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quarta-feira, 4 de junho de 2025

CONTO: A PAIXÃO SEGUNDO G.H. - FRAGMENTO - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: A PAIXÃO SEGUNDO G. H. – Fragmento

            Clarice Lispector

        [...]

        Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo, então? Mas se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vagalhões de mudez.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgFyH4mvUwYH6lkbJX1_5BGFdI1zaV_VQ6Um2TIGwpVDPnwTiO-4Glq88J8oAr3cb05ZI-eI0KzzxRmIA1hTjHap2IVvx1js0C9i97Vr6E11oxZj1wy_gdslTNP5OQmjfH99zlESbyaAcxJMRN-bAB5vjrg3eaLPPA2o9sO2D5euorQtUp0Sar5dWYODbU/s320/91uh24xeIKL._UF894,1000_QL80_.jpg


        [...]

        Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo – traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria linguagem.

        [...].

São Paulo: ALLCA XX/Scipione Cultural, 199. p. 14-15.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 3ª Série – Ensino Médio – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª ed. – São Paulo: Saraiva Editora, 2013. p. 299.

Entendendo o conto:

01 – Qual o dilema inicial que a narradora expressa em relação à sua capacidade de se comunicar?

      O dilema inicial da narradora é a tensão entre o desejo de falar e a iminência do silêncio total. Ela sente que se não "forçar a palavra", a mudez a "engolfará para sempre em ondas", indicando que a linguagem é sua única tábua de salvação contra o vazio.

02 – Por que a narradora afirma que "viver não é relatável" e "viver não é vivível"?

      A narradora afirma isso porque entende que a experiência pura da vida transcende a capacidade da linguagem de capturá-la integralmente. Ela percebe que a vivência em si é tão profunda e multifacetada que não pode ser contida ou expressa de forma direta e completa pelas palavras.

03 – Qual a diferença que a narradora estabelece entre "criar" e "imaginar", e qual a importância de "criar" para ela?

      Para a narradora, "criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade". Isso significa que "criar" não é inventar algo que não existe, mas sim um processo de apreensão e compreensão da realidade em sua essência mais profunda, um modo de "traduzir o desconhecido" para que a experiência vivida possa ser de alguma forma acessada e comunicada.

04 – Que analogia a narradora usa para descrever o processo de tentar traduzir o indizível?

      A narradora usa a analogia de "traduzir sinais de telégrafo", mais especificamente, "traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais". Essa analogia ilustra a dificuldade extrema e a natureza quase impossível de sua tarefa de expressar o que vivenciou.

05 – Que tipo de linguagem a narradora prevê que usará para expressar o que lhe aconteceu e qual a característica peculiar dessa linguagem?

      A narradora prevê que usará uma "linguagem sonâmbula". A característica peculiar dessa linguagem é que, se ela estivesse "acordada", essa forma de expressão não seria considerada linguagem. Isso sugere uma comunicação que transcende a lógica e a racionalidade convencionais, emergindo de um estado de consciência alterado, necessário para alcançar a verdade de sua experiência.

 

ENTREVISTA: QUE MISTÉRIO TEM CLARICE? - RENATO CORDEIRO GOMES - COM GABARITO

 Entrevista: Que mistério tem Clarice? (Texto-montagem)

                   Renato Cordeiro Gomes

        Não gosto de dar entrevistas: as perguntas me constrangem, custo a responder, e, ainda por cima, sei que o entrevistador vai deformar fatalmente minhas palavras.

        Assim, para não correr esse risco e não haver constrangimento, não aconteceu nenhuma entrevista, apesar do bate-papo descontraído e, por fim, amigo, numa sala acolhedora, no Leme, onde moram Clarice e seus mistérios.

        Houve não-perguntas, mas há respostas (?). Revelação! Diante da máquina de escrever, ELA fala:

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjEcCzORaUpfkWM2OYNL0l7VsMYv9SveI9vTMkHFo4CuXG-ApdkRQQIRIvS4yUDqDCHzrwROba_zbUJpMc-HYyvEZ2GgYXjiCY6r3j3eu4ko_ja914U_SZC8tkp0x7MYjazA6U_5FnTM4J1reeaQjV6InqqkFX-v0_td4AV1rmbXexziIzfbKRUPESGoxc/s320/Ruins_of_Chechelnyk_synagogue.jpg


        Explicação de uma vez por todas

        Recebo de vez em quando carta perguntando-me se sou russa ou brasileira, e me rodeiam de mitos.

        Vou esclarecer de uma vez por todas: não há simplesmente mistério que justifique mitos, lamento muito. E a história é a seguinte: nasci na Ucrânia, terra de meus pais. Nasci numa aldeia chamada Tchetchelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante. Quando minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em Tchetchelnik para eu nascer, e prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas dois meses de idade.

        Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata.

        Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. Comecei a escrever pequenos contos logo que me alfabetizaram, e escrevi-os em português, é claro. Criei-me em Recife, e acho que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é viver mais intensamente e de perto a verdadeira vida brasileira que lá, no interior, não recebe influência de costumes de outros países. Minhas crendices foram aprendidas em Pernambuco, as comidas que mais gosto são pernambucanas. E através de empregadas, aprendi o rico folclore de lá.

        Somente na puberdade vim para o Rio com minha família: era a cidade grande e cosmopolita que, no entanto, em breve se tornava para mim brasileira-carioca.

        Quanto a meus rr enrolados, estilo francês, quando falo, e que me dão um ar de estrangeira, trata-se apenas de um defeito de dicção: simplesmente não consigo falar de outro jeito. Defeito esse que meu amigo Dr. Pedro Bloch disse ser facílimo de corrigir e que ele faria isso para mim. Mas sou preguiçosa, sei de antemão que não faria os exercícios em casa. E além do mais meus rr não me fazem mal algum. Outro mistério, portanto, elucidado.

        O que não será jamais elucidado é o meu destino. Se minha família tivesse optado pelos Estados Unidos, eu teria sido escritora? Em inglês, naturalmente, se fosse. Teria casado provavelmente com um americano e teria filhos americanos. E minha vida seria inteiramente outra. Escreveria sobre o quê? O que é que amaria? Seria de que Partido? Que gênero de amigos teria? Mistério.

        A gente nasce para alguma coisa, da qual vamos tomando consciência à medida que cumprimos nossa existência, num ato de doação. Para que você nasceu, Clarice?

        As três experiências

        Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O "amar os outros" é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.

        E nasci para escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por que, foi esta que eu segui. Talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo escrever. Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E, no entanto, cada vez que vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estreia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever.

        Quanto a meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu quis ser mãe. Meus dois filhos foram gerados voluntariamente. Os dois meninos estão aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos e angústias, eu lhes dou o que é possível dar. Se eu não fosse mãe, seria sozinha no mundo. Mas tenho uma descendência, e para eles no futuro eu preparo meu nome dia a dia. Sei que um dia abrirão as asas para o voo necessário, e eu ficarei sozinha. É fatal, porque a gente não cria os filhos para a gente, nós criamos para eles mesmos. Quando eu ficar sozinha, estarei seguindo o destino de todas as mulheres.

        Sempre me restará amar. Escrever é alguma coisa extremamente forte, mas que pode me trair e me abandonar: posso um dia sentir que já escrevi o que é o meu lote neste mundo e que eu devo aprender também a parar. Em escrever eu não tenho nenhuma garantia.

        Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer. Amar não acaba. É como se o mundo estivesse à minha espera. E eu vou de encontro ao que me espera.

        Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo. Lucidamente apenas falo de algumas das milhares de coisas e pessoas de quem eu tomo conta. Também não se trata de um emprego, pois dinheiro não ganho com isso. Fico apenas sabendo como é o mundo.

        Mas por que você toma conta do mundo, se isto lhe dá trabalho?

        É que nasci assim, incumbida. E sou responsável por tudo o que existe, inclusive pelas guerras e pelos crimes de lesa-corpo e lesa-alma. Sou inclusive responsável pelo Deus que está em constante cósmica evolução para melhor.

        O saber e o não-saber

        Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo o que não sei e – por ser um campo virgem – está livre de preconceitos. Tudo o que não sei é a minha parte maior e melhor: é a minha largueza. É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que constitui a minha verdade. 

        O mistério da criação artística

        Quando comecei a escrever, que desejava atingir? Queria escrever alguma coisa que fosse tranquila e sem modas, alguma coisa como a lembrança de um alto monumento que parece mais alto porque é lembrança. Mas queria, de passagem, ter realmente tocado no monumento. Sinceramente não sei o que simbolizava para mim a palavra monumento. E terminei escrevendo coisas inteiramente diferentes.

        Dois modos

        Como se eu procurasse não aproveitar a vida imediata mas sim a mais profunda, o que me dá dois modos de ser: em vida, observo muito, sou ativa nas observações, tenho o senso do ridículo, do bom humor, da ironia, e tomo um partido. Escrevendo, tenho observações por assim dizer passivas, tão interiores que se escrevem ao mesmo tempo em que são sentidas, quase sem o que se chama de processo.

        E por isso que no escrever eu não escolho, não posso me multiplicar em mil, me sinto fatal a despeito de mim.

        A criação artística é um mistério que me escapa, felizmente.

        Aceitando o risco

        Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento (a transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender se não usar o processo de escrever. Escrever é compreender melhor. Se às vezes tomo sem querer um ar hermético, é que não só o principal é não mentir o sentimento como porque tenho incapacidade de transpô-lo de um modo claro sem que mentisse – e mentir o pensamento seria tirar a única alegria de escrever. Assim, tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermético, o que acho bem chato nos outros. Depois da coisa escrita, poderia eu friamente torná-la menos hermética, mais explicativa? Mas é que respeito um certo tom peculiar ao mistério natural da criação não substituível (esse mistério) por clareza outra nenhuma. Também porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como num copo d'água, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a água fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco. Aceitei risco bem maior, como todo o mundo que vive. E se aceito o risco não é por liberdade arbitrária ou inconsciência ou arrogância: a cada dia que acordo, por hábito até, aceito o risco. Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, escrever.

        Nem tudo o que escrevo resulta numa realização, resulta mais numa tentativa. O que também é um prazer. Pois nem tudo eu quero pegar. Às vezes quero apenas tocar. Depois o que toco às vezes floresce e os outros podem pegar com as duas mãos.

        Às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia.

        Literatura e justiça

        Minha tolerância em relação a mim, como pessoa que escreve, é perdoar eu não saber como me expressar de um modo "literário" (isto é, transformando na veemência da arte) da "coisa social". Desde que me conheço o fato social teve em mim importância maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir "arte", senti a beleza profunda da luta. O problema de justiça é em mim um sentimento tão óbvio e tão básico que não consigo me surpreender com ele - e, sem me surpreender, não consigo escrever. E também porque para mim escrever é procurar. O sentimento de justiça nunca foi procura em mim, nunca chegou a ser descoberto, e o que me espanta é que ele não seja igualmente óbvio em todos. Na verdade sinto-me engajada. Tudo o que escrevo está ligado, pelo menos dentro de mim, à realidade em que vivemos.

        Autocrítica

        Esta autocrítica tem que ser complacente, porque se fosse aguda demais isso talvez me fizesse nunca mais escrever. Mas eu queria escrever, algum dia talvez. Embora sentindo que, se voltasse a escrever, seria de um modo diferente do meu antigo: diferente em quê? Não me interessa. Minha autocrítica a certas coisas que escrevo, não importa no caso se boas ou más, – falta a elas chegar àquele ponto em que a dor se mistura à profunda alegria, e a alegria chega a ser dolorosa – pois esse ponto é o aguilhão da vida.

        E quantas vezes conseguimos o encontro máximo de um ser com outro ser, quando com espanto dizemos: "Ah!". Às vezes esse encontro consigo próprio se consegue através do encontro de um ser com outro ser.

        Não, eu não teria vergonha de dizer tão claramente o que eu quereria para o futuro: quereria o máximo, e o máximo deve ser atingido e dito com a matemática perfeição da música ouvida e transposta para o profundo arrebatamento que sentimos. Não transposta, pois é a mesma coisa. Deve, eu sei que deve haver um modo em mim de chegar a isso.

        Às vezes sinto que esse modo eu o conseguiria através simplesmente de meu modo de ver mais evoluído. Uma vez sendo, no entanto, que se fosse conseguido seria através da misericórdia. Não da misericórdia transformada em gentileza da alma. Mas da profunda misericórdia transformada em ação, mesmo que seja a ação das palavras. E assim como "Deus escreve direito por linhas tortas", através de nossos erros correria o grande amor que seria a misericórdia.

        Aproximação gradativa

        Se eu tivesse que dar um título à minha vida seria: à procura da própria coisa.

        Mistério

        Sou tão misteriosa que não me entendo. Não, positivamente não me entendo. Bem, mas o fato é que, mesmo não me entendendo, vou lentamente me encaminhando – e também para o quê, não sei. De um modo geral, para mais amor por tudo... Sinto que me encaminho para o mais humano.

        Os mistérios: estes. De Clarice.

Seleta de Clarice Lispector, 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 291-294.

Entendendo a entrevista:

01 – Por que Clarice não gosta de dar entrevistas?

      Clarice não gosta de dar entrevistas porque as perguntas a constrangem, ela tem dificuldade em responder e acredita que o entrevistador fatalmente deformará suas palavras.

02 – Qual a verdadeira nacionalidade de Clarice e como ela se sente em relação a isso?

      Clarice nasceu na Ucrânia, mas chegou ao Brasil com apenas dois meses de idade. Ela se considera brasileira naturalizada e fez da língua portuguesa sua vida interior, usando-a para seu pensamento mais íntimo e para escrever.

03 – De onde Clarice absorveu grande parte de sua identidade cultural brasileira?

      Clarice se criou em Recife, e acredita que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é vivenciar a verdadeira vida brasileira. Ela aprendeu suas crendices e gostos culinários em Pernambuco e, através de empregadas, absorveu o rico folclore local.

04 – Como Clarice explica seus "rr enrolados" que a fazem soar como estrangeira?

      Ela explica que é apenas um defeito de dicção e que não consegue falar de outro jeito. Ela também menciona que um amigo, Dr. Pedro Bloch, disse que seria fácil de corrigir, mas ela é preguiçosa para fazer os exercícios.

05 – Quais são as três experiências para as quais Clarice afirma ter nascido?

      Clarice afirma ter nascido para amar os outros, para escrever e para criar seus filhos.

06 – De que forma Clarice descreve a criação artística e o processo de escrita?

      Clarice vê a criação artística como um mistério que lhe escapa. Ela descreve a escrita como uma necessidade para não mentir o sentimento e para compreender melhor as coisas, além de ser uma fonte de "inesperadas surpresas" onde ela se torna consciente de coisas que antes não sabia que sabia.

07 – Qual é o sentimento de Clarice em relação à justiça social e como isso se relaciona com sua escrita?

      Para Clarice, o problema da justiça é um sentimento "óbvio e básico" que a "engaja". Embora não consiga escrever sobre isso de forma "literária" (transformando-o em veemência artística), ela afirma que tudo o que escreve está ligado à realidade em que vivemos.

 

terça-feira, 8 de abril de 2025

CONTO: O PRIMEIRO BEIJO - (FRAGMENTO) - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: O primeiro beijo – Fragmento

            Clarice Lispector

        Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgBXKMAZwPZkKeLYhQSEran2HXk3DBYYWf11hK4KtUH39f6ixd4ZtisB66uubSHgmz4KOtUFRPIhrrx_gUtBaXIzsXLNIItmkgQ0g_5RJzAnH50dpiTo4H44gp_Zg0zFkbTilbBrphcRfavhb9juG38mP4ZOt-8O1j1DJ6667osLayVW9RHLYsm1M7jP4s/s320/O%20PRIMEIRO.jpg


        -- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar?

        Ele foi simples:

        -- Sim, já beijei antes uma mulher.

        -- Quem era ela? – perguntou com dor.

        Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.

        O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.

        E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.

        E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.

        A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.

        E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, talvez horas, enquanto sua sede era de anos.

        Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.

        O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada.

        O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.

        De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga.

        Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.

        Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.

        E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.

        [...]

        Ele a havia beijado.

        Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva.

        [...]

        Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.

        Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...

        Ele se tornara homem.

Clarice Lispector. O primeiro beijo. São Paulo: Ática, 1989. p. 20-22.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 7ª Série – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 1ª ed. 15ª reimpressão – São Paulo: Atual Editora, 2003. p. 64-65.

Entendendo o conto:

01 – Qual a situação inicial do casal apresentada no fragmento?

      O casal havia iniciado um namoro recentemente e ambos estavam "tontos", vivenciando o amor e o ciúme que o acompanha. Eles estavam mais murmurando que conversando.

02 – Qual a pergunta que a namorada faz ao rapaz sobre seus beijos anteriores?

      Ela pergunta se ele já havia beijado outra mulher antes de beijá-la, insistindo que ele dissesse apenas a verdade.

03 – Como o narrador descreve a tentativa do rapaz de contar sobre seu beijo anterior?

      O narrador afirma que ele tentou contar "toscamente", indicando que o rapaz tinha dificuldade em expressar a situação.

04 – Em que cenário o rapaz se recorda de sua experiência anterior ao beijo com a namorada?

      Ele se lembra de estar em um ônibus de excursão, subindo uma serra, no meio de outros jovens em algazarra, sentindo a brisa no rosto e experimentando uma intensa sede.

05 – Qual era a causa da intensa sede sentida pelo rapaz na lembrança?

      A sede era causada pela brincadeira com os colegas, falar alto acima do barulho do motor, rir, gritar, pensar e sentir, que deixaram sua garganta seca, além da falta de água.

06 – Onde o rapaz finalmente encontra a água para matar sua sede na lembrança, e qual é a sua surpreendente descoberta ao beber?

      Ele encontra a água em um chafariz de pedra na curva da estrada. Ao beber, de olhos fechados, ele percebe um contato gélido em seus lábios e, ao abrir os olhos, descobre que a água jorrava da boca da estátua de uma mulher de pedra, na qual ele havia colado seus lábios.

07 – Qual a transformação que o rapaz vivencia após a lembrança do "primeiro beijo" e a revelação que jorra de seu interior?

      Ele sofre um tremor interno e sente o mundo se transformar, experimentando a vida como algo inteiramente novo. A verdade que jorra de seu interior, causando-lhe susto e orgulho, é que ele se tornara homem.

 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

CONTO: PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM - O BANHO - (FRAGMENTO) - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: Perto do coração selvagem O banho – Fragmento

             Clarice Lispector

        [...]

        O tio e a tia já estavam à mesa. Mas a quem deles ela diria: tenho cada vez mais força, estou crescendo, serei moça? Nem a eles, nem a ninguém. Porque também a nenhum poderei perguntar: diga-me, como são as coisas? e ouvir: também não sei, como o professor respondera. O professor ressurgiu à sua frente como no último instante, inclinado para ela, assustado ou feroz, não o sabia, mas recuando, isso, recuando. A resposta, sentiu, não importava tanto. O que valia era que a indagação fora aceita, podia existir. Sua tia retrucaria, surpresa: que coisas? E se chegasse a entender, certamente diria: são assim, assim e assim. Com quem Joana falaria agora das coisas que existem com a naturalidade com que se fala das outras, das que estão apenas?

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgtVUSsmvde8QgM0IKNzqRUc6She16fFqRkdsuW8VlSYUJLO2KpmwNX0-ns5jturYgMmkuzotzIeyJoKGH4V09yOuc1uAuD91zLDPIX3q_A2vD9GsWDpXeDwN-QACjOafKwuFghzQo5xkbTtfIVHkZxE8JWwVyeoSFiTXCA03dWp-UeChSpp5fsSzRjdYM/s1600/CORA%C3%87%C3%83O.jpg

        Coisas que existem, outras que apenas estão... Surpreendeu-se com o pensamento novo, inesperado, que viveria dagora em diante como flores sobre o túmulo. Que viveria, que viveria, outros pensamentos nasceriam e viveriam e ela própria estava mais viva. A alegria cortou-lhe o coração, feroz, iluminou-lhe o corpo. Apertou o copo entre os dedos, bebeu água com os olhos fechados como se fosse vinho, sangrento e glorioso vinho, o sangue de Deus. Sim, a nenhum deles explicaria que tudo mudava lentamente... Que ela guardara o sorriso como quem apaga finalmente a lâmpada e resolve deitar-se. Agora as criaturas não eram admitidas no seu interior, nele fundindo-se. As relações com as pessoas tornavam-se cada vez mais diferentes das relações que mantinha consigo mesma. A doçura da infância desaparecia nos seus últimos traços, alguma fonte estancava para o exterior e o que ela oferecia aos passos dos estranhos era areia incolor e seca. Mas ela caminhava para frente, sempre para a frente como se anda na praia, o vento alisando o rosto, levando para trás os cabelos.

        Como entregar-lhes: é a segunda vertigem num só dia? mesmo que ardesse por confiar o segredo a alguém. Porque ninguém mais na sua vida, ninguém mais talvez haveria de lhe dizer, como o professor: vive-se e morre-se. Todos esqueciam, todos só sabiam brincar. Olhou-os. Sua tia brincava com uma casa, uma cozinheira, um marido, uma filha casada, visitas. O tio brincava com trabalho, com uma fazenda, com jogo de xadrez, com jornais. Joana procurou analisá-los, sentindo que assim os destruiria. Sim, gostavam-se de um modo longínquo e velho. De quando em quando, ocupados com seus brinquedos, lançavam-se olhares inquietos, como para se assegurarem de que continuavam a existir. Depois retomavam a morna distância que diminuía por ocasião de algum resfriado ou de um aniversário. Dormiam juntos certamente pensou Joana sem prazer na malícia.

        A tia estendeu-lhe o prato de pão em silêncio. O tio não levantava os olhos do prato.

        A comida era uma das grandes preocupações da casa, continuou Joana. À hora das refeições, os braços apoiados pesadamente sobre a mesa, o homem se alimentava arfando ligeiramente, porque sofria do coração, e enquanto mastigava, algum farelo esquecido fora da boca, seu olhar se fixava vidrado em qualquer ponto, a atenção voltada às sensações interiores que a comida lhe produzia. A tia cruzava os pés sob a cadeira, e, as sobrancelhas franzidas, comia com uma curiosidade que se renovava a cada garfada, o rosto rejuvenescido e móvel. Mas por que hoje não se abandonavam nas cadeiras? Por que cuidavam de não chocar os talheres, como se alguém estivesse morto ou dormindo? Sou eu, adivinhou Joana.

        Ao redor da mesa escura, sob a luz enfraquecida pelas franjas sujas do lustre, também o silêncio se sentara nessa noite. Joana em momentos parava para ouvir o ruído das duas bocas mastigando e o tic-tac leve e nervoso do relógio. Então a mulher erguia os olhos e imobilizada com o garfo na mão, esperava ansiosa e humilde. Joana desviava a vista, vitoriosa, abaixava a cabeça numa alegria profunda que inexplicavelmente vinha misturada a um aperto doloroso na garganta, a uma impossibilidade de soluçar.

        — Armanda não veio? — a voz de Joana apressou o tic-tac do relógio, fez nascer um súbito e rápido movimento na mesa.

        Os tios se entreolharam furtivamente. Joana respirou alto: tinha medo dela, pois?

        — O marido de Armanda hoje não está de plantão, por isso ela não veio jantar aqui, respondeu finalmente a tia. E de repente, satisfeita, pôs-se a comer. O tio mastigava mais depressa. O silêncio voltou sem dissolver o murmúrio longínquo do mar. Eles não tinham coragem, então.

        — Quando é que eu vou para o internato? — perguntou Joana.

        A terrina de sopa escorregou das mãos da tia, o caldo escuro e cínico espalhou-se rapidamente pela mesa. O tio abandonou os talheres sobre o prato, o rosto angustiado.

        — Como sabe que..., balbuciou confuso...

        Ela escutara à porta...

        A toalha embebida fumegava docemente como restos de um incêndio. Imóvel e fascinada como diante de algo irremediável, a mulher fitava a sopa derramada que esfriava rapidamente.

        [...]

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem, 15. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 73-76.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 494-495.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a principal preocupação de Joana no trecho?

      Joana está preocupada com a sua transição da infância para a adolescência e com a sua crescente dificuldade de se comunicar com os outros, especialmente com seus tios. Ela sente que ninguém a entende e que suas perguntas existenciais não encontram respostas.

02 – O que representa a figura do professor para Joana?

      O professor representa um momento de validação para Joana. Ele a encoraja a questionar e a buscar suas próprias respostas, mesmo que ele mesmo não as tenha. A resposta em si não é tão importante, mas sim a possibilidade de fazer a pergunta.

03 – Como Joana se sente em relação aos seus tios?

      Joana se sente distante e incompreendida por seus tios. Ela os vê como pessoas que se contentam com brinquedos superficiais (casa, casamento, trabalho) e que evitam confrontar as questões mais profundas da vida. Joana sente que eles não têm coragem de encarar a realidade da vida e da morte.

04 – Qual é o significado da sopa derramada na mesa?

      A sopa derramada simboliza a tensão e o desconforto na relação entre Joana e seus tios. É um momento de quebra da formalidade e de revelação de sentimentos reprimidos. A reação dos tios à sopa derramada mostra a fragilidade e a superficialidade de suas relações.

05 – Por que Joana tem medo de Armanda?

      O conto não explica explicitamente por que Joana tem medo de Armanda. No entanto, podemos inferir que Armanda representa um mundo adulto que Joana teme e do qual se sente excluída. A reação dos tios ao medo de Joana revela a fragilidade e a falta de comunicação na família.

06 – O que significa a pergunta de Joana sobre o internato?

      A pergunta de Joana sobre o internato revela sua intuição de que algo está para mudar em sua vida. Ela sente que está se distanciando de seus tios e que seu futuro pode estar em outro lugar. A reação dos tios à pergunta de Joana confirma suas suspeitas e intensifica a tensão na mesa.

07 – Qual é a importância do silêncio no conto?

      O silêncio é um elemento importante no conto, pois ele representa a falta de comunicação e a dificuldade de expressão dos sentimentos. O silêncio na mesa de jantar é opressor e revela a tensão entre os personagens. O tic-tac do relógio e o barulho da mastigação enfatizam o silêncio e criam uma atmosfera de desconforto.

 

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

CONTO: A MENOR MULHER DO MUNDO - FRAGMENTO - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: A menor mulher do mundo – Fragmento

           Clarice Lispector

        Nas profundezas da África Equatorial o explorador francês Marcel Pretre, caçador e homem do mundo, topou com uma tribo de pigmeus de uma pequenez surpreendente. Mais surpreso, pois, ficou ao ser informado de que menor povo ainda existia além de florestas e distâncias. Então mais fundo ele foi.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkARKZonRB3Lv6t0lB-JzG1OjQrhtQy-8YeHxBhebcYRhxfAmaHVQc0Wdyh5mynLR5cnvrLhJe2G3QcNvn-Ld7pFvWjJyh3MkI4F2jOUzDKJCHWFGmwHrhtnRygHdhM3to8GFemn8CBkBdx4gTadFxVc0X_l1dsUN2tZzB1l-E7LO551ENrayZqe4xs4g/s320/pigmeia.jpg


        No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do mundo. E — como uma caixa dentro de um caixa — entre os menores pigmeus do mundo estava o menor dos menores pigmeus do mundo, obedecendo talvez à necessidade que às vezes a Natureza tem de exceder a si própria.

        Entre mosquitos e árvores mornas de umidade, entre as folhas ricas do verde mais preguiçoso, Marcel Pretre defrontou-se com uma mulher de quarenta e cinco centímetros, madura, negra, calada. "Escura como um macaco", informaria ele à imprensa, e que vivia no topo de uma árvore com seu pequeno concubino. Nos tépidos humores silvestres, que arredondam cedo as frutas e lhes dão uma quase intolerável doçura ao paladar, ela estava grávida.

        Ali em pé estava, portanto, a menor mulher do mundo. Por um instante, no zumbido do calor, foi como se o francês tivesse inesperadamente chegado à conclusão última. Na certa, apenas por não ser louco, é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites. Sentindo necessidade imediata de ordem, e dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena Flor. E, para conseguir classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a seu respeito.

        [...]

        A fotografia de Pequena Flor foi publicada no suplemento colorido dos jornais de domingo, onde coube em tamanho natural. Enrolada num pano, com a barriga em estado adiantado. O nariz chato, a cara preta, os olhos fundos, os pés espalmados. Parecia um cachorro.

        Nesse domingo, num apartamento, uma mulher, ao olhar no jornal aberto o retrato de Pequena Flor, não quis olhar uma segunda vez "porque me dá aflição".

        Em outro apartamento uma senhora teve tal perversa ternura pela pequenez da mulher africana que — sendo tão melhor prevenir que remediar — jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a ternura da senhora. Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho. A senhora passou um dia perturbada, dir-se-ia tomada pela saudade. Aliás era primavera, uma bondade perigosa estava no ar.

        Em outra casa uma menina de cinco anos de idade, vendo o retrato e ouvindo os comentários, ficou espantada. Naquela casa de adultos, essa menina fora até agora o menor dos seres humanos. E se isso era fonte das melhores carícias, era também fonte deste primeiro medo do amor tirano. A existência de Pequena Flor levou a menina a sentir — com uma vaguidão que só anos e anos depois, por motivos bem diferentes, havia de se concretizar em pensamento — levou a sentir, numa primeira sabedoria, que "a desgraça não tem limites".

        Em outra casa, na sagração da primavera, a moça noiva teve um êxtase de piedade:

        — Mamãe, olhe o retratinho dela, coitadinha! Olhe só como ela é tristinha!

        — Mas — disse a mãe, dura e derrotada e orgulhosa — mas é tristeza de bicho, não é tristeza humana.

        — Oh! Mamãe — disse a moça desanimada.

        Foi em outra casa que um menino esperto teve uma ideia esperta:

        — Mamãe, e se eu botasse essa mulherzinha africana na cama de Paulinho enquanto ele está dormindo? Quando ele acordasse, que susto, hein! Que berro, vendo ela sentada na cama! E a gente então brincava tanto com ela! A gente fazia ela o brinquedo da gente, hein!

        A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo de orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver num armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve terror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felicidade. Assim olhou ela, com muita atenção e um orgulho inconfortável, aquele menino que já estava sem os dois dentes da frente, a evolução, a evolução se fazendo, dente caindo para nascer o que melhor morde. "Vou comprar um terno novo para ele", resolveu, olhando-o absorta. Obstinadamente enfeitava o filho desdentado com roupas finas, obstinadamente queria-o bem limpo, como se limpeza desse ênfase a uma superficialidade tranquilizadora, obstinadamente aperfeiçoando o lado cortês da beleza. Obstinadamente afastando-se, e afastando-o, de alguma coisa que devia ser "escura como um macaco". Então, olhando para o espelho do banheiro, a mãe sorriu intencionalmente fina e polida, colocando, entre aquele seu rosto de linhas abstratas e a cara crua de Pequena Flor, a distância insuperável de milênios. Mas, com anos de prática, sabia que este seria um domingo em que teria de disfarçar de si mesma a ansiedade, o sonho, e milênios perdidos.

        Em outra casa, junto a uma parede, deram-se ao trabalho alvoroçado de calcular com fita métrica os quarenta e cinco centímetros de Pequena Flor. E foi aí mesmo que, em delícia, se espantaram: ela era ainda menor que o mais agudo da imaginação inventaria. No coração de cada membro da família nasceu, nostálgico, o desejo de ter para si aquela coisa miúda e indomável, aquela coisa salva de ser comida, aquela fonte permanente de caridade. A alma ávida da família queria devotar-se. E, mesmo, quem já não desejou possuir um ser humano só para si? O que, é verdade, nem sempre seria cômodo, há horas em que não se quer ter sentimentos:

        — Aposto que se ela morasse aqui terminava em briga — disse o pai sentado na poltrona, virando definitivamente a página do jornal. — Nesta casa tudo termina em briga.

        — Você, José, sempre pessimista — disse a mãe.

        — A senhora já pensou, mamãe, de que tamanho será o nenenzinho dela? — disse ardente a filha mais velha de treze anos.

        O pai mexeu-se atrás do jornal.

        — Deve ser o bebê preto menor do mundo — respondeu a mãe, derretendo-se de gosto. — Imagine só ela servindo a mesa aqui de casa! E de barriguinha grande!

        — Chega de conversas! — engrolou o pai.

        — Você há de convir — disse a mãe inesperadamente ofendida — que se trata de uma coisa rara. Você é que é insensível.

        E a própria coisa rara?

        Enquanto isso na África, a própria coisa rara tinha no coração — quem sabe se negro também, pois numa Natureza que errou uma vez já não se pode mais confiar — enquanto isso a própria coisa rara tinha no coração algo mais raro ainda, assim como o segredo do próprio segredo: um filho mínimo. Metodicamente o explorador examinou com o olhar a barriguinha do menor ser humano maduro. Foi neste instante que o explorador, pela primeira vez desde que a conhecera, em vez de sentir curiosidade ou exaltação ou vitória ou espírito científico, o explorador sentiu mal-estar.

        É que a menor mulher do mundo estava rindo.

        Estava rindo, quente, quente. Pequena Flor estava gozando a vida. A própria coisa rara estava tendo a inefável sensação de ainda não ter sido comida. Não ter sido comida era que, em outras horas, lhe dava o ágil impulso de pular de galho em galho. Mas, neste momento de tranquilidade, entre as espessas folhas do Congo Central, ela não estava aplicando esse impulso numa ação — e o impulso se concentrara todo na própria pequenez da própria coisa rara. E então ela estava rindo. Era um riso como somente quem não fala, ri. Esse riso, o explorador constrangido não conseguiu classificar. E ela continuou fruindo o próprio riso macio, ela que não estava sendo devorada. Não ser devorado é o sentimento mais perfeito. Não ser devorado é o objetivo secreto de toda uma vida. Enquanto ela não estava sendo comida, seu riso bestial era tão delicado como é delicada a alegria. O explorador estava atrapalhado.

        Em segundo lugar, se a própria coisa rara estava rindo, era porque, dentro dessa sua pequenez, grande escuridão pudera-se em movimento.

        É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode chamar de Amor. Ela amava aquele explorador amarelo. Se soubesse falar e dissesse que o amava, ele inflaria de vaidade. Vaidade que diminuiria quando ela acrescentasse que também amava muito o anel do explorador e que amava muito a bota do explorador. E quando este desinchasse desapontado, Pequena Flor não compreenderia por quê. Pois, nem de longe, seu amor pelo explorador — pode-se mesmo dizer seu "profundo amor", porque, não tendo outros recursos, ela estava reduzida à profundeza — pois nem de longe seu profundo amor pelo explorador ficaria desvalorizado pelo fato de ela também amar sua bota. Há um velho equívoco sobre a palavra amor, e, se muitos filhos nascem desse equívoco, tantos outros perderam o único instante de nascer apenas por causa de uma suscetibilidade que exige que seja de mim, de mim! que se goste, e não de meu dinheiro. Mas na umidade da floresta não há desses refinamentos cruéis, e amor é não ser comido, amor é achar bonita uma bota, amor é gostar da cor rara de um homem que não é negro, amor é rir de amor a um anel que brilha. Pequena Flor piscava de amor, e riu quente, pequena, grávida, quente.

        O explorador tentou sorrir-lhe de volta, sem saber exatamente a que abismo seu sorriso respondia, e então perturbou-se como só homem de tamanho grande se perturba. Disfarçou ajeitando melhor o chapéu de explorador, corou pudico. Tornou-se uma cor linda, a sua, de um rosa-esverdeado, como a de um limão de madrugada. Ele devia ser azedo.

        Foi provavelmente ao ajeitar o capacete simbólico que o explorador se chamou à ordem, recuperou com severidade a disciplina de trabalho, e recomeçou a anotar. Aprendera a entender algumas das poucas palavras articuladas da tribo, e a interpretar os sinais. Já conseguia fazer perguntas.

        Pequena Flor respondeu-lhe que "sim". Que era muito bom ter uma árvore para morar, sua, sua mesmo. Pois — e isso ela não disse, mas seus olhos se tornaram tão escuros que o disseram — pois é bom possuir, é bom possuir, é bom possuir. O explorador pestanejou várias vezes.

        Marcel Pretre teve vários momentos difíceis consigo mesmo. Mas pelo menos ocupou-se em tomar notas e notas. Quem não tomou notas é que teve que se arranjar como pôde:

        — Pois olhe — declarou de repente uma velha fechando o jornal com decisão — pois olhe, eu só lhe digo uma coisa: Deus sabe o que faz.

LISPECTOR, Clarice. A menor mulher do mundo. In: Laços de família. 10. ed. Rio de Janeiro. José Olympio, 1978. p. 77-86.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 3 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 247-251.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Concubino: amante.

·        Tépido: morno.

·        Humor: umidade.

·        Engrolar: pronunciar mal.

·        Inefável: indizível, encantador.

·        Fluir: gozar, desfrutar.

02 – Qual a principal característica física de Pequena Flor?

      Pequena Flor é descrita como a menor mulher do mundo, com apenas 45 centímetros. Sua aparência exótica e sua condição de menor a tornam um objeto de curiosidade e fascínio.

03 – Como Pequena Flor é vista pelos outros personagens e pela sociedade?

      Pequena Flor é vista como uma curiosidade, um objeto de estudo e de contemplação. Sua pequenez a torna um símbolo da diferença e da excentricidade.

04 – Quais são os sentimentos de Pequena Flor em relação à sua condição?

      O conto não explora em profundidade os sentimentos de Pequena Flor, mas sugere que ela aceita sua condição e encontra felicidade em sua vida simples. Seu riso é descrito como "quente" e "macio", indicando uma sensação de bem-estar e contentamento.

05 – Qual o impacto do encontro de Marcel Pretre com Pequena Flor?

      O encontro com Pequena Flor provoca uma crise existencial em Marcel Pretre. Ele se questiona sobre a natureza humana, a felicidade e o significado da vida.

06 – Como a relação entre Marcel Pretre e Pequena Flor se desenvolve?

      A relação entre os dois personagens é marcada pela curiosidade e pela incompreensão. Marcel Pretre tenta classificar e entender Pequena Flor, enquanto ela o observa com um olhar enigmático.

07 – Como as diferentes pessoas reagem à notícia sobre Pequena Flor?

      As pessoas reagem de forma diversa ao saber da existência de Pequena Flor. Algumas sentem pena, outras curiosidade, e outras ainda, um desejo de posse ou de exploração.

08 – Qual a crítica social presente nas reações das pessoas?

      O conto critica a curiosidade mórbida, a superficialidade e a falta de empatia das pessoas. As reações das pessoas revelam a tendência humana a julgar e a categorizar os outros com base em suas diferenças.

09 – Quais os temas principais do conto?

      Os temas principais do conto são a diferença, a identidade, a felicidade, a exploração e a natureza humana.

10 – Qual a importância da natureza no conto?

      A natureza é um personagem fundamental no conto. A floresta, com sua exuberância e mistério, serve como pano de fundo para a história e simboliza a liberdade e a espontaneidade.

11 – Qual a mensagem final do conto?

      O conto nos convida a refletir sobre o significado da felicidade e da existência. Pequena Flor, com sua simplicidade e alegria, nos mostra que a felicidade não está ligada à posse ou ao status social, mas sim à aceitação de si mesmo e à capacidade de encontrar prazer nas pequenas coisas da vida.