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sexta-feira, 19 de setembro de 2025

CRÔNICA: O BANHO - FRAGMENTO - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Crônica: O Banho – Fragmento

              Clarice Lispector

        [...]

        Antes estava fechada, opaca. Mas, quando me levan­tei, foi como se tivesse nascido da água. Saí molha­da, a roupa colada à pele, os cabelos brilhantes, sol­tos. Qualquer coisa agitava-se em mim e era certa­mente meu corpo apenas. Mas num doce milagre tudo se torna transparente e isso era certamente mi­nha alma também. Nesse instante eu estava verda­deiramente no meu interior e havia silêncio. Só que meu silêncio, compreendi, era um pedaço do silên­cio do campo. E eu não me sentia desamparada.

 

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjozuBsQPF6oeMIukpkim4qkhBqmbIwk6Zh-tQtTzr5PPw7z5Oyyz03iy9OadlunsSvoeQ4njcSV325Uxztyu_s5hrOqFQ4N8umHXlbauzvFFvgORtRVWaQ05rDgfrsl3l7zfyI7xjx4k5djAqhqQ9FUObOSRaORSEEmI3Pve8ZuYMlHkXJk8eTieIcCl8/s320/nilo-amazonas-1.bx_.jpg 

O cavalo de onde eu caíra esperava-me junto ao rio. Montei-o e voei pelas encostas que a sombra já inva­dia e refrescava. Freei as rédeas, passei a mão pelo pescoço latejante e quente do animal. Continuei a passo lento, escutando dentro de mim a felicidade, alta e pura como um céu de verão. Alisei meus bra­ços, onde ainda escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma continuação do meu corpo. Am­bos respirávamos palpitantes e novos. Uma cor maciamente sombria deitara-se sobre as campinas mor­nas do último sol e a brisa leve voava devagar. É preciso que eu não esqueça, pensei, que fui feliz, que estou sendo feliz mais do que se pode ser. Mas es­queci, sempre esqueci.

        Eu estava sentada na Catedral, numa espera distraída e vaga. Respirava opressa o perfume roxo e frio das imagens. E, subitamente, antes que pu­desse compreender o que se passava, como um cataclisma, o órgão invisível desabrochou em sons cheios, trêmulos e puros. Sem melodia, quase sem música, quase apenas vibração. As paredes compridas e as altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devol­viam-nas sonoras, nuas e intensas. Elas transpassavam-me, entrecruzavam-se dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música. Insensivelmente, sob o peso do cântico, escorreguei do banco, ajoelhei-me sem rezar, aniquilada. O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade com que ini­ciara, como uma inspiração. Continuei respirando baixinho, o corpo vibrando ainda aos últimos sons que restavam no ar num zumbido quente e translú­cido. E era tão perfeito o momento que eu nada te­mia nem agradecia e não caí na ideia de Deus. Que­ro morrer agora, gritava alguma coisa dentro de mim liberta, mais do que sofrendo. Qualquer ins­tante que sucedesse àquele seria mais baixo e vazio. Queria subir e só a morte, como um fim, me daria o auge sem a queda. As pessoas se levantavam ao meu redor, movimentavam-se. Ergui-me, caminhei para a saída, frágil e pálida.

Clarice Lispector – Literatura comentada. São Paulo, Nova Cultural, 1988.

Fonte: Português – 1º grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 8.

Entendendo a crônica:

01 – Como a narradora se sentia antes de tomar banho e como sua percepção de si mesma muda após o ato?

      Antes de tomar banho, a narradora se sentia "fechada, opaca". Após o banho, ela descreve um sentimento de renascimento, como se tivesse "nascido da água". Ela passa a se sentir mais conectada com o próprio corpo e com a natureza ao seu redor.

02 – Qual é a relação da narradora com a natureza após o banho, e o que o cavalo representa nesse momento?

      A narradora se sente em total sintonia com a natureza, percebendo seu silêncio como parte do silêncio do campo. O cavalo, do qual ela havia caído, a esperava e se torna uma "continuação do meu corpo", simbolizando a renovação e a sensação de liberdade.

03 – No segundo momento da crônica, o que acontece na Catedral que provoca uma reação intensa na narradora?

      Na Catedral, um órgão invisível começa a tocar de forma súbita, com sons cheios e vibrantes, que não se assemelhavam a uma melodia. Essa música a transpassa e a faz se ajoelhar, sentindo-se aniquilada e tomada por uma emoção avassaladora.

04 – Após a música na Catedral, qual é o desejo mais profundo da narradora e por que ela se sente assim?

      A narradora deseja morrer naquele exato momento, porque o instante era tão perfeito que qualquer outro momento que o sucedesse seria "mais baixo e vazio". A morte seria a única forma de preservar o auge daquela experiência sem ter que enfrentar a "queda" de volta à realidade comum.

05 – O texto apresenta duas experiências extremas: o banho na natureza e o som do órgão na Catedral. Qual é a emoção central que a narradora busca e que ambas as experiências, de certa forma, proporcionam?

      A emoção central que a narradora busca é a plenitude, um momento de felicidade e de conexão profunda consigo mesma e com o mundo. Tanto o banho quanto a música do órgão a levam a um estado de êxtase onde ela se sente completa, liberta e em perfeita sintonia, seja com a natureza ou com o sublime do som.

 

 

MINICONTO: DECLARAÇÃO DE AMOR - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Miniconto: Declaração de Amor

                 Clarice Lispector

        Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa.

        Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjVd3ps0A0O5Y1ifVv4R5kqli08h2Zi1uVwz1s9wnyviVc_M4vCzkjR3WrZnogQTB6f75eQw2Vh3lBvYItqwkyvshHxpms20qmicscA-Nnn78u8k8drXMUoEYmXBK5kvP8jp80pygtUJMdigjUfn0RB_kdZoLLbx7-06gS6AJ8_S22PPeJigASgeiGv0iw/s320/dia-da-lingua-portuguesa3-750x350.jpg


Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la — como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.
Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E esse desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.

        Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.

Antologia universitária, vol. I. Universidade de Taubaté, 1980.

Fonte: Português – 1º grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 34.

Entendendo o miniconto:

01 – Qual é a "confissão de amor" feita pela autora no início do texto?

      A autora confessa o seu amor pela língua portuguesa.

02 – Quais são as principais dificuldades da língua portuguesa apontadas pela autora?

      A autora descreve a língua portuguesa como não sendo fácil e nem maleável. Ela aponta que a língua não foi profundamente trabalhada pelo pensamento e que às vezes reage com um "pontapé" quando usada para expressar sutilezas ou pensamentos complexos.

03 – No texto, a autora faz uma analogia para descrever como gosta de "manejar" a língua portuguesa. Qual é essa analogia?

      Ela compara o ato de manejar a língua com a experiência de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, ora lentamente, ora a galope.

04 – Segundo Clarice, por que a herança deixada por grandes escritores como Camões não é suficiente para os autores atuais?

      A autora afirma que a herança de Camões e outros não é suficiente porque a língua precisa ser constantemente trabalhada e renovada. Para ela, todos que escrevem estão "fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida".

05 – No final do texto, a autora faz uma escolha entre línguas. Se fosse muda e não pudesse escrever, qual língua ela escolheria? E por que ela, de fato, escolhe o português?

      Se fosse muda, ela escolheria o inglês, que considera preciso e belo. No entanto, como pode escrever, ela se dá conta de que sua única e verdadeira vontade é escrever em português, e chega a desejar não ter aprendido outras línguas para que sua abordagem ao português fosse "virgem e límpida".

 

 

MINICONTO: AS MARAVILHAS DE CADA MUNDO - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Miniconto: As Maravilhas de cada mundo

                Clarice Lispector

        Tenho uma amiga chamada Azaléia, que simplesmente gosta de viver. Viver sem adjetivos. É muito doente de corpo, mas seus risos são claros e constantes. Sua vida é difícil, mas é sua.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgBj-z77ADSVIQpIi1NLsjcS_Lw8eK84zyqkhcv7xV3rfCIVqt9UJRZMZWBqD2UfVQ_Yf5zzZdWyQQuVoQdies0Ia8Ke94HucD7Sv64Aem1IBMfINiJC789YVwm0jtwyXGwNeyADBxpN_X4rabzxSygFQXVbMyEAVdA_ax2Nbgg5l-9jHj3HTtrAIWATos/s320/MO%C3%87A.png


        Um dia desses me disse que cada pessoa tinha em seu mundo sete maravilhas. Quais? Dependia da pessoa.

        Ela então resolveu classificar as sete maravilhas de seu mundo.

        Primeira: ter nascido. Ter nascido é um dom, existir, digo eu, é um milagre.

        Segunda: seus cinco sentidos que incluem em forte dose o sexto. Com eles ela toca e sente e ouve e se comunica e tem prazer e experimenta a dor.

        Terceira: sua capacidade de amar. Através dessa capacidade, menos comum do que se pensa, ela está sempre repleta de amor por alguns e por muitos, o que lhe alarga o peito.

        Quarta: sua intuição. A intuição alcança-lhe o que o raciocínio não toca e que os sentidos não percebem.

        Quinta: sua inteligência. Considera-se uma privilegiada por entender. Seu raciocínio é agudo e eficaz.

        Sexta: a harmonia. Conseguiu-a através de seus esforços, e realmente ela é toda harmoniosa, em relação ao mundo em geral, e a seu próprio mundo.

        Sétima: a morte. Ela crê, teosoficamente, que depois da morte a alma se encarna em outro corpo, e tudo começa de novo, com a alegria das sete maravilhas renovadas.

Clarice Lispector. A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.

Fonte: Português – 1º grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 65.

Entendendo o miniconto:

01 – Quem é Azaléia e qual a sua característica principal, apesar de suas dificuldades?

      Azaléia é uma amiga da narradora que "simplesmente gosta de viver". Apesar de ser muito doente de corpo e ter uma vida difícil, ela é caracterizada por seus "risos claros e constantes".

02 – Qual a ideia central que Azaléia compartilha com a narradora sobre as "maravilhas"?

      Ela diz que cada pessoa tem sete maravilhas em seu próprio mundo, e que essas maravilhas são particulares de cada indivíduo.

03 – De acordo com Azaléia, qual é a primeira maravilha e por que ela a considera assim?

      A primeira maravilha é o fato de ter nascido. Para ela, ter nascido é um dom, e a narradora complementa, dizendo que "existir... é um milagre".

04 – Como Azaléia descreve a "capacidade de amar" e a "intuição" em sua lista?

      Ela considera a capacidade de amar uma maravilha por ser menos comum do que se pensa, e por meio dela, seu peito se "alarga" com amor por muitas pessoas. Já a intuição é uma maravilha porque alcança o que o raciocínio e os sentidos não conseguem perceber.

05 – Qual é a sétima maravilha de Azaléia e por que ela a inclui na lista?

      A sétima maravilha é a morte. Azaléia a inclui porque, por meio de sua crença teosófica, ela acredita que após a morte a alma se reencarna, e a vida e suas sete maravilhas recomeçam com alegria.

 

quarta-feira, 4 de junho de 2025

CONTO: A PAIXÃO SEGUNDO G.H. - FRAGMENTO - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: A PAIXÃO SEGUNDO G. H. – Fragmento

            Clarice Lispector

        [...]

        Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo, então? Mas se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vagalhões de mudez.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgFyH4mvUwYH6lkbJX1_5BGFdI1zaV_VQ6Um2TIGwpVDPnwTiO-4Glq88J8oAr3cb05ZI-eI0KzzxRmIA1hTjHap2IVvx1js0C9i97Vr6E11oxZj1wy_gdslTNP5OQmjfH99zlESbyaAcxJMRN-bAB5vjrg3eaLPPA2o9sO2D5euorQtUp0Sar5dWYODbU/s320/91uh24xeIKL._UF894,1000_QL80_.jpg


        [...]

        Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo – traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria linguagem.

        [...].

São Paulo: ALLCA XX/Scipione Cultural, 199. p. 14-15.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 3ª Série – Ensino Médio – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª ed. – São Paulo: Saraiva Editora, 2013. p. 299.

Entendendo o conto:

01 – Qual o dilema inicial que a narradora expressa em relação à sua capacidade de se comunicar?

      O dilema inicial da narradora é a tensão entre o desejo de falar e a iminência do silêncio total. Ela sente que se não "forçar a palavra", a mudez a "engolfará para sempre em ondas", indicando que a linguagem é sua única tábua de salvação contra o vazio.

02 – Por que a narradora afirma que "viver não é relatável" e "viver não é vivível"?

      A narradora afirma isso porque entende que a experiência pura da vida transcende a capacidade da linguagem de capturá-la integralmente. Ela percebe que a vivência em si é tão profunda e multifacetada que não pode ser contida ou expressa de forma direta e completa pelas palavras.

03 – Qual a diferença que a narradora estabelece entre "criar" e "imaginar", e qual a importância de "criar" para ela?

      Para a narradora, "criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade". Isso significa que "criar" não é inventar algo que não existe, mas sim um processo de apreensão e compreensão da realidade em sua essência mais profunda, um modo de "traduzir o desconhecido" para que a experiência vivida possa ser de alguma forma acessada e comunicada.

04 – Que analogia a narradora usa para descrever o processo de tentar traduzir o indizível?

      A narradora usa a analogia de "traduzir sinais de telégrafo", mais especificamente, "traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais". Essa analogia ilustra a dificuldade extrema e a natureza quase impossível de sua tarefa de expressar o que vivenciou.

05 – Que tipo de linguagem a narradora prevê que usará para expressar o que lhe aconteceu e qual a característica peculiar dessa linguagem?

      A narradora prevê que usará uma "linguagem sonâmbula". A característica peculiar dessa linguagem é que, se ela estivesse "acordada", essa forma de expressão não seria considerada linguagem. Isso sugere uma comunicação que transcende a lógica e a racionalidade convencionais, emergindo de um estado de consciência alterado, necessário para alcançar a verdade de sua experiência.

 

ENTREVISTA: QUE MISTÉRIO TEM CLARICE? - RENATO CORDEIRO GOMES - COM GABARITO

 Entrevista: Que mistério tem Clarice? (Texto-montagem)

                   Renato Cordeiro Gomes

        Não gosto de dar entrevistas: as perguntas me constrangem, custo a responder, e, ainda por cima, sei que o entrevistador vai deformar fatalmente minhas palavras.

        Assim, para não correr esse risco e não haver constrangimento, não aconteceu nenhuma entrevista, apesar do bate-papo descontraído e, por fim, amigo, numa sala acolhedora, no Leme, onde moram Clarice e seus mistérios.

        Houve não-perguntas, mas há respostas (?). Revelação! Diante da máquina de escrever, ELA fala:

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjEcCzORaUpfkWM2OYNL0l7VsMYv9SveI9vTMkHFo4CuXG-ApdkRQQIRIvS4yUDqDCHzrwROba_zbUJpMc-HYyvEZ2GgYXjiCY6r3j3eu4ko_ja914U_SZC8tkp0x7MYjazA6U_5FnTM4J1reeaQjV6InqqkFX-v0_td4AV1rmbXexziIzfbKRUPESGoxc/s320/Ruins_of_Chechelnyk_synagogue.jpg


        Explicação de uma vez por todas

        Recebo de vez em quando carta perguntando-me se sou russa ou brasileira, e me rodeiam de mitos.

        Vou esclarecer de uma vez por todas: não há simplesmente mistério que justifique mitos, lamento muito. E a história é a seguinte: nasci na Ucrânia, terra de meus pais. Nasci numa aldeia chamada Tchetchelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante. Quando minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em Tchetchelnik para eu nascer, e prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas dois meses de idade.

        Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata.

        Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. Comecei a escrever pequenos contos logo que me alfabetizaram, e escrevi-os em português, é claro. Criei-me em Recife, e acho que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é viver mais intensamente e de perto a verdadeira vida brasileira que lá, no interior, não recebe influência de costumes de outros países. Minhas crendices foram aprendidas em Pernambuco, as comidas que mais gosto são pernambucanas. E através de empregadas, aprendi o rico folclore de lá.

        Somente na puberdade vim para o Rio com minha família: era a cidade grande e cosmopolita que, no entanto, em breve se tornava para mim brasileira-carioca.

        Quanto a meus rr enrolados, estilo francês, quando falo, e que me dão um ar de estrangeira, trata-se apenas de um defeito de dicção: simplesmente não consigo falar de outro jeito. Defeito esse que meu amigo Dr. Pedro Bloch disse ser facílimo de corrigir e que ele faria isso para mim. Mas sou preguiçosa, sei de antemão que não faria os exercícios em casa. E além do mais meus rr não me fazem mal algum. Outro mistério, portanto, elucidado.

        O que não será jamais elucidado é o meu destino. Se minha família tivesse optado pelos Estados Unidos, eu teria sido escritora? Em inglês, naturalmente, se fosse. Teria casado provavelmente com um americano e teria filhos americanos. E minha vida seria inteiramente outra. Escreveria sobre o quê? O que é que amaria? Seria de que Partido? Que gênero de amigos teria? Mistério.

        A gente nasce para alguma coisa, da qual vamos tomando consciência à medida que cumprimos nossa existência, num ato de doação. Para que você nasceu, Clarice?

        As três experiências

        Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O "amar os outros" é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.

        E nasci para escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por que, foi esta que eu segui. Talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo escrever. Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E, no entanto, cada vez que vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estreia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever.

        Quanto a meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu quis ser mãe. Meus dois filhos foram gerados voluntariamente. Os dois meninos estão aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos e angústias, eu lhes dou o que é possível dar. Se eu não fosse mãe, seria sozinha no mundo. Mas tenho uma descendência, e para eles no futuro eu preparo meu nome dia a dia. Sei que um dia abrirão as asas para o voo necessário, e eu ficarei sozinha. É fatal, porque a gente não cria os filhos para a gente, nós criamos para eles mesmos. Quando eu ficar sozinha, estarei seguindo o destino de todas as mulheres.

        Sempre me restará amar. Escrever é alguma coisa extremamente forte, mas que pode me trair e me abandonar: posso um dia sentir que já escrevi o que é o meu lote neste mundo e que eu devo aprender também a parar. Em escrever eu não tenho nenhuma garantia.

        Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer. Amar não acaba. É como se o mundo estivesse à minha espera. E eu vou de encontro ao que me espera.

        Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo. Lucidamente apenas falo de algumas das milhares de coisas e pessoas de quem eu tomo conta. Também não se trata de um emprego, pois dinheiro não ganho com isso. Fico apenas sabendo como é o mundo.

        Mas por que você toma conta do mundo, se isto lhe dá trabalho?

        É que nasci assim, incumbida. E sou responsável por tudo o que existe, inclusive pelas guerras e pelos crimes de lesa-corpo e lesa-alma. Sou inclusive responsável pelo Deus que está em constante cósmica evolução para melhor.

        O saber e o não-saber

        Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo o que não sei e – por ser um campo virgem – está livre de preconceitos. Tudo o que não sei é a minha parte maior e melhor: é a minha largueza. É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que constitui a minha verdade. 

        O mistério da criação artística

        Quando comecei a escrever, que desejava atingir? Queria escrever alguma coisa que fosse tranquila e sem modas, alguma coisa como a lembrança de um alto monumento que parece mais alto porque é lembrança. Mas queria, de passagem, ter realmente tocado no monumento. Sinceramente não sei o que simbolizava para mim a palavra monumento. E terminei escrevendo coisas inteiramente diferentes.

        Dois modos

        Como se eu procurasse não aproveitar a vida imediata mas sim a mais profunda, o que me dá dois modos de ser: em vida, observo muito, sou ativa nas observações, tenho o senso do ridículo, do bom humor, da ironia, e tomo um partido. Escrevendo, tenho observações por assim dizer passivas, tão interiores que se escrevem ao mesmo tempo em que são sentidas, quase sem o que se chama de processo.

        E por isso que no escrever eu não escolho, não posso me multiplicar em mil, me sinto fatal a despeito de mim.

        A criação artística é um mistério que me escapa, felizmente.

        Aceitando o risco

        Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento (a transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender se não usar o processo de escrever. Escrever é compreender melhor. Se às vezes tomo sem querer um ar hermético, é que não só o principal é não mentir o sentimento como porque tenho incapacidade de transpô-lo de um modo claro sem que mentisse – e mentir o pensamento seria tirar a única alegria de escrever. Assim, tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermético, o que acho bem chato nos outros. Depois da coisa escrita, poderia eu friamente torná-la menos hermética, mais explicativa? Mas é que respeito um certo tom peculiar ao mistério natural da criação não substituível (esse mistério) por clareza outra nenhuma. Também porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como num copo d'água, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a água fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco. Aceitei risco bem maior, como todo o mundo que vive. E se aceito o risco não é por liberdade arbitrária ou inconsciência ou arrogância: a cada dia que acordo, por hábito até, aceito o risco. Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, escrever.

        Nem tudo o que escrevo resulta numa realização, resulta mais numa tentativa. O que também é um prazer. Pois nem tudo eu quero pegar. Às vezes quero apenas tocar. Depois o que toco às vezes floresce e os outros podem pegar com as duas mãos.

        Às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia.

        Literatura e justiça

        Minha tolerância em relação a mim, como pessoa que escreve, é perdoar eu não saber como me expressar de um modo "literário" (isto é, transformando na veemência da arte) da "coisa social". Desde que me conheço o fato social teve em mim importância maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir "arte", senti a beleza profunda da luta. O problema de justiça é em mim um sentimento tão óbvio e tão básico que não consigo me surpreender com ele - e, sem me surpreender, não consigo escrever. E também porque para mim escrever é procurar. O sentimento de justiça nunca foi procura em mim, nunca chegou a ser descoberto, e o que me espanta é que ele não seja igualmente óbvio em todos. Na verdade sinto-me engajada. Tudo o que escrevo está ligado, pelo menos dentro de mim, à realidade em que vivemos.

        Autocrítica

        Esta autocrítica tem que ser complacente, porque se fosse aguda demais isso talvez me fizesse nunca mais escrever. Mas eu queria escrever, algum dia talvez. Embora sentindo que, se voltasse a escrever, seria de um modo diferente do meu antigo: diferente em quê? Não me interessa. Minha autocrítica a certas coisas que escrevo, não importa no caso se boas ou más, – falta a elas chegar àquele ponto em que a dor se mistura à profunda alegria, e a alegria chega a ser dolorosa – pois esse ponto é o aguilhão da vida.

        E quantas vezes conseguimos o encontro máximo de um ser com outro ser, quando com espanto dizemos: "Ah!". Às vezes esse encontro consigo próprio se consegue através do encontro de um ser com outro ser.

        Não, eu não teria vergonha de dizer tão claramente o que eu quereria para o futuro: quereria o máximo, e o máximo deve ser atingido e dito com a matemática perfeição da música ouvida e transposta para o profundo arrebatamento que sentimos. Não transposta, pois é a mesma coisa. Deve, eu sei que deve haver um modo em mim de chegar a isso.

        Às vezes sinto que esse modo eu o conseguiria através simplesmente de meu modo de ver mais evoluído. Uma vez sendo, no entanto, que se fosse conseguido seria através da misericórdia. Não da misericórdia transformada em gentileza da alma. Mas da profunda misericórdia transformada em ação, mesmo que seja a ação das palavras. E assim como "Deus escreve direito por linhas tortas", através de nossos erros correria o grande amor que seria a misericórdia.

        Aproximação gradativa

        Se eu tivesse que dar um título à minha vida seria: à procura da própria coisa.

        Mistério

        Sou tão misteriosa que não me entendo. Não, positivamente não me entendo. Bem, mas o fato é que, mesmo não me entendendo, vou lentamente me encaminhando – e também para o quê, não sei. De um modo geral, para mais amor por tudo... Sinto que me encaminho para o mais humano.

        Os mistérios: estes. De Clarice.

Seleta de Clarice Lispector, 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 291-294.

Entendendo a entrevista:

01 – Por que Clarice não gosta de dar entrevistas?

      Clarice não gosta de dar entrevistas porque as perguntas a constrangem, ela tem dificuldade em responder e acredita que o entrevistador fatalmente deformará suas palavras.

02 – Qual a verdadeira nacionalidade de Clarice e como ela se sente em relação a isso?

      Clarice nasceu na Ucrânia, mas chegou ao Brasil com apenas dois meses de idade. Ela se considera brasileira naturalizada e fez da língua portuguesa sua vida interior, usando-a para seu pensamento mais íntimo e para escrever.

03 – De onde Clarice absorveu grande parte de sua identidade cultural brasileira?

      Clarice se criou em Recife, e acredita que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é vivenciar a verdadeira vida brasileira. Ela aprendeu suas crendices e gostos culinários em Pernambuco e, através de empregadas, absorveu o rico folclore local.

04 – Como Clarice explica seus "rr enrolados" que a fazem soar como estrangeira?

      Ela explica que é apenas um defeito de dicção e que não consegue falar de outro jeito. Ela também menciona que um amigo, Dr. Pedro Bloch, disse que seria fácil de corrigir, mas ela é preguiçosa para fazer os exercícios.

05 – Quais são as três experiências para as quais Clarice afirma ter nascido?

      Clarice afirma ter nascido para amar os outros, para escrever e para criar seus filhos.

06 – De que forma Clarice descreve a criação artística e o processo de escrita?

      Clarice vê a criação artística como um mistério que lhe escapa. Ela descreve a escrita como uma necessidade para não mentir o sentimento e para compreender melhor as coisas, além de ser uma fonte de "inesperadas surpresas" onde ela se torna consciente de coisas que antes não sabia que sabia.

07 – Qual é o sentimento de Clarice em relação à justiça social e como isso se relaciona com sua escrita?

      Para Clarice, o problema da justiça é um sentimento "óbvio e básico" que a "engaja". Embora não consiga escrever sobre isso de forma "literária" (transformando-o em veemência artística), ela afirma que tudo o que escreve está ligado à realidade em que vivemos.

 

terça-feira, 8 de abril de 2025

CONTO: O PRIMEIRO BEIJO - (FRAGMENTO) - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: O primeiro beijo – Fragmento

            Clarice Lispector

        Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgBXKMAZwPZkKeLYhQSEran2HXk3DBYYWf11hK4KtUH39f6ixd4ZtisB66uubSHgmz4KOtUFRPIhrrx_gUtBaXIzsXLNIItmkgQ0g_5RJzAnH50dpiTo4H44gp_Zg0zFkbTilbBrphcRfavhb9juG38mP4ZOt-8O1j1DJ6667osLayVW9RHLYsm1M7jP4s/s320/O%20PRIMEIRO.jpg


        -- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar?

        Ele foi simples:

        -- Sim, já beijei antes uma mulher.

        -- Quem era ela? – perguntou com dor.

        Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.

        O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.

        E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.

        E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.

        A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.

        E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, talvez horas, enquanto sua sede era de anos.

        Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.

        O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada.

        O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.

        De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga.

        Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.

        Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.

        E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.

        [...]

        Ele a havia beijado.

        Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva.

        [...]

        Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.

        Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...

        Ele se tornara homem.

Clarice Lispector. O primeiro beijo. São Paulo: Ática, 1989. p. 20-22.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 7ª Série – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 1ª ed. 15ª reimpressão – São Paulo: Atual Editora, 2003. p. 64-65.

Entendendo o conto:

01 – Qual a situação inicial do casal apresentada no fragmento?

      O casal havia iniciado um namoro recentemente e ambos estavam "tontos", vivenciando o amor e o ciúme que o acompanha. Eles estavam mais murmurando que conversando.

02 – Qual a pergunta que a namorada faz ao rapaz sobre seus beijos anteriores?

      Ela pergunta se ele já havia beijado outra mulher antes de beijá-la, insistindo que ele dissesse apenas a verdade.

03 – Como o narrador descreve a tentativa do rapaz de contar sobre seu beijo anterior?

      O narrador afirma que ele tentou contar "toscamente", indicando que o rapaz tinha dificuldade em expressar a situação.

04 – Em que cenário o rapaz se recorda de sua experiência anterior ao beijo com a namorada?

      Ele se lembra de estar em um ônibus de excursão, subindo uma serra, no meio de outros jovens em algazarra, sentindo a brisa no rosto e experimentando uma intensa sede.

05 – Qual era a causa da intensa sede sentida pelo rapaz na lembrança?

      A sede era causada pela brincadeira com os colegas, falar alto acima do barulho do motor, rir, gritar, pensar e sentir, que deixaram sua garganta seca, além da falta de água.

06 – Onde o rapaz finalmente encontra a água para matar sua sede na lembrança, e qual é a sua surpreendente descoberta ao beber?

      Ele encontra a água em um chafariz de pedra na curva da estrada. Ao beber, de olhos fechados, ele percebe um contato gélido em seus lábios e, ao abrir os olhos, descobre que a água jorrava da boca da estátua de uma mulher de pedra, na qual ele havia colado seus lábios.

07 – Qual a transformação que o rapaz vivencia após a lembrança do "primeiro beijo" e a revelação que jorra de seu interior?

      Ele sofre um tremor interno e sente o mundo se transformar, experimentando a vida como algo inteiramente novo. A verdade que jorra de seu interior, causando-lhe susto e orgulho, é que ele se tornara homem.

 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

CONTO: PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM - O BANHO - (FRAGMENTO) - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: Perto do coração selvagem O banho – Fragmento

             Clarice Lispector

        [...]

        O tio e a tia já estavam à mesa. Mas a quem deles ela diria: tenho cada vez mais força, estou crescendo, serei moça? Nem a eles, nem a ninguém. Porque também a nenhum poderei perguntar: diga-me, como são as coisas? e ouvir: também não sei, como o professor respondera. O professor ressurgiu à sua frente como no último instante, inclinado para ela, assustado ou feroz, não o sabia, mas recuando, isso, recuando. A resposta, sentiu, não importava tanto. O que valia era que a indagação fora aceita, podia existir. Sua tia retrucaria, surpresa: que coisas? E se chegasse a entender, certamente diria: são assim, assim e assim. Com quem Joana falaria agora das coisas que existem com a naturalidade com que se fala das outras, das que estão apenas?

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgtVUSsmvde8QgM0IKNzqRUc6She16fFqRkdsuW8VlSYUJLO2KpmwNX0-ns5jturYgMmkuzotzIeyJoKGH4V09yOuc1uAuD91zLDPIX3q_A2vD9GsWDpXeDwN-QACjOafKwuFghzQo5xkbTtfIVHkZxE8JWwVyeoSFiTXCA03dWp-UeChSpp5fsSzRjdYM/s1600/CORA%C3%87%C3%83O.jpg

        Coisas que existem, outras que apenas estão... Surpreendeu-se com o pensamento novo, inesperado, que viveria dagora em diante como flores sobre o túmulo. Que viveria, que viveria, outros pensamentos nasceriam e viveriam e ela própria estava mais viva. A alegria cortou-lhe o coração, feroz, iluminou-lhe o corpo. Apertou o copo entre os dedos, bebeu água com os olhos fechados como se fosse vinho, sangrento e glorioso vinho, o sangue de Deus. Sim, a nenhum deles explicaria que tudo mudava lentamente... Que ela guardara o sorriso como quem apaga finalmente a lâmpada e resolve deitar-se. Agora as criaturas não eram admitidas no seu interior, nele fundindo-se. As relações com as pessoas tornavam-se cada vez mais diferentes das relações que mantinha consigo mesma. A doçura da infância desaparecia nos seus últimos traços, alguma fonte estancava para o exterior e o que ela oferecia aos passos dos estranhos era areia incolor e seca. Mas ela caminhava para frente, sempre para a frente como se anda na praia, o vento alisando o rosto, levando para trás os cabelos.

        Como entregar-lhes: é a segunda vertigem num só dia? mesmo que ardesse por confiar o segredo a alguém. Porque ninguém mais na sua vida, ninguém mais talvez haveria de lhe dizer, como o professor: vive-se e morre-se. Todos esqueciam, todos só sabiam brincar. Olhou-os. Sua tia brincava com uma casa, uma cozinheira, um marido, uma filha casada, visitas. O tio brincava com trabalho, com uma fazenda, com jogo de xadrez, com jornais. Joana procurou analisá-los, sentindo que assim os destruiria. Sim, gostavam-se de um modo longínquo e velho. De quando em quando, ocupados com seus brinquedos, lançavam-se olhares inquietos, como para se assegurarem de que continuavam a existir. Depois retomavam a morna distância que diminuía por ocasião de algum resfriado ou de um aniversário. Dormiam juntos certamente pensou Joana sem prazer na malícia.

        A tia estendeu-lhe o prato de pão em silêncio. O tio não levantava os olhos do prato.

        A comida era uma das grandes preocupações da casa, continuou Joana. À hora das refeições, os braços apoiados pesadamente sobre a mesa, o homem se alimentava arfando ligeiramente, porque sofria do coração, e enquanto mastigava, algum farelo esquecido fora da boca, seu olhar se fixava vidrado em qualquer ponto, a atenção voltada às sensações interiores que a comida lhe produzia. A tia cruzava os pés sob a cadeira, e, as sobrancelhas franzidas, comia com uma curiosidade que se renovava a cada garfada, o rosto rejuvenescido e móvel. Mas por que hoje não se abandonavam nas cadeiras? Por que cuidavam de não chocar os talheres, como se alguém estivesse morto ou dormindo? Sou eu, adivinhou Joana.

        Ao redor da mesa escura, sob a luz enfraquecida pelas franjas sujas do lustre, também o silêncio se sentara nessa noite. Joana em momentos parava para ouvir o ruído das duas bocas mastigando e o tic-tac leve e nervoso do relógio. Então a mulher erguia os olhos e imobilizada com o garfo na mão, esperava ansiosa e humilde. Joana desviava a vista, vitoriosa, abaixava a cabeça numa alegria profunda que inexplicavelmente vinha misturada a um aperto doloroso na garganta, a uma impossibilidade de soluçar.

        — Armanda não veio? — a voz de Joana apressou o tic-tac do relógio, fez nascer um súbito e rápido movimento na mesa.

        Os tios se entreolharam furtivamente. Joana respirou alto: tinha medo dela, pois?

        — O marido de Armanda hoje não está de plantão, por isso ela não veio jantar aqui, respondeu finalmente a tia. E de repente, satisfeita, pôs-se a comer. O tio mastigava mais depressa. O silêncio voltou sem dissolver o murmúrio longínquo do mar. Eles não tinham coragem, então.

        — Quando é que eu vou para o internato? — perguntou Joana.

        A terrina de sopa escorregou das mãos da tia, o caldo escuro e cínico espalhou-se rapidamente pela mesa. O tio abandonou os talheres sobre o prato, o rosto angustiado.

        — Como sabe que..., balbuciou confuso...

        Ela escutara à porta...

        A toalha embebida fumegava docemente como restos de um incêndio. Imóvel e fascinada como diante de algo irremediável, a mulher fitava a sopa derramada que esfriava rapidamente.

        [...]

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem, 15. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 73-76.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 494-495.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a principal preocupação de Joana no trecho?

      Joana está preocupada com a sua transição da infância para a adolescência e com a sua crescente dificuldade de se comunicar com os outros, especialmente com seus tios. Ela sente que ninguém a entende e que suas perguntas existenciais não encontram respostas.

02 – O que representa a figura do professor para Joana?

      O professor representa um momento de validação para Joana. Ele a encoraja a questionar e a buscar suas próprias respostas, mesmo que ele mesmo não as tenha. A resposta em si não é tão importante, mas sim a possibilidade de fazer a pergunta.

03 – Como Joana se sente em relação aos seus tios?

      Joana se sente distante e incompreendida por seus tios. Ela os vê como pessoas que se contentam com brinquedos superficiais (casa, casamento, trabalho) e que evitam confrontar as questões mais profundas da vida. Joana sente que eles não têm coragem de encarar a realidade da vida e da morte.

04 – Qual é o significado da sopa derramada na mesa?

      A sopa derramada simboliza a tensão e o desconforto na relação entre Joana e seus tios. É um momento de quebra da formalidade e de revelação de sentimentos reprimidos. A reação dos tios à sopa derramada mostra a fragilidade e a superficialidade de suas relações.

05 – Por que Joana tem medo de Armanda?

      O conto não explica explicitamente por que Joana tem medo de Armanda. No entanto, podemos inferir que Armanda representa um mundo adulto que Joana teme e do qual se sente excluída. A reação dos tios ao medo de Joana revela a fragilidade e a falta de comunicação na família.

06 – O que significa a pergunta de Joana sobre o internato?

      A pergunta de Joana sobre o internato revela sua intuição de que algo está para mudar em sua vida. Ela sente que está se distanciando de seus tios e que seu futuro pode estar em outro lugar. A reação dos tios à pergunta de Joana confirma suas suspeitas e intensifica a tensão na mesa.

07 – Qual é a importância do silêncio no conto?

      O silêncio é um elemento importante no conto, pois ele representa a falta de comunicação e a dificuldade de expressão dos sentimentos. O silêncio na mesa de jantar é opressor e revela a tensão entre os personagens. O tic-tac do relógio e o barulho da mastigação enfatizam o silêncio e criam uma atmosfera de desconforto.