Crônica: Ter ou não ter namorado, eis a questão
Artur da Távola Quem não tem namorado é alguém que
tirou férias não remuneradas de si mesmo. Namorado é a mais difícil das
conquistas. Difícil porque namorado de verdade é muito raro. Necessita de
adivinhação, de pele, saliva, lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia.
Paquera, gabira, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixão é fácil. Mas
namorado mesmo é muito difícil.
Namorado não precisa ser o mais bonito,
mas ser aquele a quem se quer proteger e quando se chega ao lado dele a gente
treme, sua frio, e quase desmaia pedindo proteção. A proteção dele não precisa
ser parruda ou bandoleira: basta um olhar de compreensão ou mesmo de aflição.
Quem não tem namorado não é quem não
tem amor: é quem não sabe o gosto de namorar. Se você tem três pretendentes,
dois paqueras, um envolvimento, dois amantes e um esposo; mesmo assim pode não
ter nenhum namorado. Não tem namorado quem não sabe o gosto da chuva, cinema,
sessão das duas, medo do pai, sanduíche da padaria ou drible no trabalho.
Não tem namorado quem transa sem
carinho, quem se acaricia sem vontade de virar lagartixa e quem ama sem
alegria.
Não tem namorado quem faz pactos de
amor apenas com a infelicidade. Namorar é fazer pactos com a felicidade, ainda
que rápida, escondida, fugidia ou impossível de curar.
Não tem namorado quem não sabe dar o
valor de mãos dadas, de carinho escondido na hora que passa o filme, da flor
catada no muro e entregue de repente, de poesia de Fernando Pessoa, Vinícius de
Moraes ou Chico Buarque, lida bem devagar, de gargalhada quando fala junto ou
descobre a meia rasgada, de ânsia enorme de viajar junto para a Escócia, ou
mesmo de metrô, bonde, nuvem, cavalo, tapete mágico ou foguete interplanetário.
Não tem namorado quem não gosta de
dormir, fazer sesta abraçado, fazer compra junto. Não tem namorado quem não
gosta de falar do próprio amor nem de ficar horas e horas olhando o mistério do
outro dentro dos olhos dele; abobalhados de alegria pela lucidez do amor.
Não tem namorado quem não redescobre a
criança e a do amado e vai com ela a parques, fliperamas, beira d’água, show do
Milton Nascimento, bosques enluarados, ruas de sonhos ou musical da Metro.
Não
tem namorado quem não tem música secreta com ele, quem não dedica livros, quem
não recorta artigos, quem não se chateia com o fato de seu bem ser paquerado.
Não tem namorado quem ama sem gostar; quem gosta sem curtir quem curte sem
aprofundar. Não tem namorado quem nunca sentiu o gosto de ser lembrado de
repente no fim de semana, na madrugada ou meio-dia do dia de sol em plena praia
cheia de rivais.
Não tem namorado quem ama sem se
dedicar, quem namora sem brincar, quem vive cheio de obrigações; quem faz sexo
sem esperar o outro ir junto com ele.
Não tem namorado quem confunde solidão
com ficar sozinho e em paz. Não tem namorado quem não fala sozinho, não ri de
si mesmo e quem tem medo de ser afetivo.
Se você não tem namorado porque não
descobriu que o amor é alegre e você vive pesando 200Kg de grilos e de medos.
Ponha a saia mais leve, aquela de chita, e passeie de mãos dadas com o ar.
Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de
esperança. De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesma e
descubra o próprio jardim.
Acorde com gosto de caqui e sorria
lírios para quem passe debaixo de sua janela. Ponha intenção de quermesse em
seus olhos e beba licor de contos de fada. Ande como se o chão estivesse
repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual
trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteio.
Se você não tem namorado é porque não
enlouqueceu aquele pouquinho necessário para fazer a vida parar e, de repente,
parecer que faz sentido.
(Artur
da Távola. In: Joaquim Ferreira dos Santos (Org.) As cem melhores crônicas
brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 244-245.)
Entendendo a crônica:
01 – Para o autor, só sabe o
que é namorar quem:
a)
Cultiva o hábito de fazer poesia.
b)
Entra em sintonia com o outro no
plano das sensações.
c)
Distingue o que é concreto do que é abstrato.
d)
Vivencia as sensações do amor sem se
entregar.
e)
Sabe teorizar sobre os seus sentimentos.
02 – “Enlou-cresça”. O
neologismo em questão sintetiza o seguinte pensamento:
a)
Só é possível crescer se a vida não fizer
nenhum sentido.
b)
O sentido da vida se constrói a partir do
crescimento intelectual.
c)
O crescimento e loucura são considerados
processos incompatíveis.
d)
O sentido da vida se dá pela tensão
entre crescimento e loucura.
e)
O sentido da vida é construído por meio da
loucura.
03 – Em: “... mas aquele a
quem se quer proteger e
quando se chega ao lodo dele a gente treme...”, a conjunção destacada pode ser
substituída, sem alteração de sentido, por:
a)
Se, já que impõem uma
condição para a relação amorosa.
b)
Pois, já que introduziu uma justificativa para a emoção do ser amoroso.
c)
Logo, já que o período
demonstra a determinação do ser amoroso.
d)
Entretanto, já
que o período mostra uma incoerência do ser amoroso.
e)
Como, já que introduz a
descrição do comportamento do ser amoroso.
04 – “Se você tem três pretendentes,
dois paqueras, um envolvimento e dois amantes, mesmo assim
pode não ter namorado”. Segundo as ideias do autor, sobre os termos
destacados, não se pode afirmar que:
a)
Os quatro primeiros opõem-se, em
significado, ao último.
b)
São vocábulos diferentes para a mesma
significação.
c)
Exercem funções sintáticas distintas, de
acordo com a posição.
d)
São utilizados por grupos sociais distintos
para definir “namorado”.
e)
O último relaciona-se com o verbo da segunda
oração na função de sujeito.
05 – No sexto parágrafo, a
sequência de formas verbais, no Imperativo, denota um(a):
a)
Treinamento.
b)
Aconselhamento.
c)
Ordem.
d)
Solicitação.
e)
Ponderação.
06 – “Se você não tem um
namorado é porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho necessário...”.
Com o emprego do vocábulo destacado, neste contexto, o narrador sugere que:
a)
No momento, ele está imaturo para
amar.
b)
Algumas pessoas não merecem ser amadas.
c)
Qualquer leitor(a) pode vir a ter um
namorado.
d)
Todos os momentos da vida são propícios ao
amor.
e)
No momento, o leitor(a) não está preparado(a)
para namorar.
07 – Marque a alternativa em
que a ocorrência da preposição destacada não apresenta valor gramatical.
a)
“... basta um olhar de
compreensão...”.
b)
“A proteção dele não precisa...”.
c)
“... mistério do outro dentro dos
olhos dele...”.
d)
“... pela lucidez do amor”.
e)
“... ruas de sonho...”.
08 – Em que alternativa um
dos termos, se apresenta sintaticamente diferente dos demais?
a)
“... basta um olhar de compreensão ou
mesmo de aflição”.
b)
“Não tem namorado quem não gosta de
dormir...”.
c)
“... alguém que tirou férias não
remuneradas...”.
d)
“... redescobre a criança
própria...”.
e)
“... namorado de verdade é muito
raro”.
09 – No trecho: “Quem não
tem namorado é alguém que tirou férias remuneradas de si mesmo”, o
sentido da expressão em destaque só não se aplica a:
a)
Privar-se de férias não pagas.
b)
Abdicar gratuitamente de si mesmo.
c)
Renunciar em vão a si mesmo.
d)
Despojar-se inutilmente de si mesmo.
e)
Esvaziar-se a troco de nada.
10 – De acordo com o texto,
para conseguir namorar alguém, é necessário:
a)
Pedir autorização aos pais.
b)
Fazer pactos de amor com a infelicidade.
c)
Temer o afeto e o carinho.
d)
Escovar a alma de leve fricções de
esperança e abrir o coração.
e)
Esquecer-se da sua criança própria.
11 – O trecho: “Não tem
namorado quem não sabe o gosto da chuva, cinema sessão das duas, medo do pai,
sanduíche de padaria ou drible no trabalho”, aponta um indício para dizer que
ter namorado é:
a)
Em tempo algum ter lanchado na padaria.
b)
Jamais ter temido o pai.
c)
Nunca ter ido ao cinema à tarde.
d)
Não ter tomado chuva.
e)
“Decretar feriado” por conta
própria.
12 – Em: “Namorar é fazer
pactos com a felicidade, ainda que rápida, escondida, fugida ou
impossível de curar”, o conectivo em destaque expressa ideia de:
a)
Condição.
b)
Concessão.
c)
Comparação.
d)
Causa.
e)
Consequência.
13 – Em: “Não tem namorado
quem não redescobre a criança própria e a
do amado e sai com ela para
parques (...)”, as palavras sublinhadas no período referem-se ao antecedente:
a)
“Mistério”.
b)
“Criança”.
c)
“Namorado”.
d)
“Amado”.
e)
“Parques”.
14 – No trecho: “Se você
ainda não tem namorado, é porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho
necessário a fazer a vida parar e de repente parecer que faz sentido”, a
“loucura” é associada a:
a)
Paixão.
b)
Coragem.
c)
Esquisitice.
d)
Desequilíbrio.
e)
Alegria.