CRÔNICA: INQUILINOS
Luís Fernando Veríssimo
Ninguém é
responsável pelo funcionamento do mundo. Nenhum de nós precisa acordar cedo
para acender as caldeiras e checar se a Terra está girando em torno do seu
próprio eixo na velocidade apropriada, e em torno do Sol de modo a garantir a
correta sucessão das estações. Como num prédio bem administrado, os serviços
básicos do planeta são providenciados sem que se enxergue o síndico - e sem
taxa de administração. Imagine se coubesse à humanidade, com sua conhecida
tendência ao desleixo e à improvisação, manter a Terra na sua órbita e nos seus
horários, ou se - coroando o mais delirante dos sonhos liberais - sua gerência
fosse entregue a uma empresa privada, com poderes para remanejar os ventos e
suprimir correntes marítimas, encurtar ou alongar dias e noites e até mudar de
galáxia, conforme as conveniências de mercado, e ainda por cima sujeita a
decisões catastróficas, fraudes e falência.
É verdade que, mesmo
sob o atual regime impessoal, o mundo apresenta falhas na distribuição dos seus
benefícios, favorecendo alguns andares do prédio metafórico e martirizando
outros, tudo devido ao que só pode ser chamado de incompetência administrativa.
Mas a responsabilidade não é nossa. A infraestrutura já estava pronta quando
nós chegamos. Apesar de tentativas como a construção de grandes obras que
afetam o clima e redistribuem as águas, há pouco que podemos fazer para alterar
as regras do seu funcionamento.
Podemos, isto sim, é
colaborar na manutenção da Terra. Todos os argumentos conservacionistas e
ambientalistas teriam mais força se conseguissem nos convencer de que somos
inquilinos no mundo. E que temos as mesmas obrigações de qualquer inquilino,
inclusive a de prestar contas por cada arranhão no fim do contrato. A
escatologia cristã deveria substituir o Salvador que virá pela segunda vez para
nos julgar por um Proprietário que chegará para retomar seu imóvel. E o Juízo
Final, por um cuidadoso inventário em que todos os estragos que fizemos no
mundo seriam contabilizados e cobrados.
– Cadê a floresta
que estava aqui? - perguntaria o Proprietário. - Valia uma fortuna.
– Este rio não está
como eu deixei… E, depois de uma contagem minuciosa:
– Estão faltando
cento e dezessete espécies.
A Humanidade poderia
tentar negociar. Apontar as benfeitorias - monumentos, parques, áreas férteis
onde outrora existiam desertos - para compensar a devastação. O Proprietário
não se impressionaria.
– Para o que eu
quero o Taj Mahal? Sete Quedas era muito mais bonita.
– E a catedral de
Chartres? Fomos nós que construímos. Aumentou o valor do terreno em…
– Fiquem com todas
as suas catedrais, represas, cidades e shoppings. Quero o mundo como eu o
entreguei.
Não precisamos de
uma mentalidade ecológica. Precisamos de uma mentalidade de inquilinos. E do
terror da indenização.
VERISSIMO, Luís Fernando. O mundo é
bárbaro: e o que nós temos a ver com isso. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. p.
19.
Entendendo o texto
Funcionamento e manutenção do Planeta
Terra.
02. O
cronista compara o funcionamento do mundo com o quê?
Como um prédio bem administrado.
03. Qual a
crítica feita a humanidade?
Que ela é conhecida por sua tendência
ao desleixo e a improvisação, que na ordem humana constitui um defeito
incorrigível, estão perversamente implicados na política e na economia.
04.Para
bem comparar o funcionamento do mundo à boa administração de um prédio, o autor
do texto se vale do fato de que, em ambos os casos,
b.
a distribuição e a qualidade dos serviços costumam ser justas, salvo em casos
excepcionais.
c.
a presença de um síndico só se faz sentir de modo positivo quando se trata de
prevenir catástrofes.
d. a infraestrutura se acomoda às necessidades dos usuários, não cabendo
falar em incompetência administrativa.
e. os
serviços se oferecem com certa naturalidade, sem que se perceba a presença de
um responsável.
05.Atente para as seguintes afirmações:
I.
O autor mostra-se descrente quanto à
competência dos homens para administrar o funcionamento do mundo, tal como
acusa o segmento mesmo sob o atual regime impessoal.
II.
As expressões “gerência (…) entregue a uma
empresa privada” e “conveniências do mercado” ajudam a ilustrar o que entende o
autor por sonhos liberais.
III.
Ao dizer que a infraestrutura já estava pronta
quando nós chegamos, o autor exime a humanidade de responder pelo que seriam as
falhas de funcionamento do mundo natural.
Em relação ao texto, está correto o que se
afirma em
a. I, II
e III.
b. I e II, apenas.
c. I e
III, apenas.
d. II e
III, apenas.
e. II,
apenas.
06. Quem ousará remanejar os ventos e suprimir
correntes marítimas, se tais poderes estivessem à disposição dos nossos
interesses e caprichos?
Na opinião do autor do texto, o síndico ideal seria aquele cujos
serviços sequer se notem, pois ele manterá com discrição sua eficiência e sua
dedicação ao trabalho.