Conto: Me responda, sargento
Dalton Trevisan
Dez anos, sargento, apartada do João.
Uma tarde, sem se despedir, montou no cavalinho pampa, em dez anos de espera
nunca deu notícia. Com a morte do meu velho, que me deixou o sítio, quinze dias
atrás lá estava eu, bem quieta, cuidando da casa e da criação, ajudada pelo meu
afilhado José, esse anjo de oito aninhos. Quem vai entrando sem bater palma nem
pedir licença? Chegou maltrapilho, chapéu na mão me rogou para fazer vida
comigo. Mais de espanto que de saudade aceitei, bom ou mau, eu disse, é o meu
João.
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi1MGTFza2Tp4zynINPMNu-L5R-QUh274-oLdSYZs3dhlyBJ9-3LbpAY08T2VwXtQJ9t01Cj3DqyRlw1EtxMmfZtB4S31RGasB8rDx7X5bw4NYiyGBhDZNSsKE09EQO9gdd73MnDlJ0XBA6E8PKdPwUu_PK5YA6cBA3CcHJTklTJwsM1Ly9n2nj93mt_sw/s320/SARGENTO.jpeg
Nos primeiros dias foi bonzinho, quem
não gosta de uma cabeça de homem no travesseiro? Logo começou a beber, não me
valia em nada no sítio. Eu saía bem cedo com o menino a lidar na roça, o bichão
ficava dormindo. Bocejando de chinelo e desfrutando as regalias, não quer
castigar o corpinho, não joga um punhado de milho para as galinhas. Só então,
sargento, burra de mim, descobri o mistério: ele voltou por amor da herança. Na
primeira semana vendeu o leitão mais gordo do chiqueiro, não me deu satisfação,
o sargento viu algum dinheiro? Nem eu.
Ontem chegou bêbado e de óculos escuro,
espantou o menino para o terreiro e, fechados no quarto, bradou que eu tinha um
amante, o meu afilhado bem que era filho e, antes de contar até três, eu
dissesse o nome do pai. Por mais que, de joelho e mão posta, negasse que havia
outro homem, por mim o testemunho dos vizinhos, ele me cobriu de palavrão,
murro, pontapé. Pegou da espingarda, me bateu com a coronha na cabeça. Obrigou
a rezar na hora da morte e pedir louvado. Que eu abrisse a boca, encostou o
cano, fez que apertava o gatilho. Não satisfeito, sacou da garrucha, apagou o
lampião a bala. Disparou dois tiros na minha direção, só não acertou porque me
desviei. Uma bala se enterrou na porta, a outra furou a cortina, em três
pedaços a cabeça do São Jorge.
Cansado de reinar, deitou-se vestido e
de sapato, que a escrava servisse a janta na cama. Provou uma garfada e atirou
o prato, manchando de feijão toda a parede: “Quero outra, esta não prestou”.
Deus me acudiu, ao voltar com a bandeja ele roncava espumando pelo dente de
ouro. Agarrei meu filho, chorando e rezando corri a noite inteira, ficasse lá
no sítio era dona morta. E agora, sargento, que vai ser da minha vida, que é
que eu faço?
Dalton Trevisan. Vozes
do retrato. São Paulo: Ática, 1991. p. 47.
Fonte: Livro –
Português: Linguagem, 8ª Série – William Roberto Cereja, Thereza Cochar
Magalhães, 4ª ed. – São Paulo: Atual Editora, 2006. p. 118.
Entendendo o conto:
01 – Qual é o tema central do
conto?
O conto aborda a
violência doméstica e a exploração, retratando a história de uma mulher que
sofre nas mãos do marido. Dalton Trevisan explora as profundezas da crueldade
humana e a fragilidade das relações interpessoais.
02 – Como a linguagem
utilizada por Dalton Trevisan contribui para a atmosfera do conto?
Trevisan utiliza
uma linguagem crua e direta, com frases curtas e objetivas, que intensificam a
sensação de urgência e desespero da narradora. A ausência de floreios e a
precisão das descrições criam uma atmosfera sufocante e opressiva.
03 – Qual o significado da
figura do sargento na narrativa?
O sargento
representa a figura da autoridade, a quem a narradora recorre em busca de ajuda
e proteção. Ele é o ouvinte silencioso da história, e sua presença implícita
intensifica a sensação de impotência da narradora diante da violência que
sofre.
04 – Como a personagem
feminina é retratada no conto?
A personagem feminina
é retratada como uma vítima da violência doméstica, mas também como uma mulher
forte e resiliente. Apesar do sofrimento, ela busca ajuda e tenta proteger seu
afilhado. A personagem é complexa e multifacetada, e sua voz ressoa com a dor e
a esperança de muitas mulheres que sofrem com a violência.
05 – Qual a importância do
cenário rural na narrativa?
O cenário rural,
com o sítio e a vida simples, contrasta com a violência e a brutalidade das
ações do marido. Essa dicotomia intensifica a sensação de isolamento e
vulnerabilidade da narradora, que se encontra à mercê do marido em um ambiente
remoto e isolado.
06 – Como o título do conto se
relaciona com a narrativa?
O título "Me responda,
sargento" expressa o apelo desesperado da narradora por ajuda e
orientação. A pergunta implícita no título reflete a sua incerteza quanto ao
futuro e a sua busca por respostas em meio ao caos e à violência.
07 – Qual a mensagem principal
que Dalton Trevisan transmite com esse conto?
Dalton Trevisan transmite
uma mensagem de alerta sobre a violência doméstica e a necessidade de combater
esse problema social. O conto expõe a crueldade e a brutalidade da violência,
mas também celebra a força e a resiliência das vítimas.