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sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

CONTO: AS MARIAS - DALTON TREVISAN - COM GABARITO

 Conto: As Marias

            Dalton Trevisan

      Maria, filha de Maria, a filha de Maria, tem trinta e um desgostos. Lava a roupa, lava a louça, varre que varre, e a patroa – Jesus Maria José? – a patroa ralhando.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXBFum7gEgOZbc1fE3VF_kbRg7tjt1uS00iMP4HSA6gpOPX0ouciMMKANyvMevDHl_9o4u7cldz3TO7sOBQz4I-fWm0FYLum11EMZUUogXb8vK8UF-PQBbKHmrfWZz-j2YZuyzh-gCXD1hVmQebHwfSVO7-660DeQiXPHGnBfMCadN6n1G_TEKVt8hTZA/s320/MARIA.jpg


       Aos sete anos, foi esquecida pela mãe na primeira esquina. Mulher cheia de filhos, não podia com mais um: deu a pobre da Maria.

        Sempre em casa estranha, dormindo em cama-de-vento, comendo em pé ao lado do fogão. Trabalhadeira, era de confiança e não tinha boca para pedir. Pálida, vivia debaixo de chá de ervas. Sonhando, rilhava os dentes, com as bichas alvoraçadas. Maria, ai dela, nunca soube qual o gosto de uma pêra-d’água! O guarda-comida trancado a chave, ela roía com fome um naco de rapadura, escondida sob o travesseiro.

         Lenço amarrado na bochecha, usava cera milagrosa para dor de dente – até que perdia o dente. Vagarosa por culpa de unha encravada. De lidar na potassa, partiam-se os dedos e sofria de panarício. Nunca se despedia, era despachada pela patroa, aborrecida de suas aflições e sua cara de pamonha.

          Ao rolar de uma para outra casa, engordava com os anos, gemia de dor nas cadeiras e enleava-se no serviço. Sua alegria era lavar o cueiro do bebê. Ah, mas beijar a criancinha...

           - Está proibida, ouviu, Maria?

           Criada não conhece o seu lugar, podia ter alguma doença.

           Menina séria, não ia ao baile com as outras. No carão anêmico esfregava papel de seda escarlate molhado na língua e, mal surgia à janela, a espiar um soldadinho verde, a patroa ralhava.

            - Maria, já escolheu o arroz?

            - Maria, já passou a roupa?

            - Já encerou a casa, ó Maria?

            Areada a chapa do fogão, guardava a louça, varrida a cozinha, chegava-se medrosa à porta. O soldado rondava, parava, batia continência. Tinha pressa como soldado era de guerra: queria pegar na mão e cobrir de beijos.

              - Deus me livre, podia ter algumas doenças!

              Maria faz o sinal-da-cruz: a boca só o marido é que iria beijar.

              Onde estão os praças de cavalaria, o tinir das esporas na calçada? Trinta e um anos de Maria! Até proibida de passear com a Maria.

                - Pois vá chorar no quarto – ordena-lhe a patroa. – Não suporto cena de gentinha!

                 Essa Maria, um objeto de casa, o capacho da porta, a vassoura no prego.

                  Maria não vai ao circo, o palhaço é tão gozado.

                  Maria não vai ao Passeio Público ver o macaquinho comer banana.

                   Maria não vai ao cineminha na sexta-feira assistir à Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.

                   Maria, a filha de Maria, distraída no domingo com a Marta, viu seu coração rolar do peito e, prato que lhe escapou dos dedos gordurosos ( a patroa vai ralhar?), partir-se em sete pedaços de sangue pelo chão.

                   Era um cabo? Maria nunca soube de que arma. Falava lindo e tão difícil, puxando no xis – vixto, mocinha? – que ela saltitar ora numa perna ora noutra, esganada roía as unhas.

                   - Tem gente, cabo. Você me respeite, ó cabo?

                    Ele a levou ao circo e Maria entrou soberba como uma patroa entre a gentinha que fazia cena: no pescoço a velha pele de coelho mordendo a cauda. A charanga, o peludo de cara pintada, o cabo das grandes botas de general. Um palhaço xinga o outro de “Gigolô”!, o circo vem abaixo de tanta gargalhada. Maria sorri, o cabo lhe tira sangue do peito.

                    - Ocê me deixa louco, Maria.

                    Sob o espanto do baleiro, anunciando “Oia a bala oi...”, ela beijou a mão do cabo.

                     Em nove meses Maria, filha de Maria, vai ser mãe de Maria.

Entendendo o texto

01. Como se constrói a narrativa?

Se constrói de ações fragmentadas e gestos estereotipados das domésticas errantes, doentes, esfaimadas, sonhadoras. Maria resume um tipo que reitera modelos previsíveis de comportamento, é o retrato das mazelas de uma doméstica.

02. Qual é o nome da personagem principal no conto "As Marias"?

         O nome da personagem principal é Maria.

03. Quantos desgostos a personagem Maria tem de acordo com o conto?

           Maria tem trinta e um desgostos.

04. Por que Maria foi esquecida pela mãe aos sete anos?

          Maria foi esquecida pela mãe aos sete anos porque a mãe, cheia de filhos, não podia cuidar de mais um, então deu Maria para outra pessoa.

05. Qual era a alegria de Maria, mesmo enfrentando dificuldades em sua vida?

         A alegria de Maria era lavar o cueiro do bebê.

06. O que acontece quando Maria se distrai com Marta no domingo?

          Quando Maria se distrai com Marta no domingo, seu coração rola do peito e parte-se em sete pedaços de sangue pelo chão.

07. Por que Maria não vai ao circo e a outros eventos mencionados no conto?

          Maria não vai ao circo e a outros eventos mencionados porque a patroa a proíbe e a considera um objeto de casa, um capacho da porta.

08. Quem é o responsável por Maria, filha de Maria, se tornar mãe no final do conto?

O cabo mencionado no conto é responsável por Maria, filha de Maria, se tornar mãe, e ela estará grávida em nove meses.

09. Que linguagem traz o texto?

  Pode-se divisar a crítica à subalternidade das domésticas, à sua condição subumana de vida e à opressão das patroas.


 

 

 

domingo, 19 de junho de 2022

CONTO: A SOPA - DALTON TREVISAN - COM GABARITO

 CONTO:A SOPA

              Dalton Trevisan

 Subiu lentamente a escada, arrastando os pés. Estacou para respirar apenas uma vez, no meio dos trinta degraus: ainda era um homem. Entrou na cozinha e, sem olhar para a mulher, sem lavar as mãos, sentou-se à mesa. Ela encheu o prato de sopa, colocou-o diante do marido. 

Olho vermelho de dorminhoco, o filho saiu do quarto e atravessou a cozinha. O homem batia as pálpebras, embevecido com os vapores capitosos.

-- Aonde é que vai? 

O filho abriu a torneira do banheiro:

-- Fazer a barba.

-- Hora da janta. Vem comer. 

Demorava-se o rapaz, torneira fechada. Com a toalha no pescoço, não olhou o pai.

-- Não quero jantar. Sem fome. 

O homem suspendeu a colher:

-- Não quer jantar, mas vem para a mesa. 

Todas as noites, esfomeado. Enchia a colher, aspirava o caldo de feijão e, fazendo bico nos lábios grossos, tragava-o com delícia. O filho desenhava com o garfo na toalha de flores estampadas. A mulher, essa, contemplava o fogo, mão no queixo.

-- Dar uma volta. 

O homem sugava ruidosamente e, a cada chupão, o filho revolvia a ponta do garfo ao coração das margaridas. 

-- Saiu agora do quarto, filho de barão! Mas eu... Quando me deitar de dia na cama é para morrer! 

A mão do filho abandonou o garfo e não se mexeu. 

-- Volta cedo, não é?

A voz cansada da mãe, ainda de costas para a mesa. Não sabia ela que, ao defendê-lo, perdia a causa do filho? O homem esvaziou o prato e, descansando a colher, examinou as mãos enrugadas. 

-- Estas mãos... 

Sacudidas de ligeiro tremor. 

-- ... de um velho! 

A mulher apanhou o prato, encheu-o até a beirada. O marido retorceu as pontas úmidas do bigode:

-- Você não come?

O filho contornava com o garfo as pétalas na toalha. 

-- Não estou com vontade. 

-- Depois o senhor vai para o quarto. 

Cheirava a colher e sorvia a sopa, estalando a língua. O filho ergueu-se da mesa. 

-- O senhor fica sentado. Não tem pão nesta casa?

A mulher trouxe o pão. Ele não o cortava: agarrava-o inteiro na mão e mordia várias vezes; em seguida partia-o em pedaços, alinhados diante do prato, atacando um por um, entre as colheradas. 

-- Volta cedo, não é, meu filho?

De novo a mãe, nunca aprenderia. 

-- Agora não vou mais. 

O pai dizia a última palavra:

-- Uma vergonha! O chefe tem de jantar sozinho. O filho preguiçoso... até para comer. A mulher... 

Com seus brados retiniam os talheres. 

-- ... tem o estômago delicado.

Não se mexeu, curvada sobre o fogão.

-- Olhe para mim quando falo com a senhora! 

Ela se virou, a enxugar as mãos na saia. 

-- Depois de velha, melindrosa. Não pode comer com o rei da casa, que lhe sustenta o filho e lhe dá o dinheiro?

-- Sabe por que não sento.

Os dois a olharam com espanto, nunca discutiu as ordens do marido. 

-- Sei não, dona princesa. Pois me conte. 

Ele pedia, a colher no ar:

-- Perdeu a coragem, que não fala?

Outra vez a mulher deu-lhe as costas. 

-- Só nojo de você. 

Ele começou a soprar, manchava de borrifos a toalha. 

-- O quê? O quê? Repita, mulher. 

A dona abriu o fogão, espertou as brasas, encheu-o de lenha:

-- Nada espero da vida. Mas não posso te ver comer. Sei que é triste para a mulher ter nojo do marido. Você chupa a colher como se eu fosse te roubar. Não sei o que fiz a Deus para esse castigo mais desgraçado. Fui boa mulher, ainda que tenha nojo. Lavo tua roupa, deito na tua cama, cozinho tua sopa. Faço isso até morrer. Me peça o que quiser. Não que eu me sente a essa mesa com você e tua sopa mais negra. 

O filho abandonou a cozinha e desceu a escada. Os dois ouviram bater à porta da rua. O marido encarou pela primeira vez a mulher. Baixou os olhos, cabelos de gordura boiavam no caldo frio. Erguendo um lado do prato, acabou o resto de sopa e lambeu a colher. 

 

Faraco, Carlos Emílio Língua portuguesa: linguagem e interação / Faraco, Moura, Maruxo Jr. -- 3. ed. -- São Paulo: Ática, 2016.p.299/300.

Entendendo o texto

01.               De que se trata o conto?

         Relata o cotidiano de uma família durante a hora do jantar.

02.               Cite algumas características do chefe da casa.

            É um senhor mal-humorado, não muito educado, sem falta de modos e de higiene na hora de se alimentar.

03.               Quais os personagens que fazem parte dessa narrativa?

           O pai, a mãe e o filho.

04.               Qual é a tipologia predominante no conto:

a)   Narrativa.

b)   Argumentativa.

c)   Descritiva.

05.               Em relação ao discurso das personagens- Presença de discurso: a) direto

                b) indireto

06. Onde ocorrem os fatos?

       Na cozinha, na mesa do jantar.

07.Que fato provocou o desenrolar dos acontecimentos descritos no texto?

     O fato do homem comer a sopa sozinho.

08. Em que momento surge o conflito da história?

      Na hora em que a mulher diz que tem nojo do marido. “Você chupa a colher como se eu fosse te roubar. Não sei o que fiz a Deus para esse castigo mais desgraçado. Fui boa mulher, ainda que tenha nojo. Lavo tua roupa, deito na tua cama, cozinho tua sopa. Faço isso até morrer. Me peça o que quiser. Não que eu me sente a essa mesa com você e tua sopa mais negra”.

 09. Qual o desfecho (epílogo ou conclusão) da história?

       O filho abandonou a cozinha e desceu a escada. Os dois ouviram bater à porta da rua. O marido encarou pela primeira vez a mulher. Baixou os olhos, cabelos de gordura boiavam no caldo frio. Erguendo um lado do prato, acabou o resto de sopa e lambeu a colher. 

domingo, 10 de outubro de 2021

CRÔNICA: O LEÃO - DALTON TREVISAN - COM GABARITO

 CRÔNICA: O LEÃO

                    Dalton Trevisan


  A menina conduz-me diante do leão, esquecido por um circo de passagem. Não está preso, velho e doente, em gradil de ferro. Fui solto no gramado e a tela fina de arame é escarmento ao rei dos animais. Não mais que um caco de leão: as pernas reumáticas, a juba emaranhada e sem brilho. Os olhos globulosos fecham-se cansados, sobre o focinho contei nove ou dez moscas, que ele não tinha ânimo de espantar. Das grandes narinas escorriam gotas e  pensei, por um momento, que fossem lágrimas.

  Observei em volta: somos todos adultos, sem contar a menina. Apenas para nós o leão conserva o seu antigo prestígio - as crianças estão em redor dos macaquinhos. Um dos presentes explica que o leão tem as pernas entrevadas, a vida inteira na minúscula jaula. Derreado, não pode sustentar-se em pé.

  Chega-se um piá e, desafiando com olhar selvagem o leão, atira-lhe um punhado de cascas de amendoim. O rei sopra pelas narinas, ainda é um leão: faz estremecer as gramas a seus pés.

Um de nós protesta que deviam servir-lhe a carne em pedacinhos.

- Ele não tem dente?

- Tem sim, não vê? Não tem é força para morder.

  Continua o moleque a jogar amendoim na cara devastada do leão. Ele nos olha e um brilho de compreensão nos faz baixar a cabeça: é conhecido o travo amargoso da derrota. Está velho, artrítico, não se aguenta das pernas, mas é um leão. De repente, sacudindo a juba, põe-se a mastigar capim. Ora, leão come verde! Lança-lhe o guri uma pedra: acertou no olho lacrimoso e doeu.

  O leão abriu a bocarra de dentes amarelos, não era um bocejo. Entre caretas de dor, elevou-se aos poucos nas pernas tortas. Sem sair do lugar, ficou de pé. Escancarou penosamente os beiços moles e negros, ouviu-se a rouca buzina do fordeco antigo.

  Por um instante o rugido manteve suspensos os macaquinhos e fez bater mais depressa o coração da menina. O leão soltou seis ou sete urros. Exausto, deixou-se cair de lado e fechou os olhos para sempre.

Entendendo o texto

 

01.  Pelo que se pode compreender da leitura global do texto, por que motivo o leão, animal considerado perigoso e violento, não estava preso?

Porque estava velho e doente.

02.   “Destaque as características atribuídas ao leão que justifiquem a seguinte apreciação:” Não mais que um caco de leão (...)”

           “ as pernas reumáticas, a juba emaranhada e sem brilho”.

03.  Observe que o autor vale-se de uma comparação para assinalar a impressão de tristeza e pesar que a personagem demonstrou ter pelo leão. Destaque-a.

“Das grandes narinas escorriam gotas e pensei, por um momento, que fossem lágrimas.”

04.  Que tal reconstruir esta parte do texto de uma forma diferente?

Comece o parágrafo com: “A menina conduz-me diante do leão, que rugia como se dissesse: “- Sou o rei dos animais! O rei da selva!”

Ao terminar a reescrita do parágrafo a partir daí, observe que elementos você teve de alterar na descrição, para que o texto fizesse sentido, tivesse coerência.

Resposta pessoal.

 

    05. Análise de Texto Descritivo
         I.   Embora não seja um texto predominantemente descritivo,  ocorre descrição, visto que o autor representa a personagem principal através de aspectos que a individualizam.

        II.  Por ressaltar unicamente as condições físicas da personagem, predomina a descrição objetiva no texto, com linguagem denotativa.

      III. Por ser um texto predominantemente narrativo, as demais formas - descrição e dissertação - inexistem.

Inferimos que, de acordo com o texto, pode(m) estar correta(s):

a) Todas
b) Apenas a I
c) Apenas a II
d) Apenas a III
e) Nenhuma das afirmações.


 06. 
I.   Fato principal: a morte do leão. Causas principais: o circo, que o abandonou, e a criança, que o acertou com uma pedra.

II.  A decadência física do leão, assunto predominante do texto, denota animalização do ser humano.

III. A velhice do leão, assunto predominante do texto, conota marginalização, maus tratos e decadência física dos animais.

Inferimos que, de acordo com o texto, pode(m) estar correta(s):

a) Todas
b) Apenas a I
c) Apenas a II
d) Apenas a III
e) Nenhuma das afirmações.


07. Análise de Texto Descritivo:
I.   Conotativamente, o leão chora; denotativamente, o menino agride.

II.  A decadência do leão é tanta, que nada faz lembrar a sua antiga reputação. Nem mesmo os adultos o reconhecem mais.

III. Metaforicamente, o leão, que não mais produz e não mais trabalha, pode representar a marginalização, abandono e agressão a que são submetidos os idosos.
      
Inferimos que, de acordo com o texto, pode(m) estar correta(s):

a) Todas
b) Apenas a I
c) Apenas a II
d) Apenas a III
e) Nenhuma das afirmações.


08. 
I.   Evidencia-se  explicitamente no texto uma comparação: a decadência do leão é similar a do ser humano em geral.
 
II.  Incapaz de reagir fisicamente às provocações, o leão, sentindo-se inconformado, morre.

III. O fato de o leão "não estar preso em gradil de ferro constitui, por parte de seus antigos donos, uma prova de gratidão.

Inferimos que, de acordo com o texto, pode(m) estar correta(s):

a) Todas
b) Apenas a I
c) Apenas a II
d) Apenas a III
e) Nenhuma das afirmações.

 

 

 

 

 

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

CRÔNICA: O LEÃO - DALTON TREVISAN - COM QUESTÕES GABARITADAS

CRÔNICA: O leão
                                 Dalton Trevisan

        A menina conduz-me diante do leão, esquecido por um circo de passagem. Não está preso, velho e doente, em gradil de ferro. Fui solto no gramado e a tela fina de arame é escarmento ao rei dos animais. Não mais que um caco de leão: as pernas reumáticas, a juba emaranhada e sem brilho. Os olhos globulosos fecham-se cansados, sobre o focinho contei nove ou dez moscas, que ele não tinha ânimo de espantar. Das grandes narinas   escorriam gotas e pensei, por um momento, que fossem lágrimas.
        Observei em volta: somos todos adultos, sem contar a menina. Apenas para nós o leão conserva o seu antigo prestígio – as crianças estão em redor dos macaquinhos. Um dos presentes explica que o leão tem as pernas entrevadas, a vida inteira na minúscula jaula.  Derreado, não pode sustentar-se em pé. Chega-se um piá e, desafiando com olhar selvagem o leão, atira-lhe um punhado de cascas de amendoim. O rei sopra pelas narinas, ainda é um leão: faz estremecer as gramas a seus pés. Um de nós protesta que deviam servir-lhe a carne em pedacinhos.
        -- Ele não tem dente?
        -- Tem sim, não vê? Não tem é força para morder.
        Continua o moleque a jogar amendoim na cara devastada do leão. Ele nos olha e um brilho de compreensão nos faz baixar a cabeça: é conhecida a amarga derrota. Está velho, artrítico, não se aguenta das pernas, mas é um leão. De repente, sacudindo a juba, põe-se a mastigar capim. Ora, leão come verde! Lança-lhe o guri uma pedra: acertou no olho lacrimoso e doeu.  O leão abriu a bocarra de dentes amarelos, não era um bocejo.
        Entre caretas de dor, elevou-se aos poucos nas pernas tortas. Sem sair do lugar, ficou de pé. Escancarou penosamente os beiços moles e negros, ouviu-se a rouca buzina do “Ford antigo.”  Por um instante o rugido manteve suspensos os macaquinhos e fez bater mais depressa o coração da menina. O leão soltou seis ou sete urros. Exausto, deixou-se cair de lado e fechou os olhos para sempre.
                                                                   Dalton Trevisan
Entendendo o texto:

01 – ITA:      
I. Embora não seja um texto predominantemente descritivo, ocorre descrição, visto que o autor representa a personagem principal através de aspectos que a individualizam.
II. Por ressaltar unicamente as condições físicas da personagem, predomina a descrição objetiva no texto, com linguagem denotativa.
III. Por ser um texto predominantemente narrativo, as demais formas - descrição e dissertação -inexistem.
Inferimos que, de acordo com o texto, pode(m) estar correta(s):
a) Todas
b) Apenas a I
c) Apenas a II
d) Apenas a III
e) Nenhuma das afirmações.

02 – ITA.
I. Fato principal: a morte do leão. Causas principais: o circo, que o abandonou, e a criança, que o acertou com uma pedra.
II. A decadência física do leão, assunto predominante do texto, denota animalização do ser humano.
III. A velhice do leão, assunto predominante do texto, conota marginalização, maus tratos e decadência física dos animais.
Inferimos que, de acordo com o texto, pode(m) estar correta(s):
a) Todas
b) Apenas a I
c) Apenas a II
d) Apenas a III
e) Nenhuma das afirmações.

03 – (ITA)            
I. Conotativamente, o leão chora; denotativamente, o menino agride.
II. A decadência do leão é tanta, que nada faz lembrar a sua antiga reputação. Nem mesmo os adultos o reconhecem mais.
III. Metaforicamente, o leão, que não mais produz e não mais trabalha, pode representar a marginalização, abandono e agressão a que são submetidos os idosos.
Inferimos que, de acordo com o texto, pode(m) estar correta(s):
a) Todas
b) Apenas a I
c) Apenas a II
d) Apenas a III
e) Nenhuma das afirmações.

04 – (ITA)       
I. Evidencia-se explicitamente no texto uma comparação: a decadência do leão é similar à do ser humano em geral.
II. Incapaz de reagir fisicamente às provocações, o leão, sentindo-se inconformado, morre.
III. O fato de o leão "não estar preso em gradil de ferro constitui, por parte de seus antigos donos, uma prova de gratidão.
Inferimos que, de acordo com o texto, pode(m) estar correta(s):
a) Todas
b) Apenas a I
c) Apenas a II
d) Apenas a III
e) Nenhuma das afirmações.






quarta-feira, 24 de outubro de 2018

CRÔNICA: DOIS VELHINHOS - DALTON TREVISAN - COM QUESTÕES GABARITADAS

Crônica: Dois velhinhos
                     
Fonte da image - https://www.blogger.com/blog/post/edit/7220443075447643666/8246254213500826162#
                
Dalton Trevisan


        Dois pobres inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.
        Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um podia olhar lá fora.
        Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, perguntava o que acontecia. Deslumbrado, anunciava o primeiro:
        — Um cachorro ergue a perninha no poste.
        Mais tarde:
        — Uma menina de vestido branco pulando corda.
        Ou ainda:
        — Agora é um enterro de luxo.
        Sem nada ver, o amigo remordia-se no seu canto. O mais velho acabou morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela.
        Não dormiu, antegozando a manhã. Bem desconfiava que o outro não revelava tudo.
        Cochilou um instante — era dia. Sentou-se na cama, com dores espichou o pescoço: entre os muros em ruína, ali no beco, um monte de lixo.

Texto extraído do livro “Mistérios de Curitiba”,
Editora Record Rio de Janeiro, 1979, pág. 110.
Entendendo a crônica:
01 – (CEFET-RN) O narrador em questão pode ser classificado como:
a) excluído.                                                 
b) onisciente.
c) personagem.                                           
d) observador.

02 – (CEFET-RN) Conforme os atributos relacionados às personagens centrais do conto, pode-se afirmar que há uma caracterização:
a) minuciosa.                                             
b) psicológica detalhada.
c) parcial.                                                  
d) social detalhada.

03 – Do ponto de vista dos gêneros textuais, podemos classificar o texto como:
a) uma crônica.          
b) um artigo de opinião.               
c) um conto.               
d) uma reportagem.

04 – Enquanto um olhava para a rua, o que o outro via?
      Via uma parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz.

05 – Quais foram os acontecimentos que o velho que estava na janela relatou?
·        Um cachorro ergue a perninha no poste.
·        Uma menina de vestido branco pulando corda.
·        Agora é um enterro de luxo.

06 – Após a morte do mais velho, o outro velhinho foi até a janela. O que ele viu?
      Entre os muros em ruína, ali no beco, ele só viu um monte de lixo.

07 – Quem é o autor? De onde foi extraído o texto?
      Dalton Trevisan. Do Livro “Mistérios de Curitiba”.



quarta-feira, 19 de setembro de 2018

CRÔNICA: APELO - DALTON TREVISAN - COM GABARITO

Crônica: Apelo
                           
      Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
        Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.
        Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.

                                                                    Dalton Trevisan.
 Entendendo a crônica: 
01 – A pessoa que escreve a carta chama-se remetente e a pessoa a quem se destina a carta chama-se destinatário.
No texto “Apelo”:
a)   Quem é o remetente? 
É o narrador-personagem.

b)   Quem é o destinatário?
A Senhora.

02 – Qual é o tema dessa crônica?
      Apelo de Dalton Trevisan. A crônica tematiza a solidão de um homem em razão da separação da mulher. O leitor toma conhecimento do rompimento pelo relato o narrador-personagem.

03 – De que gênero o autor se apropria para construir o texto?
      O autor se apropria do gênero carta. O narrador-personagem se dirige à "Senhora" somo se estivesse lhe escrevendo uma carta, por meio da qual dá notícias a respeito de como ficou sua vida sem ela.

04 – Na frase “a pilha de jornais ali no chão ninguém os guardou debaixo da escada”, o pronome oblíquo os, se refere ao que?
      Refere-se a pilha de jornais.

05 – Identifique o narrador e o seu interlocutor.
      O narrador é alguém que se dirige à "Senhora", a mulher com quem ele vivia.

06 – Que sentimentos do narrador podem ser percebidos em relação à interlocutora?
      Inicialmente, ele tem um sentimento de liberdade. À medida que o tempo passa e a casa fica desorganizada ele sente falta da mulher, que desempenhava o papel de mãe e dona de casa, pois o narrador sente mais falta da mulher-objeto do que da amante ou companheira.

07 – Que imagem de mulher o narrador constrói por meio do relato?
      A imagem de uma mãe e dona de casa, pois relata as privações sofridas por ele e pelo restante da família com a ausência dela. 

08 – Toda carta possui um determinado objetivo. Qual o objetivo desta carta?
      Reclamar da falta que a mulher está fazendo e pedindo para que ela volte.

09 – Como você interpreta as duas últimas frases do texto?
    "Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor".
      Pode-se inferir que há na residência outras pessoas (além de um canário e de violetas) que estão desamparados, com a ausência da mulher. É importante ressaltar que essas frases, marcam uma ruptura em relação aos sentimentos expressos anteriormente, pois o narrador declaradamente expressa sentir falta das qualidades afetiva da Senhora, e não só da dona de casa.

10 – Explique o uso da inicial maiúscula em "Senhora".
      Trata-se, possivelmente, de uma deferência respeitosa à mulher. Por outro lado pode revelar, subjetivamente, uma atitude machista (arcaica), no sentido de que ela é colocada como uma "Senhora ou Rainha do Lar".