Crônica: Generais do Cotidiano
Walcyr Carrasco
COM UM FILHO NO COLO, sacola na mão e passo
vagaroso, a diarista toca o interfone do prédio. Entrada permitida, sobe uma
longa escada à direita.
Está no meio quando o porteiro se aproxima
rugindo, braços agitados:
— Volte! Vá pela da esquerda.
Protestos, lamentações, nada adianta. A moça
desce penosamente os degraus para retomar o caminho. Que leva exatamente ao
mesmo lugar, o lobby do edifício. O porteiro cruza os braços, vitorioso. Fez
valer a autoridade. Diz um ditado que basta dar um quepe a alguém para que essa
pessoa se sinta general. Nunca vou esquecer o dia em que estacionei em frente a
um prédio residencial na alameda Lorena, nos Jardins. O porteiro, gritou, com
voz de comando:
— Você não pode estacionar aí. Tire o carro.
— Por quê? A rua é pública.
— Mas o síndico não gosta.
Senti a Declaração dos Direitos Humanos ferver
dentro da minha cabeça. Não que ela entre em detalhes sobre síndicos. Mas o
nome pomposo mexe com meus brios de cidadão. Ergui o queixo:
— Pois é aqui que ele vai ficar. Se eu voltar e
tiver acontecido alguma coisa, tipo pneu murcho, chamo a polícia.
No regresso, o veículo estava intato. Eu não.
Passei o tempo todo, na visita a uma amiga, preocupado com a possível
represália.
O maior terror dos candidatos a vestibular é
chegar um minuto atrasado. Há sempre uma inspetora fechando a porta. Se o
estudante tentar entrar pela fresta, é capaz de decepar os dedos da mão, tal a
decisão dessas guardiãs.
— Você ainda nem fechou direito.
— Atrasou, não entra!
Inútil argumentar que o minuto vale um ano. O
prazer dessas pessoas é exercer a autoridade. Como fazem as recepcionistas de
empresa.
— A identidade, por favor.
— Estou sem ela. Tenho o título de eleitor,
serve? - — Não, não tem foto.
A minha foto da identidade tem uns vinte anos e
uns vinte quilos a menos. Para que serve, a não ser para refletir sobre os
espinhos da passagem do tempo?
Falar de certas secretárias é redundante.
Existem as mais ferozes do que os
chefes.
Telefono e entra em cena a inquisidora:
— Qual é o assunto?
— Diga apenas que sou eu.
— Ele sabe quem é?
— O interesse é dele. Se não quiser avisar, o
problema é seu.
Ouço um gemido raivoso do outro lado. Quando
sentem a autoridade trincada, deixam aflorar os sentimentos mais selvagens. Os
seres mais terríveis no exercício dos pequenos poderes estão, provavelmente, na
área artística. Testes para ator de teatro são a prova. Um bando de jovens
passa horas e horas esperando numa sala. O diretor e alguns asseclas chamam de
um em um. Mandam o candidato falar de si próprio, dançar, cantar, contar piada.
Olham de cima, como se estivessem diante de um verme, enquanto a. pessoa rebola
e desafina. Depois concluem:
— Daqui a alguns dias a gente telefona.
Nunca mais chamam, nem atendem se o candidato
liga. É o mesmo estilo de quem recebe pretendentes a modelo nas agências
especializadas. A mocinha de cabelos bem cortados, sorriso sedutor, cordas
vocais gélidas, avisa a adolescente esquálida que ambiciona as passarelas:
— Espera aí que eu já falo com você.
Passam-se três ou quatro horas antes que a
anoréxica seja percebida novamente, embora esteja no sofá em frente.
— Ih, você ainda está aí? Esqueci de dizer,
nosso diretor não vai receber mais ninguém hoje. Desculpe.
Sorri, derramando fel.
A gana pelo poder é tão grande que certas
pessoas o exercem sem que se entenda bem por quê. Foi o caso de duas senhoras,
recentemente, numa rua do Itaim. O marido de uma parou o carro, fechando a vaga
do de trás. A dona do carro preso quis sair. Não conseguiu, começou a brigar. A
que esperava o marido pediu um tempo. Começou o bate-boca, que continuou após a
chegada do motorista e a liberação do carro. A tantas, a primeira gritou:
— Você sabe com quem está falando?
Imediatamente, a segunda retrucou:
— E você, sabe com quem está falando?
Olharam-se, apavoradas uma com a outra.
Correram para seus carros e partiram rapidamente.
Quem gosta de mandar sempre acaba encontrando
quem queira mandar ainda mais. Trombam e soltam faíscas. E a prova de que rio
mundo ainda existe uma certa justiça!
Nos
tempos da naftalina
Brrrrr! Passei a vida toda dizendo que adoraria
viver em um país com neve. Só para bancar o chique, naturalmente. Observava,
sonhador, as fotos de estações de esqui, embora morra de medo de altura e seja
descoordenado demais para descer geleiras sem embaralhar as pernas. Tudo
bobagem. Passei os últimos tempos rugindo contra o frio. Felizes, em São Paulo,
ficaram apenas as proprietárias de peles que, após anos de espera, puderam
retirá-las dos baús. Outro dia pensei que uma senhora estivesse sendo mordida
no pescoço por um cachorro magro. Aproximei-me, heroico. Tratava-se de uma
raposa. Mumificada, de tão velha. Francamente, nada mais tenebroso do que os
dentinhos brancos e a boca arreganhada do bicho.
O frio provou que a cidade não está aparelhada
para o inverno. A começar pelas obras arquitetônicas. Uma conhecida investiu
fortunas construindo uma casa de concreto pendurada no morro, e assinada por um
arquiteto de renome. Seu quarto, voltado para a paisagem, possui portas-balcão
belíssimas, bem em frente à cama. Pelas frestas entra um vento frio a noite
toda. O chão, lindíssimo, de cimento branco, assemelha-se hoje a um campo
nevado. Vestida com uma camisola de flanela, pantufas e uma touquinha para
proteger as orelhas, a elegante comenta, com um sorriso conformado:
— Dá a impressão de que estou morando num
freezer. Mas vou acabar me acostumando.
— Tenho uma informação desagradável. Ninguém se
acostuma ao frio.
Senão os esquimós andariam pelados — explico
gentilmente.
Ela disfarça. Dorme abraçada com sua cachorra
da raça pastor alemão, à qual, com a função de aquecedor biológico, foi
promovida do canil para os lençóis.
Da minha alergia, nem falo! Noite dessas
compareci a um desfile de moda. O odor da naftalina dos casacos de lã, peles
sintéticas e outros artefatos era evidente. Nem o perfume francês de algumas
"modetes" evitou meus espirros. Pior, apenas o sorriso estarrecido
dos modelos desfilando biquínis e maios. Andavam pela passarela com a
desenvoltura de sorvetes. É o preço do glamour. Também os guarda-roupas não
estavam preparados para os ventinhos torturantes. Foram anos e anos de inverno
enganador. Quantas vezes passei incólume diante de liquidações de camisas de
flanela! E mesmo agora, poucos ainda acreditam em frio duradouro, capaz de
compensar o investimento em casacos e botas forradas. Prefere-se dar um
jeitinho. À custa de enormes transtornos psicológicos, reconheço. Como quando
decidi vestir uma confortável calça de veludo. Não abotoou na barriga. Respirei
fundo, consegui. Soltei o ar, o botão de cima incrustou-se no umbigo. Quase
chorei. Uma calça apertada é sempre a testemunha cruel dá passagem dos anos.
Consolo-me por não ser o único. A cidade vive um festival de paletós apertados
no abdome, casacos largos demais e buracos de traças em geral. Um amigo careca
botou boné.
— Tive medo de a geada queimar o resto dos
cabelos — explica.
Qualquer jantar transforma-se num desastre. No
trajeto entre a travessa e o prato, a comida esfria completamente. Somos obrigados
a devorar estrogonofe gélido e macarrão colante. Comer pizza pode resultar em
fratura de queixo.
Só me surpreendo com certas mulheres, capazes de sair de pernas de fora, saia curta e sapatos de salto. Deviam ser estudadas pela Nasa e utilizadas em alguma experiência de vida em ambiente alienígena. Às vezes sinto tanto frio que sonho entrar numa banheira cheia de conhaque com um canudinho na mão. Confesso a saudade das camisas de manga curta, dos sapatos, da cervejinha gelada! Mal posso esperar pelo verão! Ele virá, eu sei. Ainda bem. Aí poderei reclamar do calor.
Entendendo o texto
01. Qual é o
episódio inicial da crônica "Generais do Cotidiano" de Walcyr
Carrasco?
a) Uma visita a um
amigo.
b) Uma
discussão entre diarista e porteiro.
c) Um desfile de
moda.
d) Um jantar em um
restaurante.
02. O que acontece
quando o motorista estaciona em frente a um prédio nos Jardins, conforme
mencionado na crônica?
a) O carro é
rebocado.
b) O porteiro
autoriza o estacionamento.
c) O
síndico pede para tirar o carro.
d) O autor desafia o
porteiro.
03. Como o autor
caracteriza as inspetoras que fecham as portas do vestibular?
a) Solidárias.
b) Indiferentes.
c) Bondosas.
d)
Autoritárias.
04. Segundo a
crônica, qual é o prazer das pessoas que exercem autoridade, como as
recepcionistas de empresas?
a) Facilitar o
acesso.
b) Exercer
a autoridade.
c) Ser solidárias.
d) Ignorar regras.
05. O que a crônica
sugere sobre a foto da identidade do autor?
a) Está atualizada.
b) É recente.
c) Reflete
o envelhecimento.
d) Não tem
importância.
06. Qual é a crítica
do autor em relação aos testes para ator de teatro?
a) São fáceis.
b) São justos.
c) São
humilhantes.
d) São rápidos.
07. De acordo com a
crônica, qual é o estilo das pessoas que exercem pequenos poderes na área
artística?
a) Amigável.
b) Gentil.
c)
Autoritário.
d) Despreocupado.
08. O que a crônica
sugere sobre a atitude das duas senhoras que brigam por uma vaga de
estacionamento?
a) Elas são
amigáveis.
b) Elas
têm medo uma da outra.
c) Elas gostam de
desafios.
d) Elas têm medo de
represálias.
09. Qual é o
comentário irônico do autor sobre a cidade não estar aparelhada para o inverno?
a) A cidade não
precisa se preparar para o inverno.
b) A cidade está
totalmente preparada.
c) A
cidade não sabe lidar com o frio.
d) O inverno não
afeta a cidade.
10.O que o autor
expressa em relação ao frio no último parágrafo da crônica?
a) Alegria pelo
inverno.
b)
Descontentamento com o inverno.
c) Desejo de viver
em um país com neve.
d) Gratidão pelo
frio intenso.
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