradicionalmente pelas mulheres de Moçambique e de outros países da África para diversas funções, como saia, adereço dos cabelos, toalha, cortina, entre outras.

·        Valoyi: na tradição moçambicana, são feiticeiras más que atormentam os indivíduos à noite.

·        Roufenho: fanho, que fala pelo nariz.

·        Ximandjemandje: ritmo musical.

·        Cangarra: cesto de palha.

·        Capoeira: terra preparada para cultivo.

02 – Qual foi a reação inicial da avó Ndzima ao saber que o neto ia para a cidade?

      A avó Ndzima ficou desconfiada e fez muitas perguntas, demonstrando preocupação com a segurança e os costumes do lugar onde o neto ficaria.

03 – Por que a avó Ndzima se preocupou com quem iria cozinhar para o neto na cidade?

      A avó Ndzima acreditava que cozinhar era um ato de amor e intimidade, e temia que um cozinheiro desconhecido pudesse colocar veneno na comida ou não preparar os alimentos com a devida ternura.

04 – O que o neto ganhou como prêmio e por que motivo?

      Ele ganhou um prêmio do Ministério por ter sido o melhor professor rural, que incluía uma visita à grande cidade.

05 – Por que a avó insistiu em acompanhar o neto na viagem à cidade?
      A avó Ndzima temia que o neto estivesse vulnerável em um lugar desconhecido e queria garantir que ele estivesse bem cuidado.

06 – Qual foi a reação do hotel em relação às galinhas que a avó levou?

      Inicialmente, a gerência do hotel não autorizou a entrada das galinhas, mas depois de muita insistência da avó, permitiram que ela as levasse.

07 – Por que a avó Ndzima se aproximou dos mendigos na cidade?

      A avó encontrou uma espécie de conforto e pertencimento entre os mendigos, sentindo-se mais próxima deles do que dos outros habitantes da cidade.

08 – O que a avó fez quando soube que o cozinheiro do hotel era da terra dela?

      Ela se tranquilizou, acreditando que, por ser da mesma terra, o cozinheiro prepararia a comida com o cuidado e o amor que ela julgava necessário.

09 – Por que a avó decidiu ficar na cidade em vez de voltar para a aldeia?

      A avó sentiu que estava mais sozinha na aldeia do que na cidade e que já conhecia bem os cantos do novo lugar.

10 – Qual foi a reação do neto ao saber que a avó queria ficar na cidade?

      Ele ficou surpreso e sem palavras, pois não esperava que a avó quisesse ficar sozinha na cidade.

11 – Qual o significado das luzes do semáforo para a avó no final da história?

      As luzes do semáforo a faziam lembrar da fogueira no quintal da aldeia, trazendo-lhe uma sensação de conforto e nostalgia, como se estivesse mais próxima de suas raízes.

 

 

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

CONTO: O BEIJO DA PALAVRINHA - MIA COUTO - COM GABARITO

 CONTO: O BEIJO DA PALAVRINHA

                Mia Couto

Era uma vez uma menina que nunca vira o mar. Chamava-se Maria Poeirinha. Ela e a sua família eram pobres, viviam numa aldeia tão interior que acreditavam que o rio que ali passava não tinha nem fim nem foz.

 

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfSFA-1IuQ65Ifba5bopuEL30xtHzRqQsWL00tnk_cpB_mLHzwHOH0tJasSPbdvG-YazzlCj6F5t098CGTB_0kbqAWUDDnfwK_d0CK5CCxzHMEiPCQW0naOrk_p28fqQskWFIwr_7yzkjzfSGDpcq1hovVFvQ3PmFQTHGheFjDDWCV6Ga1033r5sfR3A8/s354/mar.jpg

       Poeirinha só ganhara um irmão, o Zeca Zonzo, que era desprovido de juízo. Cabeça sempre no ar, as ideias lhe voavam como balões em final de festa. Na miséria em que viviam, nada destoava. Até Poeirinha tinha sonhos pequenos, mais de areia do que castelos.

       Às vezes sonhava que ela se convertia em rio e seguia com passo lento, como a princesa de um distante livro, arrastando um manto feito de remoinhos, remendos e retalhos. Mas depressa ela saía do sonho, pois seus pés descalços escaldavam na areia quente. E o rio secava, engolido pelo chão.

       Um certo dia, chegou à aldeia o Tio Jaime Litorânio, que achou grave que os seus familiares nunca tivessem conhecido os azuis do mar.

       Que a ele o mar lhe havia aberto a porta para o infinito. Podia continuar pobre mas havia, do outro lado do horizonte, uma luz que fazia a espera valer a pena. Deste lado do mundo, faltava essa luz que nasce não do Sol, mas das águas profundas.

       A fome, a solidão, a palermice do Zeca, tudo isso o Tio atribuía a uma única carência: a falta de maresia. Há coisas que se podem fazer pela metade, mas enfrentar o mar pede a nossa alma toda inteira. Era o que dizia Jaime.

      - Quem nunca viu o mar não sabe o que é chorar!

       Certa vez, a menina adoeceu gravemente. Num instante, ela ficou vizinha da morte. O Tio não teve dúvida: teriam que a levar à costa.

      Para que se curasse, disse ele. Para que ela renascesse tomando conta daquelas praias de areia e onda. E descobrisse outras praias dentro dela.

       - Mas o mar cura assim tão de verdade?

       - Vocês não entendem? - respondia ele. - Não há tempo a perder. Metam a menina no barco que a corrente a leva em salvadora viagem.

       Contudo, a menina estava tão fraca que a viagem se tornou impossível. Todos se aproximavam da cabeceira e ali ficavam sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. A mãe pegou nas mãos da menina e entoou as velhas melodias de embalar. Em vão. A menina apenas ganhava palidez e o seu respirar era o de um fatigado passarinho. Já se preparavam as finais despedidas quando o irmão Zeca Zonzo trouxe um papel e uma caneta.

       - Vou-lhe mostrar o mar, maninha.

      Todos pensaram que ele iria desenhar o oceano. Que iria azular o papel e no meio da cor iria pintar uns peixes. E o Sol em cima, como vela em bolo de aniversário. Mas não. Zonzo apenas rabiscou com letra gorda a palavra

                                             MAR

      Apenas isso: a palavra inteira e por extenso.

       O menino ficou olhando para a folha parecendo que não entendia o que ele mesmo escrevera.  Antes mesmo que ele dissesse alguma coisa, a irmã murmurou, em débil suspiro:

       -Não vale a pena, mano Zonzo. Eu já não distingo letra, a luz ficou cansada que já não se consegue levantar.

       -Não importa, Poeirinha. Eu lhe conduzo o dedo por cima do meu.

       Os pais chamaram o moço à razão, ele que poupasse a irmã daquela tontice e que a deixasse apenas respirar. Mas Zeca Zonzo fingiu não escutar. Ele tomou na sua mão os dedos magritos de Maria Poeirinha e os guiou por cima dos traços que desenhara.

       -Vês esta letra, Poeirinha?

      -Estou tocando sombras, só sombras, só.

      Zeca Zonzo levantou os dedos da irmã e soprou neles como se corrigisse algum defeito e os ensinasse a decifrar a lisa brancura do papel.

      -Experimente outra vez, mana. Com toda a atenção. Agora, já está sentindo?

     -Sim. O meu dedo já está a espreitar.

     -E que letra é?

      E sorriram os dois, perante o espanto dos presentes.  Como se descobrissem algo que ninguém mais sabia. E não havia motivo para tanto espanto. Pois a letra m é feita de quê?

      É feita de vagas, líquidas linhas que sobem e descem.

      E Poeirinha passou o dedo a contornar as concavidades da letrinha.

     -É isso, manito. Essa letra é feita por ondas. Eu já as vi no rio.

     -E essa outra letrinha, essa que vem a seguir?

     Essa a seguir é um  a

     É uma ave, uma gaivota pousada nela própria, enrodilhada perante a brisa fria.

      Em volta todos se haviam calado. Os dois em coro decidiram não tocar mais na letra para não espantar o pássaro que havia nela.

     -E a seguinte letrinha?

     E os dedos da menina magoaram-se no r duro, rugoso, com suas ásperas arestas.

     O Tio Jaime Litorâneo, lágrima espreitando nos olhos, disse:

     - Calem-se todos: já se escuta o marulhar!

      Então do leito de Maria Poeirinha se ergueu a gaivota branca, como se fosse um lençol agitado pelo vento. Era Maria Poeira que se erguia? era um simples remoinho de areia branca?

Ou era ela seguindo no rio, debaixo do manto feito de remoinhos, remendos e retalhos?

      Ainda hoje, tantos anos passados, Zeca Zonzo, apontando o rosto da sua irmãzinha na fotografia, clama e reclama.

          -Eis minha mana poeirinha que foi beijada pelo mar. E se afogou numa palavrinha.

Entendendo o texto

01. Qual o nome do protagonista do conto?

a) Maria Litorânio

b) Maria Poeirinha

c) Zeca Zonzo

d) Tio Jaime.

    02. O que acreditou a família de Maria Poeirinha sobre o rio que passava pela aldeia?

         a) Que era um rio mágico

         b) Que não tinha fim nem foz

         c) Que era o rio da vida

         d) Que era um rio poluído

  03. Quem acreditou que a falta de maresia era causa da miséria da família de Maria Poeirinha?

       a) A mãe do protagonista

       b) O Tio Jaime Litorânio

       c) Zeca Zonzo

       d) O pai da protagonista

   04. Como Zeca Zonzo tentou mostrar o mar para Maria Poeirinha quando ela estava doente?

       a) Desenhando um oceano no papel

       b) Levando-a até a costa

       c) Cantando canções sobre o mar

       d) Escrevendo a palavra "MAR" no papel

   05. O que Zeca Zonzo fez para ajudar a irmã a sentir o mar enquanto ela estava doente?

       a) Cantava canções de embalar

       b) Soprava nos dedos dela

       c) Desenhava peixes

       d) Contava histórias sobre o mar

     06. Como Maria Poeirinha falou a letra "m" que Zeca Zonzo escreveu no papel?

        a) Feita de vagas, linhas líquidas que sobem e descem

        b) Uma ave, uma gaivota pousada nela própria

        c) Rugosa, com arestas ásperas

       d) Uma letra que vem a seguir

     07. Qual a letra que Maria Poeirinha comparou a uma ave, uma gaivota pousada nela própria?

         a) m

         b) a

         c) r

        d) d

    08. O que o Tio Jaime Litorânio afirmou ao ouvir a letra "r" sendo tocada por Maria Poeirinha?

         a) "Calem-se todos: já se escuta o marulhar!"

         b) "Essa letra é feita por ondas. Eu já as vi no rio."

         c) "Você não entende? Não há tempo a perder."

         d) "O mar cura assim tão de verdade?"

     09. Como Maria Poeirinha se elevou o leito no final do conto?

          a) Como uma gaivota branca

          b) Como um remoinho de areia branca

          c) Como uma onda gigante

         d) Como um lençol agitado pelo vento

   10. O que Zeca Zonzo afirma sobre a irmã no final do conto?

        a) Que ela foi beijada pelo sol

        b) Que ela se afogou no rio

        c) Que ela foi beijada pelo mar e se afogou numa palavrinha

        d) Que ela nunca viu o mar

 

 

 

 

 

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

CONTO: O PERFUME - MIA COUTO - COM GABARITO

 Conto: O perfume

             Mia Couto

        – Hoje vamos ao baile!

        Justino assim se anunciou, estendendo em suas mãos um embrulho cor de presente. Glória, sua esposa, nem soube receber. Foi ele quem desatou os nós e fez despontar do papel colorido o vestido não menos colorido. A mulher, subvivente, somava tanta espera que já esquecera o que esperava. Justino guardava ferrovias, seu tempo se amalgava, fumo dos fumos, ponteiro encravado em seu coração. Entre marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos cansaços, desnamoros, ramerrames. O amor, afinal, que utilidade tem?

        De onde o espanto de Glória, deixando esparramejar o vestido sobre seu colo. Que esperava ela, por que não se arranjava? O marido, parecia ter ensaiado brincadeira. Que lhe acontecera? O homem sempre dela se ciumara, quase ela nem podia assomar à janela, quanto mais. Glória se levantou, ela e o vestido se arrastaram mutuamente para o quarto. Incrédula e sonambulenta, arrastou o pente pelo cabelo. Em vão. O desleixo se antecipara fazendo definitivas tranças. Lembrou as palavras de sua mãe: mulher preta livre é a que sabe o que fazer com o seu próprio cabelo. Mas eu, mãe: primeiro, sou mulata. Segundo, nunca soube o que é isso de liberdade. E riu-se: livre: Era palavra que parecia de outra língua. Só de a soletrar sentia vergonha, o mesmo embaraço que experimentava em vestir a roupa que o marido lhe trouxera. Abriu a gaveta, venceu a emperrada madeira. E segurou o frasco de perfume, antigo, ainda embalado. Estava leve, o líquido havia evaporado. Justino lhe havia dado o frasco, em inauguração do namoro, ainda ela meninava. Em toda a vida, aquele fora o único presente. Só agora se somava o vestido. Espremeu o vidro do cheiro, a ordenhar as últimas gotas. Perfumei o quê com isto, se perguntou lançando o frasco no vazio da janela.

        – Nem sei o gosto de um cheiro.

        Escutou o velho vidro se estilhaçar no passeio. Voltou à sala, vestido se desencontrando com o corpo. As bainhas do pano namoriscavam os sapatos. Temia o comentário do marido sempre lhe apontando ousadias. Desta vez, porém, ele lhe olhou de modo estranho, sem parecer crer. Puxou-a para si e lhe ajeitou as formas, arrebitando o pano, avespando-lhe a cintura. Depois, perguntou:

        – Então não passa um arranjo no rosto?

        – Um arranjo?

        – Sim, uma cor, uma tinta.

        Ela se assombrou. Virou as costas e entrou na casa de banho, embasbocada. Que doença súbita dera nele? Onde diabo parava esse bâton, havia anos que poeirava naquela prateleira? Encontrou-o, minúsculo, gasto nas brincadeiras dos miúdos. Passou o lápis sobre os lábios. Leve, uma penumbra de cor. Carregue mais, faça valer os vermelhos. Era o marido, no espelho. Ela ergueu o rosto, desconhecida.

        – Vamos ao baile, sim. Você não costumava dançar, antes?

        – E os meninos?

        – Já organizei com o vizinho, não se preocupa.

        E foram. Justino ainda teve que tchovar a carrinha. Ela, como sempre, desceu para ajudar. Mas o marido recusou. Desta vez, não. Ele sozinho empurrava, onde é que se vira?

        Chegaram. Glória parecia não dar conta da realidade. Se deixou no assento da velha carrinha. Justino cavalheirou, mão pronta, gesto preso abrindo portas. O baile estava concorrido, cheio pelas costuras. A música transpirava pelo salão, em tonturas de casais. Os dois se sentaram numa mesa. Os olhos de Glória não exerciam. Apenas sombreavam pela mesa, pré-colegiais.

        Então, se aproximou um homem, em boa postura, pedindo ao guarda-freio lhe desse licença de sua esposa para um passo respeitoso. Os olhos aterrados dela esperaram cair a tempestade. Mas não. Justino contemplou o moço e lhe fez amplo sinal de anuência. A esposa arguiu:

        – Mas eu preferia dançar primeiro com meu marido.

        – Você sabe que eu nunca danço…

        E como ela ainda hesitasse ele lhe ordenou quase em sigilo de ternura: Vá, Glorinha, se divirta!

        E ela foi, vagarosa, espantalhada. Enquanto rodava ela fixava o seu homem sentado na mesa. Olhou fundo os seus olhos e viu neles um abandono sem nome, como esse vapor que restara de seu perfume. Então, entendeu: o marido estava a oferecê-la ao mundo. O baile, aquele convite, eram uma despedida. Seu peito confirmou a suspeita quando viu o marido se levantar e aprontar a saída. Ela interrompeu a dança e correu para Justino.

        – Onde vai, marido?

        – Um amigo me chamou, lá fora. Já volto.

        – Vou consigo, Justino.

        – Aquilo lá fora não é lugar das mulheres. Fique, dance com o moço. Eu já venho.

        Glória não voltou à dança. Sentada na reservada mesa, levantou o copo do marido e nele deixou a marca de seu bâton. E ficou a ver Justino se afastando entre a fumarada do salão, tudo se comportando longe. Vezes sem conta ela vira esse afastamento, o marido anonimado entre as neblinas dos comboios. Desta vez, porém, seu peito se agitou, em balanço de soluço. No limiar da porta, Justino ainda virou o rosto e demorou nela um último olhar. Com surpresa, ele viu a inédita lágrima, cintilando na face que ela ocultava. A lágrima é água e só a água lava tristeza. Justino sentiu o tropeço no peito, cinza virando brasa em seu coração. E fechou a noite, a porta decepando aquela breve desordem. Glória colheu a lágrima com dobra do próprio vestido. De quem, dentro dela mesma, ela se despedia?

        Saiu do baile, foi de encontro às trevas. Ainda procurou a velha carrinha. Ansiou que ela anda ali estivesse, necessitada de empurro. Mas de Justino não restava vestígio. Voltou a casa, sob o crepitar dos grilos. A meio do carreiro se descalçou e seus pés receberam a carícia da areia quente. Olhou o estrelejo nos céus. As estrelas são os olhos de quem morreu de amor. Ficam nos contemplando de cima, a mostrar que só o amor concede eternidades.

        Chegou a casa, cansada a ponto de nem sentir cansaços. Por instantes, pensou encontrar sinais de Justino. Mas o marido, se passara por ali, levara seu rastro. A Glória não lhe apeteceu a casa, magoava-lhe o lar como retrato de ente falecido. Adormeceu nos degraus da escada.

        Acordou nas primeiras horas da manhã, tonteando entre sono e sonho. Porque, dentro dela, em olfatos só da alma, ela sentiu o perfume. Seria o quê? Eflúvios do velho frasco? Não, só podia ser um novo presente, dádiva da paixão que regressava.

        – Justino?!

        Em sobressalto, correu para dentro da casa. Foi quando pisou os vidros, estilhaçados no sopé de sua janela. Ainda hoje restam, indeléveis pegadas de quando Glória estreou o sangue de sua felicidade.

COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 31-35.

      Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição – São Paulo, 2016 – Moderna – p. 17-19.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Ramerrames: (palavra onomatopaica) rotinas, repetições fastidiosas;

·        Assomar: aparecer, surgir;

·        Passeio: calçada;

·        Casa de banho: banheiro;

·        Miúdos: crianças;

·        Tchovar: empurrar;

·        Carrinha: carro utilitário (caminhonete, perua);

·        Presto: rápido;

·        Guarda-freio: funcionário da estrada de ferro que checa e manobra os freios do trem;

·        Anuência: aprovação;

·        Arguiu: retrucou;

·        Comboios: vagões, trem;

·        Apeteceu: agradou;

·        Eflúvios: aromas;

·        Indeléveis: que não podem ser apagados.

02 – O que chamou sua atenção na linguagem utilizada por Mia Couto?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A mistura da linguagem neologismos e coloquialismos, desconstrói ditos populares, etc.

03 – O conto compõe a coletânea intitulada Estórias abensonhadas. Alguns escritores diferenciam estória (narrativa ficcional) de história (narrativa não ficcional). Relacione essa diferença ao neologismo abensonhada e explique o título dessa coletânea de Mia Couto.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O título sugere que a obra composta de contos ficcionais, inventadas (estórias); o adjetivo abensonhadas é uma fusão das palavras abensonhadas e sonhadas.

04 – Ainda que o narrador não tenha caracterizado os personagens diretamente, podemos inferir informações sobre o perfil psicológico deles. Descreva Justino e Glória com base nas informações do texto e em seu conhecimento de mundo.

      Justino trabalha na ferrovia como guarda-freio e mantém com Glória um casamento marcado pelo tédio, pelo cansaço e pelo desânimo. Ele tem ciúme da esposa e a impede de ser livre, acusando-a de ousada. Glória é uma mulher sofrida que leva uma vida difícil, sem liberdade e sem sonhos, como o esposo. Vítima do imenso ciúme de Justino, parece ter perdido a vaidade: veste-se de maneira discreta, não usa maquiagens ou perfumes e não se relaciona com outros homens.

05 – No segundo parágrafo, o narrador dá informações importantes para o desenrolar do texto.

a)   Que ditado popular é citado pelo narrador?

O dito popular “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.

b)   Esse ditado mantém o sentido em que é usualmente empregado? Explique.

Não. Esse dito popular aparecerá no conto com outro sentido: “Entre marido e mulher o tempo metera a colher”. O tempo, e não um terceiro, será responsável pelo “ranço”, pelo “cansaço”, pelos “desnamoros”, pelos “ramerrames” que caracterizam a relação entre Justino e Glória.

c)   A progressão textual é um processo pelo qual o texto é construído com o acréscimo de novos dados ligados àqueles que já haviam sido introduzidos. Explique como se dá a progressão textual no conto citando os elementos que comprovam o dito popular mencionado no segundo parágrafo pelo narrador.

O dito popular, ressignificado no conto como “Entre marido e mulher o tempo metera a colher”, será retomado de diferentes formas ao longo do texto e contribuirá para sua progressão. O tempo, “roubador de espantos”, provocará o afastamento gradual de Justino e Glória e “resfriará” o casamento deles. Além disso, fará com que Glória não saiba mais receber um presente do marido e será responsável também pelas “definitivas tranças” no cabelo de Glória, emperrará a madeira da gaveta, símbolo do esquecimento do perfume, evaporará o perfume “antigo”, produzirá “miúdos” que gastarão o batom em brincadeiras, transformará Glorinha em Glória e mudará o olhar de Justino.

06 – O perfume é peça importante para a construção do sentido do texto.

a)   Relacione as ações de Glória aos momentos em que ele é citado.

O perfume é citado no texto em quatro momentos: quando abre a gaveta e percebe que o líquido evaporou; quando ela quebra o vidro; quando, após o baile, a personagem acorda, entre “sono e sonho”, e sente o cheiro do perfume; e, quando fere os pés com o vidro estilhaçado.

b)   Que sentido metafórico o perfume tem em cada uma das passagens?

Na primeira passagem, a evaporação do perfume sugere que o amor de Glória também já se dissipou em um relacionamento desgastado pelo tempo. Na segunda, a personagem mostra-se irada com a percepção de que seu casamento nem sequer garantiu a ela “o gosto de um cheiro”. Na terceira passagem, a mulher já sabe que não mais terá o marido e percebe que seu amor por ele voltou em virtude de sua mudança de comportamento. Na quarta, quando Glória pisa nos cacos de vidro e corre para dentro, imprime as pegadas ensanguentadas no assoalho, que permanecem ali até o presente, como que marcando a estreia de uma nova vida.

c)   Explique como é possível Glória sentir o cheiro do perfume mesmo depois de evaporado seu líquido e estilhaçado seu frasco.

O perfume é, ao mesmo tempo, símbolo de amor / desamor / retomada do amor. A busca do perfume e a descoberta de sua evaporação sugerem a atual falta de cuidado que um dia, ainda que de maneira tímida, Justino teve com Glória. Entretanto, a generosidade mostrada pelo marido no episódio do baile – que abrange o vestido dado de presente, a maquiagem exigida, a licença para a esposa dançar com um homem de “boa postura” – faz Glória retomar seu amor perdido, o que justifica que ela sinta metaforicamente o agradável cheiro do perfume que Justino lhe deu de presente no início do namoro deles. Esse cheiro simboliza a “paixão que regressava” ao coração de Glória.