Crônica: Botando pra quebrar
Fernando Sabino
Dona Neném viu o anúncio na televisão e
se entusiasmou: duro na queda, cai sem quebrar. Não era de hoje que esse
problema vinha infernizando a sua vida doméstica: pratos trincados, xícaras sem
pires, sopeiras sem tampas, peças desfalcadas inutilizando o jogo inteiro. Ela
própria sendo a principal desastrada, ao ensinar a nova cozinheira como lavar a
louça sem quebrar uma só peça, acabava quebrando duas.
Agora vinha aquela novidade: a louça
inquebrável. Só que desta vez não era pirex, nem plástico: tinha todo o aspecto
de louça de verdade.
— O senhor garante que não quebra
mesmo? — perguntou no supermercado, diante da novidade em exibição na
prateleira.
O empregado lhe estendeu um prato com
um sorriso superior:
— Se não acredita, pode experimentar.
Dona Neném é dessas que pagam para ver:
atirou no chão o prato e o prato se espatifou em mil pedaços. O homem tentou
recolher o sorriso agora desapontado:
—
É porque bateu de quina.
— Posso experimentar outro?
Dona Neném pegou outro prato e jogou no
chão, com o mesmo resultado. O homem coçava a cabeça com ar de parvo:
— Não sei como explicar...
— Este não bateu de quina.
— Devia estar com defeito.
Um senhor gordo, que se detivera para
assistir à cena, afastou polidamente o empregado com o braço e se adiantou, ar
suficiente:
— Não quebram mesmo, eu conheço o
produto. É que a senhora jogou assim... — pegou um prato e ergueu-o no ar
como se fosse atirá-lo com força: — Ao passo que a senhora devia ter deixado
cair assim.
Deixou delicadamente que o prato se
escapasse de suas mãos. Ao bater no chão, o prato se espatifou.
— Então, está bem, estou satisfeita —
disse dona Neném, e foi saindo.
— Espere! — saltou o homem do
supermercado, ferido nos seus brios: — Eu asseguro à senhora que não quebra
mesmo, quer ver?
Deixou cair um prato, que saiu
saltitando pelo chão, sem se quebrar.
— Eu não disse? — tornou ele, mostrando
os dentes, vitorioso: — É uma questão de jeito. Uma simples questão de jeito.
— Uma simples questão de jeito —
repetiu ela: — Quer dizer que para quebrar é preciso deixar cair com jeito.
— É isso mesmo! — desafiou uma
mulherzinha que se detivera junto a eles, interessada: — Com ele não quebra,
mas com a gente quebra.
— Então experimente a senhora — e o
homem lhe estendeu o prato.
— Prefiro a sopeira, se o senhor não se
incomoda.
Ela tinha cara de uma grande quebradora
de louça. Pegou a sopeira e deixou cair: caco para todo lado. Estimulada pelo
exemplo, uma menina desgarrou-se da mãe; passou a mão numas xícaras e atirou ao
chão. Quebraram-se todas. O senhor gordo chamou-lhe a atenção:
— Assim não, minha filha. Tem de deixar
cair.
Pegou uma pilha de pires e deixou cair.
O chão se cobria de cacos de louça. A menina, entusiasmada, se servia na
prateleira, atirando ao chão tudo que suas mãos alcançavam. A mulherzinha
completou a obra largando no ar, delicadamente como queria o outro, a tampa da
sopeira que lhe ficara nas mãos.
— Parem! Parem! — pedia o homem,
desesperado: — Assim vocês me quebram a louça inteira! Alguém vai ter que pagar
por isso.
Voltou-se
para dona Neném, ameaçador:
— A senhora vai ter que pagar. Foi
quem começou.
— Pagar, eu? Tinha graça! Devagar com
a louça! Não é inquebrável? — e dona Neném botou pra quebrar, reduzindo a
pedaços as últimas peças que restavam em exibição.
A essa altura a confusão já se
generalizava e o gerente acorria, mobilizando os guardas de segurança da casa:
— Que está acontecendo? Que loucura é
essa?
O empregado tentava se explicar,
nervoso, até que o gerente o fez calar-se, botando também pra quebrar:
— Seu idiota! Cretino! Imbecil! — e
apontou outra prateleira de louças: — A inquebrável é aquela! Quem vai ter que
pagar é você. E está despedido.
Voltou-se para os fregueses, procurando
se conter:
— Desculpem, ele é novo na casa... A
louça não é esta, é aquela ali. São realmente inquebráveis, venham ver.
Dona Neném se adiantou, interessada:
— Posso experimentar?
Sem esperar resposta, pegou um dos
pratos realmente inquebráveis e deixou cair. O prato esfarelou-se no chão.
Fernando Sabino. Revista
Ícaro, n. 54.
Fonte: Livro – Encontro
e Reencontro em Língua Portuguesa – 5ª Série – Marilda Prates – Ed. Moderna,
2005 – p. 230-3.
Entendendo a crônica:
01 – Você conhece a
expressão “duro na queda”? Ela já serviu até como título de filme de aventura.
Qual o significado dessa expressão no texto?
No texto,
refere-se a pratos difíceis de quebrar, em alusão ao seu significado original,
ou seja, refere-se a tudo o que é resistente.
02 – “Dona Neném é dessas
que pagam para ver”. A expressão pagar para ver tem origem em jogos de pôquer.
Um jogador literalmente paga para ver as cartas do outro. Assim pode saber se
seu oponente tem cartas melhores do que as suas. Qual o significado da
expressão pagar para ver no texto?
Querer comprovação dos fatos.
03 – “O vendedor coçava a
cabeça com ar de parvo”.
a)
Qual o significado de parvo?
Indivíduo tolo, pouco inteligente.
b)
Por que o vendedor ficou com ar de parvo?
Porque não fazia sentido para ele os pratos quebrarem.
04 – A confiança do vendedor
vai sendo quebrada lentamente, à medida que os pratos vão se espatifando. De
que maneira identificamos, no texto, essa mudança na atitude do vendedor?
O vendedor
primeiro exibe um sorriso, depois recolhe o sorriso, desapontado, fica com ar
de parvo, e, finalmente, fica desesperado.
05 – O texto é uma narração
em terceira pessoa. Identifique:
a)
A situação inicial.
Dona Neném vai ao supermercado comprar pratos inquebráveis.
b)
O conflito ou a crise.
O teste dos pratos não dá certo.
c)
O clímax, ponto mais grave do conflito.
As duas mulheres e a menina quebram a louça.
d)
Solução do conflito.
A louça quebrada não era a oferecida como inquebrável.
e)
Início de uma nova situação.
A louça oferecida na propaganda foi localizada e começou a ser
testada.
06 – De acordo com as
respostas do exercício 5, responda: a solução do conflito foi a solução do
problema de Dona Neném?
Não, pois o
problema de Dona Neném era adquirir pratos inquebráveis e a solução do conflito
foi a descoberta de que os pratos testados não eram os da propaganda.
07 – No texto, a propaganda
parece ter iludido os consumidores.
a)
Você acha que propaganda enganosa é crime?
Justifique sua resposta.
Resposta pessoal do aluno.
b)
Você acredita em tudo o que as propagandas
prometem? Por quê?
Resposta pessoal do aluno.