Mostrando postagens com marcador CLARICE LISPECTOR. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador CLARICE LISPECTOR. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 8 de abril de 2025

CONTO: O PRIMEIRO BEIJO - (FRAGMENTO) - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: O primeiro beijo – Fragmento

            Clarice Lispector

        Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgBXKMAZwPZkKeLYhQSEran2HXk3DBYYWf11hK4KtUH39f6ixd4ZtisB66uubSHgmz4KOtUFRPIhrrx_gUtBaXIzsXLNIItmkgQ0g_5RJzAnH50dpiTo4H44gp_Zg0zFkbTilbBrphcRfavhb9juG38mP4ZOt-8O1j1DJ6667osLayVW9RHLYsm1M7jP4s/s320/O%20PRIMEIRO.jpg


        -- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar?

        Ele foi simples:

        -- Sim, já beijei antes uma mulher.

        -- Quem era ela? – perguntou com dor.

        Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.

        O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.

        E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.

        E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.

        A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.

        E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, talvez horas, enquanto sua sede era de anos.

        Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.

        O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada.

        O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.

        De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga.

        Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.

        Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.

        E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.

        [...]

        Ele a havia beijado.

        Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva.

        [...]

        Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.

        Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...

        Ele se tornara homem.

Clarice Lispector. O primeiro beijo. São Paulo: Ática, 1989. p. 20-22.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 7ª Série – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 1ª ed. 15ª reimpressão – São Paulo: Atual Editora, 2003. p. 64-65.

Entendendo o conto:

01 – Qual a situação inicial do casal apresentada no fragmento?

      O casal havia iniciado um namoro recentemente e ambos estavam "tontos", vivenciando o amor e o ciúme que o acompanha. Eles estavam mais murmurando que conversando.

02 – Qual a pergunta que a namorada faz ao rapaz sobre seus beijos anteriores?

      Ela pergunta se ele já havia beijado outra mulher antes de beijá-la, insistindo que ele dissesse apenas a verdade.

03 – Como o narrador descreve a tentativa do rapaz de contar sobre seu beijo anterior?

      O narrador afirma que ele tentou contar "toscamente", indicando que o rapaz tinha dificuldade em expressar a situação.

04 – Em que cenário o rapaz se recorda de sua experiência anterior ao beijo com a namorada?

      Ele se lembra de estar em um ônibus de excursão, subindo uma serra, no meio de outros jovens em algazarra, sentindo a brisa no rosto e experimentando uma intensa sede.

05 – Qual era a causa da intensa sede sentida pelo rapaz na lembrança?

      A sede era causada pela brincadeira com os colegas, falar alto acima do barulho do motor, rir, gritar, pensar e sentir, que deixaram sua garganta seca, além da falta de água.

06 – Onde o rapaz finalmente encontra a água para matar sua sede na lembrança, e qual é a sua surpreendente descoberta ao beber?

      Ele encontra a água em um chafariz de pedra na curva da estrada. Ao beber, de olhos fechados, ele percebe um contato gélido em seus lábios e, ao abrir os olhos, descobre que a água jorrava da boca da estátua de uma mulher de pedra, na qual ele havia colado seus lábios.

07 – Qual a transformação que o rapaz vivencia após a lembrança do "primeiro beijo" e a revelação que jorra de seu interior?

      Ele sofre um tremor interno e sente o mundo se transformar, experimentando a vida como algo inteiramente novo. A verdade que jorra de seu interior, causando-lhe susto e orgulho, é que ele se tornara homem.

 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

CONTO: PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM - O BANHO - (FRAGMENTO) - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: Perto do coração selvagem O banho – Fragmento

             Clarice Lispector

        [...]

        O tio e a tia já estavam à mesa. Mas a quem deles ela diria: tenho cada vez mais força, estou crescendo, serei moça? Nem a eles, nem a ninguém. Porque também a nenhum poderei perguntar: diga-me, como são as coisas? e ouvir: também não sei, como o professor respondera. O professor ressurgiu à sua frente como no último instante, inclinado para ela, assustado ou feroz, não o sabia, mas recuando, isso, recuando. A resposta, sentiu, não importava tanto. O que valia era que a indagação fora aceita, podia existir. Sua tia retrucaria, surpresa: que coisas? E se chegasse a entender, certamente diria: são assim, assim e assim. Com quem Joana falaria agora das coisas que existem com a naturalidade com que se fala das outras, das que estão apenas?

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgtVUSsmvde8QgM0IKNzqRUc6She16fFqRkdsuW8VlSYUJLO2KpmwNX0-ns5jturYgMmkuzotzIeyJoKGH4V09yOuc1uAuD91zLDPIX3q_A2vD9GsWDpXeDwN-QACjOafKwuFghzQo5xkbTtfIVHkZxE8JWwVyeoSFiTXCA03dWp-UeChSpp5fsSzRjdYM/s1600/CORA%C3%87%C3%83O.jpg

        Coisas que existem, outras que apenas estão... Surpreendeu-se com o pensamento novo, inesperado, que viveria dagora em diante como flores sobre o túmulo. Que viveria, que viveria, outros pensamentos nasceriam e viveriam e ela própria estava mais viva. A alegria cortou-lhe o coração, feroz, iluminou-lhe o corpo. Apertou o copo entre os dedos, bebeu água com os olhos fechados como se fosse vinho, sangrento e glorioso vinho, o sangue de Deus. Sim, a nenhum deles explicaria que tudo mudava lentamente... Que ela guardara o sorriso como quem apaga finalmente a lâmpada e resolve deitar-se. Agora as criaturas não eram admitidas no seu interior, nele fundindo-se. As relações com as pessoas tornavam-se cada vez mais diferentes das relações que mantinha consigo mesma. A doçura da infância desaparecia nos seus últimos traços, alguma fonte estancava para o exterior e o que ela oferecia aos passos dos estranhos era areia incolor e seca. Mas ela caminhava para frente, sempre para a frente como se anda na praia, o vento alisando o rosto, levando para trás os cabelos.

        Como entregar-lhes: é a segunda vertigem num só dia? mesmo que ardesse por confiar o segredo a alguém. Porque ninguém mais na sua vida, ninguém mais talvez haveria de lhe dizer, como o professor: vive-se e morre-se. Todos esqueciam, todos só sabiam brincar. Olhou-os. Sua tia brincava com uma casa, uma cozinheira, um marido, uma filha casada, visitas. O tio brincava com trabalho, com uma fazenda, com jogo de xadrez, com jornais. Joana procurou analisá-los, sentindo que assim os destruiria. Sim, gostavam-se de um modo longínquo e velho. De quando em quando, ocupados com seus brinquedos, lançavam-se olhares inquietos, como para se assegurarem de que continuavam a existir. Depois retomavam a morna distância que diminuía por ocasião de algum resfriado ou de um aniversário. Dormiam juntos certamente pensou Joana sem prazer na malícia.

        A tia estendeu-lhe o prato de pão em silêncio. O tio não levantava os olhos do prato.

        A comida era uma das grandes preocupações da casa, continuou Joana. À hora das refeições, os braços apoiados pesadamente sobre a mesa, o homem se alimentava arfando ligeiramente, porque sofria do coração, e enquanto mastigava, algum farelo esquecido fora da boca, seu olhar se fixava vidrado em qualquer ponto, a atenção voltada às sensações interiores que a comida lhe produzia. A tia cruzava os pés sob a cadeira, e, as sobrancelhas franzidas, comia com uma curiosidade que se renovava a cada garfada, o rosto rejuvenescido e móvel. Mas por que hoje não se abandonavam nas cadeiras? Por que cuidavam de não chocar os talheres, como se alguém estivesse morto ou dormindo? Sou eu, adivinhou Joana.

        Ao redor da mesa escura, sob a luz enfraquecida pelas franjas sujas do lustre, também o silêncio se sentara nessa noite. Joana em momentos parava para ouvir o ruído das duas bocas mastigando e o tic-tac leve e nervoso do relógio. Então a mulher erguia os olhos e imobilizada com o garfo na mão, esperava ansiosa e humilde. Joana desviava a vista, vitoriosa, abaixava a cabeça numa alegria profunda que inexplicavelmente vinha misturada a um aperto doloroso na garganta, a uma impossibilidade de soluçar.

        — Armanda não veio? — a voz de Joana apressou o tic-tac do relógio, fez nascer um súbito e rápido movimento na mesa.

        Os tios se entreolharam furtivamente. Joana respirou alto: tinha medo dela, pois?

        — O marido de Armanda hoje não está de plantão, por isso ela não veio jantar aqui, respondeu finalmente a tia. E de repente, satisfeita, pôs-se a comer. O tio mastigava mais depressa. O silêncio voltou sem dissolver o murmúrio longínquo do mar. Eles não tinham coragem, então.

        — Quando é que eu vou para o internato? — perguntou Joana.

        A terrina de sopa escorregou das mãos da tia, o caldo escuro e cínico espalhou-se rapidamente pela mesa. O tio abandonou os talheres sobre o prato, o rosto angustiado.

        — Como sabe que..., balbuciou confuso...

        Ela escutara à porta...

        A toalha embebida fumegava docemente como restos de um incêndio. Imóvel e fascinada como diante de algo irremediável, a mulher fitava a sopa derramada que esfriava rapidamente.

        [...]

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem, 15. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 73-76.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 494-495.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a principal preocupação de Joana no trecho?

      Joana está preocupada com a sua transição da infância para a adolescência e com a sua crescente dificuldade de se comunicar com os outros, especialmente com seus tios. Ela sente que ninguém a entende e que suas perguntas existenciais não encontram respostas.

02 – O que representa a figura do professor para Joana?

      O professor representa um momento de validação para Joana. Ele a encoraja a questionar e a buscar suas próprias respostas, mesmo que ele mesmo não as tenha. A resposta em si não é tão importante, mas sim a possibilidade de fazer a pergunta.

03 – Como Joana se sente em relação aos seus tios?

      Joana se sente distante e incompreendida por seus tios. Ela os vê como pessoas que se contentam com brinquedos superficiais (casa, casamento, trabalho) e que evitam confrontar as questões mais profundas da vida. Joana sente que eles não têm coragem de encarar a realidade da vida e da morte.

04 – Qual é o significado da sopa derramada na mesa?

      A sopa derramada simboliza a tensão e o desconforto na relação entre Joana e seus tios. É um momento de quebra da formalidade e de revelação de sentimentos reprimidos. A reação dos tios à sopa derramada mostra a fragilidade e a superficialidade de suas relações.

05 – Por que Joana tem medo de Armanda?

      O conto não explica explicitamente por que Joana tem medo de Armanda. No entanto, podemos inferir que Armanda representa um mundo adulto que Joana teme e do qual se sente excluída. A reação dos tios ao medo de Joana revela a fragilidade e a falta de comunicação na família.

06 – O que significa a pergunta de Joana sobre o internato?

      A pergunta de Joana sobre o internato revela sua intuição de que algo está para mudar em sua vida. Ela sente que está se distanciando de seus tios e que seu futuro pode estar em outro lugar. A reação dos tios à pergunta de Joana confirma suas suspeitas e intensifica a tensão na mesa.

07 – Qual é a importância do silêncio no conto?

      O silêncio é um elemento importante no conto, pois ele representa a falta de comunicação e a dificuldade de expressão dos sentimentos. O silêncio na mesa de jantar é opressor e revela a tensão entre os personagens. O tic-tac do relógio e o barulho da mastigação enfatizam o silêncio e criam uma atmosfera de desconforto.

 

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

CONTO: A MENOR MULHER DO MUNDO - FRAGMENTO - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: A menor mulher do mundo – Fragmento

           Clarice Lispector

        Nas profundezas da África Equatorial o explorador francês Marcel Pretre, caçador e homem do mundo, topou com uma tribo de pigmeus de uma pequenez surpreendente. Mais surpreso, pois, ficou ao ser informado de que menor povo ainda existia além de florestas e distâncias. Então mais fundo ele foi.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkARKZonRB3Lv6t0lB-JzG1OjQrhtQy-8YeHxBhebcYRhxfAmaHVQc0Wdyh5mynLR5cnvrLhJe2G3QcNvn-Ld7pFvWjJyh3MkI4F2jOUzDKJCHWFGmwHrhtnRygHdhM3to8GFemn8CBkBdx4gTadFxVc0X_l1dsUN2tZzB1l-E7LO551ENrayZqe4xs4g/s320/pigmeia.jpg


        No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do mundo. E — como uma caixa dentro de um caixa — entre os menores pigmeus do mundo estava o menor dos menores pigmeus do mundo, obedecendo talvez à necessidade que às vezes a Natureza tem de exceder a si própria.

        Entre mosquitos e árvores mornas de umidade, entre as folhas ricas do verde mais preguiçoso, Marcel Pretre defrontou-se com uma mulher de quarenta e cinco centímetros, madura, negra, calada. "Escura como um macaco", informaria ele à imprensa, e que vivia no topo de uma árvore com seu pequeno concubino. Nos tépidos humores silvestres, que arredondam cedo as frutas e lhes dão uma quase intolerável doçura ao paladar, ela estava grávida.

        Ali em pé estava, portanto, a menor mulher do mundo. Por um instante, no zumbido do calor, foi como se o francês tivesse inesperadamente chegado à conclusão última. Na certa, apenas por não ser louco, é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites. Sentindo necessidade imediata de ordem, e dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena Flor. E, para conseguir classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a seu respeito.

        [...]

        A fotografia de Pequena Flor foi publicada no suplemento colorido dos jornais de domingo, onde coube em tamanho natural. Enrolada num pano, com a barriga em estado adiantado. O nariz chato, a cara preta, os olhos fundos, os pés espalmados. Parecia um cachorro.

        Nesse domingo, num apartamento, uma mulher, ao olhar no jornal aberto o retrato de Pequena Flor, não quis olhar uma segunda vez "porque me dá aflição".

        Em outro apartamento uma senhora teve tal perversa ternura pela pequenez da mulher africana que — sendo tão melhor prevenir que remediar — jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a ternura da senhora. Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho. A senhora passou um dia perturbada, dir-se-ia tomada pela saudade. Aliás era primavera, uma bondade perigosa estava no ar.

        Em outra casa uma menina de cinco anos de idade, vendo o retrato e ouvindo os comentários, ficou espantada. Naquela casa de adultos, essa menina fora até agora o menor dos seres humanos. E se isso era fonte das melhores carícias, era também fonte deste primeiro medo do amor tirano. A existência de Pequena Flor levou a menina a sentir — com uma vaguidão que só anos e anos depois, por motivos bem diferentes, havia de se concretizar em pensamento — levou a sentir, numa primeira sabedoria, que "a desgraça não tem limites".

        Em outra casa, na sagração da primavera, a moça noiva teve um êxtase de piedade:

        — Mamãe, olhe o retratinho dela, coitadinha! Olhe só como ela é tristinha!

        — Mas — disse a mãe, dura e derrotada e orgulhosa — mas é tristeza de bicho, não é tristeza humana.

        — Oh! Mamãe — disse a moça desanimada.

        Foi em outra casa que um menino esperto teve uma ideia esperta:

        — Mamãe, e se eu botasse essa mulherzinha africana na cama de Paulinho enquanto ele está dormindo? Quando ele acordasse, que susto, hein! Que berro, vendo ela sentada na cama! E a gente então brincava tanto com ela! A gente fazia ela o brinquedo da gente, hein!

        A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo de orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver num armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve terror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felicidade. Assim olhou ela, com muita atenção e um orgulho inconfortável, aquele menino que já estava sem os dois dentes da frente, a evolução, a evolução se fazendo, dente caindo para nascer o que melhor morde. "Vou comprar um terno novo para ele", resolveu, olhando-o absorta. Obstinadamente enfeitava o filho desdentado com roupas finas, obstinadamente queria-o bem limpo, como se limpeza desse ênfase a uma superficialidade tranquilizadora, obstinadamente aperfeiçoando o lado cortês da beleza. Obstinadamente afastando-se, e afastando-o, de alguma coisa que devia ser "escura como um macaco". Então, olhando para o espelho do banheiro, a mãe sorriu intencionalmente fina e polida, colocando, entre aquele seu rosto de linhas abstratas e a cara crua de Pequena Flor, a distância insuperável de milênios. Mas, com anos de prática, sabia que este seria um domingo em que teria de disfarçar de si mesma a ansiedade, o sonho, e milênios perdidos.

        Em outra casa, junto a uma parede, deram-se ao trabalho alvoroçado de calcular com fita métrica os quarenta e cinco centímetros de Pequena Flor. E foi aí mesmo que, em delícia, se espantaram: ela era ainda menor que o mais agudo da imaginação inventaria. No coração de cada membro da família nasceu, nostálgico, o desejo de ter para si aquela coisa miúda e indomável, aquela coisa salva de ser comida, aquela fonte permanente de caridade. A alma ávida da família queria devotar-se. E, mesmo, quem já não desejou possuir um ser humano só para si? O que, é verdade, nem sempre seria cômodo, há horas em que não se quer ter sentimentos:

        — Aposto que se ela morasse aqui terminava em briga — disse o pai sentado na poltrona, virando definitivamente a página do jornal. — Nesta casa tudo termina em briga.

        — Você, José, sempre pessimista — disse a mãe.

        — A senhora já pensou, mamãe, de que tamanho será o nenenzinho dela? — disse ardente a filha mais velha de treze anos.

        O pai mexeu-se atrás do jornal.

        — Deve ser o bebê preto menor do mundo — respondeu a mãe, derretendo-se de gosto. — Imagine só ela servindo a mesa aqui de casa! E de barriguinha grande!

        — Chega de conversas! — engrolou o pai.

        — Você há de convir — disse a mãe inesperadamente ofendida — que se trata de uma coisa rara. Você é que é insensível.

        E a própria coisa rara?

        Enquanto isso na África, a própria coisa rara tinha no coração — quem sabe se negro também, pois numa Natureza que errou uma vez já não se pode mais confiar — enquanto isso a própria coisa rara tinha no coração algo mais raro ainda, assim como o segredo do próprio segredo: um filho mínimo. Metodicamente o explorador examinou com o olhar a barriguinha do menor ser humano maduro. Foi neste instante que o explorador, pela primeira vez desde que a conhecera, em vez de sentir curiosidade ou exaltação ou vitória ou espírito científico, o explorador sentiu mal-estar.

        É que a menor mulher do mundo estava rindo.

        Estava rindo, quente, quente. Pequena Flor estava gozando a vida. A própria coisa rara estava tendo a inefável sensação de ainda não ter sido comida. Não ter sido comida era que, em outras horas, lhe dava o ágil impulso de pular de galho em galho. Mas, neste momento de tranquilidade, entre as espessas folhas do Congo Central, ela não estava aplicando esse impulso numa ação — e o impulso se concentrara todo na própria pequenez da própria coisa rara. E então ela estava rindo. Era um riso como somente quem não fala, ri. Esse riso, o explorador constrangido não conseguiu classificar. E ela continuou fruindo o próprio riso macio, ela que não estava sendo devorada. Não ser devorado é o sentimento mais perfeito. Não ser devorado é o objetivo secreto de toda uma vida. Enquanto ela não estava sendo comida, seu riso bestial era tão delicado como é delicada a alegria. O explorador estava atrapalhado.

        Em segundo lugar, se a própria coisa rara estava rindo, era porque, dentro dessa sua pequenez, grande escuridão pudera-se em movimento.

        É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode chamar de Amor. Ela amava aquele explorador amarelo. Se soubesse falar e dissesse que o amava, ele inflaria de vaidade. Vaidade que diminuiria quando ela acrescentasse que também amava muito o anel do explorador e que amava muito a bota do explorador. E quando este desinchasse desapontado, Pequena Flor não compreenderia por quê. Pois, nem de longe, seu amor pelo explorador — pode-se mesmo dizer seu "profundo amor", porque, não tendo outros recursos, ela estava reduzida à profundeza — pois nem de longe seu profundo amor pelo explorador ficaria desvalorizado pelo fato de ela também amar sua bota. Há um velho equívoco sobre a palavra amor, e, se muitos filhos nascem desse equívoco, tantos outros perderam o único instante de nascer apenas por causa de uma suscetibilidade que exige que seja de mim, de mim! que se goste, e não de meu dinheiro. Mas na umidade da floresta não há desses refinamentos cruéis, e amor é não ser comido, amor é achar bonita uma bota, amor é gostar da cor rara de um homem que não é negro, amor é rir de amor a um anel que brilha. Pequena Flor piscava de amor, e riu quente, pequena, grávida, quente.

        O explorador tentou sorrir-lhe de volta, sem saber exatamente a que abismo seu sorriso respondia, e então perturbou-se como só homem de tamanho grande se perturba. Disfarçou ajeitando melhor o chapéu de explorador, corou pudico. Tornou-se uma cor linda, a sua, de um rosa-esverdeado, como a de um limão de madrugada. Ele devia ser azedo.

        Foi provavelmente ao ajeitar o capacete simbólico que o explorador se chamou à ordem, recuperou com severidade a disciplina de trabalho, e recomeçou a anotar. Aprendera a entender algumas das poucas palavras articuladas da tribo, e a interpretar os sinais. Já conseguia fazer perguntas.

        Pequena Flor respondeu-lhe que "sim". Que era muito bom ter uma árvore para morar, sua, sua mesmo. Pois — e isso ela não disse, mas seus olhos se tornaram tão escuros que o disseram — pois é bom possuir, é bom possuir, é bom possuir. O explorador pestanejou várias vezes.

        Marcel Pretre teve vários momentos difíceis consigo mesmo. Mas pelo menos ocupou-se em tomar notas e notas. Quem não tomou notas é que teve que se arranjar como pôde:

        — Pois olhe — declarou de repente uma velha fechando o jornal com decisão — pois olhe, eu só lhe digo uma coisa: Deus sabe o que faz.

LISPECTOR, Clarice. A menor mulher do mundo. In: Laços de família. 10. ed. Rio de Janeiro. José Olympio, 1978. p. 77-86.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 3 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 247-251.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Concubino: amante.

·        Tépido: morno.

·        Humor: umidade.

·        Engrolar: pronunciar mal.

·        Inefável: indizível, encantador.

·        Fluir: gozar, desfrutar.

02 – Qual a principal característica física de Pequena Flor?

      Pequena Flor é descrita como a menor mulher do mundo, com apenas 45 centímetros. Sua aparência exótica e sua condição de menor a tornam um objeto de curiosidade e fascínio.

03 – Como Pequena Flor é vista pelos outros personagens e pela sociedade?

      Pequena Flor é vista como uma curiosidade, um objeto de estudo e de contemplação. Sua pequenez a torna um símbolo da diferença e da excentricidade.

04 – Quais são os sentimentos de Pequena Flor em relação à sua condição?

      O conto não explora em profundidade os sentimentos de Pequena Flor, mas sugere que ela aceita sua condição e encontra felicidade em sua vida simples. Seu riso é descrito como "quente" e "macio", indicando uma sensação de bem-estar e contentamento.

05 – Qual o impacto do encontro de Marcel Pretre com Pequena Flor?

      O encontro com Pequena Flor provoca uma crise existencial em Marcel Pretre. Ele se questiona sobre a natureza humana, a felicidade e o significado da vida.

06 – Como a relação entre Marcel Pretre e Pequena Flor se desenvolve?

      A relação entre os dois personagens é marcada pela curiosidade e pela incompreensão. Marcel Pretre tenta classificar e entender Pequena Flor, enquanto ela o observa com um olhar enigmático.

07 – Como as diferentes pessoas reagem à notícia sobre Pequena Flor?

      As pessoas reagem de forma diversa ao saber da existência de Pequena Flor. Algumas sentem pena, outras curiosidade, e outras ainda, um desejo de posse ou de exploração.

08 – Qual a crítica social presente nas reações das pessoas?

      O conto critica a curiosidade mórbida, a superficialidade e a falta de empatia das pessoas. As reações das pessoas revelam a tendência humana a julgar e a categorizar os outros com base em suas diferenças.

09 – Quais os temas principais do conto?

      Os temas principais do conto são a diferença, a identidade, a felicidade, a exploração e a natureza humana.

10 – Qual a importância da natureza no conto?

      A natureza é um personagem fundamental no conto. A floresta, com sua exuberância e mistério, serve como pano de fundo para a história e simboliza a liberdade e a espontaneidade.

11 – Qual a mensagem final do conto?

      O conto nos convida a refletir sobre o significado da felicidade e da existência. Pequena Flor, com sua simplicidade e alegria, nos mostra que a felicidade não está ligada à posse ou ao status social, mas sim à aceitação de si mesmo e à capacidade de encontrar prazer nas pequenas coisas da vida.

 

 

CONTO: AS CARIDADES ODIOSAS - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: As caridades odiosas

            Clarice Lispector

        Foi uma tarde de sensibilidade ou de suscetibilidade? Eu passava pela rua depressa, emaranhada nos meus pensamentos, como às vezes acontece. Foi quando meu vestido me reteve: alguma coisa se enganchara na minha saia. Voltei-me e vi que se tratava de uma mão pequena e escura. Pertencia a um menino a que a sujeira e o sangue interno davam um tom quente de pele. O menino estava de pé no degrau da grande confeitaria. Seus olhos, mais do que suas palavras meio engolidas, informavam-me de sua paciente aflição. Paciente demais. Percebi vagamente um pedido, antes de compreender o seu sentido concreto. Um pouco aturdida eu o olhava, ainda em dúvida se fora a mão da criança o que me ceifara os pensamentos.

 
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjIaVzh7Wwf8GFOtJLnfRiEzSzSuDcnmTigpDENJyxTqeQBSEPAIRuKMbVChws5cJrc1vUj5ot-PHPmCOHDtfIXjxQ-VhAqr2qxFFxneZ6_t-XxHz9yODwDY638JgRwN5-fCbFd8Evm1HiWkbbXTrBNJUS2P7JkTIsK1_sHC6UXxkc90GILnabte0frvKo/s320/DOCE.jpg

        -- Um doce, moça, compre um doce para mim.

        Acordei finalmente. O que estivera eu pensando antes de encontrar o menino? O fato é que o pedido deste pareceu cumular uma lacuna, dar uma resposta que podia servir para qualquer pergunta, assim como uma grande chuva pode matar a sede de quem queria uns goles de água.

        Sem olhar para os lados, por pudor talvez, sem querer espiar as mesas da confeitaria onde possivelmente algum conhecido tomava sorvete, entrei, fui ao balcão e disse com uma dureza que só Deus sabe explicar: Um doce para o menino.

        De que tinha eu medo? Eu não olhava a criança, queria que a cena, humilhante para mim, terminasse logo. Perguntei-lhe: que doce você…

        Antes de terminar, o menino disse apontado depressa com o dedo: Aquelezinho ali, com chocolate por cima. Por um instante perplexa, eu me recompus logo e ordenei, com aspereza, à caixeira que o servisse.

        -- Que outro doce você quer? Perguntei ao menino escuro.

        Este, que mexendo as mãos e a boca ainda esperava com ansiedade pelo primeiro, interrompeu-se, olhou-me um instante e disse com delicadeza insuportável, mostrando os dentes: não precisa de outro não. Ele poupava a minha bondade.

        -- Precisa sim, cortei eu ofegante, empurrando-o para a frente. O menino hesitou e disse: Aquele amarelo de ovo. Recebeu um doce em cada mão, levantando as duas acima da cabeça, com medo talvez de apertá-los. Mesmo os doces estavam tão acima do menino escuro. E foi sem olhar para mim que ele, mais do que foi embora, fugiu. A caixeirinha olhava tudo:

        -- Afinal uma alma caridosa apareceu. Esse menino estava nesta porta há mais de uma hora, puxando todas as pessoas que passavam, mas ninguém quis dar.

        Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Era inútil querer voltar aos pensamentos anteriores. Eu estava cheia de um sentimento, gratidão, revolta e vergonha. Mas como se costuma dizer, o Sol parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de…E para isso fora necessário um menino magro e escuro…E para isso fora necessário que outros não lhe tivessem dado um doce.

        E as pessoas que tomavam sorvete? Agora, o que eu queria saber com autocrueldade era o seguinte: temera que os outros me vissem ou que os outros não me vissem? O fato é que, quando atravessei a rua, o que teria sido piedade já se estrangulara sob outros sentimentos. E, agora sozinha, meus pensamentos voltaram lentamente a ser os anteriores, só que inúteis.

LISPECTOR, Clarice. As caridades odiosas. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1984. p. 380-3.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 3 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 233-4.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal emoção experimentada pela narradora ao longo do conto?

      A narradora experimenta uma gama de emoções complexas, como culpa, vergonha, gratidão e revolta. O encontro com o menino a leva a questionar suas próprias atitudes e a refletir sobre a condição humana.

02 – Como a narradora descreve seus próprios pensamentos antes de encontrar o menino?

      A narradora se descreve como "emaranhada nos meus pensamentos", sugerindo um estado de distração e introspecção. Seus pensamentos são vagos e não são revelados ao leitor.

03 – Qual a atitude inicial da narradora em relação ao pedido do menino?

      Inicialmente, a narradora se sente incomodada com o pedido do menino e demonstra certa relutância em atendê-lo. Ela parece mais preocupada com sua própria imagem e com o que os outros pensarão do que com a necessidade da criança.

04 – Qual o papel do menino na narrativa?

      O menino representa a pobreza, a necessidade e a vulnerabilidade. Seu pedido desperta na narradora uma série de sentimentos conflitantes e a leva a confrontar suas próprias contradições.

05 – Como a narradora descreve o menino?

      A narradora descreve o menino como magro, sujo e com um olhar de "paciente aflição". Sua aparência física contrasta com a opulência da confeitaria e da sociedade em que a narradora vive.

06 – Por que a narradora se sente envergonhada após ajudar o menino?

      A narradora se sente envergonhada porque percebe que seu ato de caridade foi motivado mais pela culpa e pela necessidade de aliviar sua própria consciência do que por um genuíno desejo de ajudar o menino.

07 – Qual a diferença entre a caridade da narradora e a caridade esperada pela sociedade?

      A caridade da narradora é marcada pela culpa e pela vergonha, enquanto a caridade esperada pela sociedade é vista como um ato de bondade e generosidade. A narradora questiona a sinceridade e as motivações por trás dos atos caridosos.

08 – Qual o tema central do conto "As caridades odiosas"?

      O tema central do conto é a hipocrisia da sociedade e a complexidade da natureza humana. A narradora explora a questão da caridade e da compaixão, questionando as motivações que levam as pessoas a ajudar ou a ignorar o sofrimento alheio.

09 – Qual a crítica social presente no conto?

      O conto critica a indiferença e a desigualdade social. A figura do menino faminto em frente a uma confeitaria luxuosa evidencia as disparidades sociais e a falta de empatia de muitas pessoas.

10 – Qual a importância do título "As caridades odiosas"?

      O título reflete a ambivalência da experiência da narradora. A caridade, que deveria ser um ato de bondade, torna-se odiosa quando motivada por sentimentos como culpa e vergonha, em vez de compaixão genuína. O título também sugere que a forma como a caridade é praticada pode ser tão importante quanto o ato em si.

 

 

segunda-feira, 13 de maio de 2024

CRÔNICA SOCIAL - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Crônica social

            Clarice Lispector

Era um almoço de senhoras. Não só a anfitrioa como cada convidada parecia estar satisfeita por tudo estar saindo bem. Como se houvesse sempre o perigo de subitamente revelar-se que aquela realidade de garçons mudos, de flores e de elegância estava um pouco acima delas - não por condição social, apenas isso: acima delas. Talvez acima do fato de serem simplesmente mulher e não apenas senhoras. Se todas tinham direito a esse ambiente, pareciam no entanto recear o momento da gafe. Gafe é a hora em que certa realidade se revela.
O almoço estava bem servido, inteiramente longe da ideia de cozinha: antes da chegada das convidadas haviam sido retirados todos os andaimes.

O que não impediu que cada uma tivesse que perdoar um pequeno detalhe, a bem dessa entidade: o almoço. O detalhe a perdoar de certa mente no seu penteado, o que lhe dava um desses sobressaltos que pressagiam catástrofe. Havia dois garçons. O que servia esta senhora ficou-lhe invisível o tempo todo. E não se acredita que ele tivesse visto o rosto dessa senhora. Sem a possibilidade de se conhecerem jamais, suas relações se estabeleciam através de periódicos toques no penteado. E ele sentia. Através do penteado sentia-se aos poucos odiado e ele mesmo começou a sentir cólera.

Supõe-se que cada conviva teve sua pequena veia de sangue no meio do grande almoço. Cada uma deve ter tido, por um momento ao menos, esse aviso urgente e pungente de um penteado que pode desabar - precipitando o almoço em desastre.

A anfitrioa usava de uma ligeira autoridade que não lhe ficasse mal. Às vezes, porém, esqueça que a observavam e tomava expressões um pouco surpreendentes. Como seja, um ar de cansaço excitado e de decepção. Os então como em certo momento - que pensamento vago e angustiado passou-lhe pela cabeça? - olhou inteiramente ausente a vizinha da direita que lhe falava. A vizinha lhe disse: "A paisagem lá é soberba!" E a anfitrioa, com um tom de ânsia, sonho e doçura, respondeu pressurosa:

- Pois é... é mesmo... não é?

Quem dentre todas aproveitou melhor foi a senhora X, convidada da honra que, sempre convidadíssima por todos, já reduzira o almoço a apenas almoçar. Entre gestos delicados e grande tranquilidade, devorou com prazer o cardápio francês - mergulhava a colher na boca, e depois olhava-a com muita curiosidade, resquícios da infância.

Mas em todas as outras convidadas, uma naturalidade fingida. Quem sabe, se fingissem menos naturalidade ficassem mais naturais. Ninguém ousaria. Cada uma tinha um pouco de medo de si própria, como se se achasse capaz das maiores grosserias mal se abandonasse um pouco. Não: o compromisso fora o de tornar o almoço perfeito.

E nem havia como se abandonar, a menos que fosse admitido o ocasional silêncio. O que seria impossível. Mal um assunto vinha por acaso e natural, era truculentamente que todas lhe caíam em cima, prolongando-o até às reticências. Como todas o exploravam no mesmo sentido - pois todas estavam a par das mesmas coisas - e como não ocorreria uma divergência de opinião, cada assunto era de novo uma possibilidade de silêncio.

A senhora Z, grande, sadia, com flores no corpete, 50 anos, recém-casada. Tinha o riso fácil e emocionado de quem casou tarde. Todas pareciam em cumplicidade achá-la ridícula. O que aliviava um pouco a tensão. Mas ela era um pouco claramente ridícula demais, não devia ser essa a sua chave - se a nossa vizinha do lado nos desse tempo de procurar qualquer chave que fosse. Não dava tempo: falava.

O pior é que uma das convidadas só falava francês. O que fazia com que a senhora Y estivesse em dificuldades. A desforra vinha quando a estrangeira dizia uma daquelas frases que, como resposta, podem ser exatamente repetidas, apenas com uma mudança de entonação. "Il n'est pas mal", dizia a estrangeira. Então a senhora Y, segura de que estaria falando certo, repetia enfim a frase, bem alto, cheia de espanto e do prazer de quem pensou e descobriu: "Ah, il n'est pas mal, il n'est pas mal." Pois, como disse outra convidada sem ser estrangeira e a propósito de outra coisa: "C'est le tan qui fait la chamon."

Quanto à senhora K., vestida de cinza, estava sempre disposta a ouvir e a responder. Sentia-se bem em ser um pouco apagada. Descobriria que sua melhor era a da discrição e usava-a com certa abundância. "Desse modo de ser que arranjei ninguém me tira", diziam seus olhos sorridentes e maternais. Arranjara mesmos sinais para a sua discrição, como a história dos espiões que usavam distintivos de espiões. Assim, vestia-se claramente com roupas chamadas discretas. Suas joias eram francamente discretas. Aliás, as discretas formam uma corporação. Elas se reconhecem a um olhar, e, louvando uma a outra, louvam-se ao mesmo tempo.

A conversa começou sobre cachorros. A conversa final, na hora do licor, não se sabe por que tendência ao círculo perfeito, tratou de cachorros. A doce anfitrioa tinha um cão chamado José. O que nenhuma da corporação das discretas faria. O cachorro delas se chamaria Rex, e, ainda assim, em algum momento discreto, elas diriam: "Foi meu filho quem deu o nome." Na corporação das discretas usa-se muito falar dos filhos como de adoráveis tiranos das casas. "Meu filho acha este meu vestido horrível." "Minha filha comprou entradas para o concerto mas acho que não vou, ela vai com o pai." De um modo geral uma dama pertencente à corporação das discretas é convidada por causa de seu marido, homem de altos negócios, ou de falecido pai, provavelmente jurista de nome.

Levantam-se da mesa. As que dobram ligeiramente o guardanapo antes de se erguer é porque assim foram ensinadas. As que o deixam negligentemente largado têm uma teoria sobre deixar guardanapos negligentemente largado.

O café suaviza um pouco a copiosa e fina refeição, mas o licor mistura-se aos vinhos anteriores, dando uma vaguidão arfante às convidadas. Quem fuma, fuma: quem não fuma, não fuma. Todas fumam. A anfitroa sorri, sorri, cansada. Todas enfim se despedem. Com o resto da tarde estragada. Umas voltam para a casa com a tarde partida. Outras aproveitam o fato de já estarem vestidas para fazer alguma visita. Só Deus sabe, se não de pêsames. Terra é terra, come-se, morre-se.

De um modo geral o almoço foi perfeito. Será preciso retribuir em breve. Não.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjNChdrIIUeCOEgClnZzXlxmlqL-7VjUC68PZL9D_CHFXTh8WqkvsJ15hreDUS3V4CyNFXp6z83PkqEEiHxe3uY4opqt4fpSEE_QKpUVM2rkhLVJ-w8zsKWRCERYecKVGfgg57CIiohJ1zu7oLN51V7pxIbXKVwlXywAKeeKTBXIjUca7TVaVHRzN1FRm4/s1600/SENHORAS.jpg
Entendendo o texto

01. Qual é a atmosfera predominante descrita na crônica durante o almoço das senhoras?

A atmosfera predominante é de tensão e artificialidade, onde cada detalhe é cuidadosamente mantido para sustentar uma ilusão de perfeição.

02. Como as convidadas parecem se comportar durante o almoço?

As convidadas parecem se comportar de maneira tensa e preocupada, tentando manter uma fachada de naturalidade e elegância, mas com medo constante de cometer uma gafe.

03. Qual é o papel da anfitriã nesse contexto social?

A anfitriã tenta liderar e controlar o ambiente, mas ocasionalmente mostra sinais de cansaço e descontentamento.

04. Como a crônica retrata as relações entre as convidadas e os garçons?

As relações entre as convidadas e os garçons são distantes e estranhas, marcadas por interações mínimas e mal-entendidos.

05. Qual é a ironia presente na maneira como as senhoras interagem entre si durante o almoço?

A ironia está na artificialidade e na tensão subjacentes às interações, onde a busca por perfeição contrasta com a inevitável inadequação e insegurança.

06. Como a crônica retrata a preocupação das senhoras com a aparência e o comportamento social?

As senhoras demonstram uma preocupação constante com sua aparência e comportamento, temendo uma possível ruptura da fachada cuidadosamente mantida.

07. Qual é o contraste entre a convidada especial, senhora X, e o restante das convidadas?

Senhora X parece desfrutar genuinamente do almoço, contrastando com as outras que estão mais preocupadas com as formalidades sociais.

08. Que tipo de conversas predominam durante o almoço?

As conversas predominantes parecem ser superficiais e triviais, com destaque para assuntos como cachorros, mantendo-se dentro de um escopo seguro e compartilhado.

09. Como a crônica utiliza detalhes como a maneira de dobrar os guardanapos para transmitir nuances sociais?

A crônica utiliza esses detalhes para ilustrar as regras não ditas e as expectativas sociais que permeiam o evento, revelando a complexidade por trás de gestos aparentemente simples.

10. Qual é a mensagem central transmitida pela crônica em relação às convenções sociais e à natureza humana?

A crônica destaca a fragilidade das convenções sociais e a inevitabilidade das imperfeições humanas, sublinhando a tensão entre a busca pela perfeição e a realidade da natureza humana com suas falhas e inseguranças.