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quarta-feira, 21 de junho de 2023

CRÔNICA: O MARRECO QUE PAGOU O PATO - CARLOS EDUARDO NOVAES - COM GABARITO

 CRÔNICA: O MARRECO QUE PAGOU O PATO

                    Carlos Eduardo Novaes

 Semana passada, São Paulo, apesar de toda fama de que não pode parar, parou. E não foi num congestionamento. Parou para discutir o caso do marreco Quércia e sua marreca Amélia, presos e engaiolados durante 24 horas sob a acusação de poluírem o meio ambiente. Diante do fato eu fico aqui pensando que os paulistas já devem ter resolvido todos os seus grandes problemas urbanos. Sim, claro: quando um povo começa a prender marrecos é porque não tem mais nada para fazer.

  

Fonte da imagem - https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2KIYLsOBW0u5H8Qv_dhMSPgOI_s2N-RL9Xl_kzcxusrDVScW807vN-S_HI0WHoZS_3Q2D28Dqi5m2_wjSx4ltt5ps31e2e1c2A8sMEHnNrOPqVux550E84wdLbItBhjxPYqOMmbT6q9-doljoa_-Ly0PVLYwx_LW97KjgvZjxfVO7tLAW0GEsZTuUL-g/s320/Marreco.jpg

O marreco Quércia - deixa-me explicar - ganha a vida honestamente como relações-públicas da casa Agro Dora, na Rua da Consolação, 208. Em seu trabalho passa os dias inteiros circulando pela calçada e atraindo fregueses para a loja. Na segunda-feira o gerente da loja foi surpreendido com a presença de um fiscal, que muito compenetrado perguntou se o marreco era de sua propriedade. Diante da resposta positiva, virou-se para o gerente e pediu:

"Seus documentos?". Leu atentamente um por um, devolveu-os e disse: "Agora deixe-me ver os documentos do marreco".

- O marreco não tem documentos - respondeu o gerente.

- Nenhum? Nem título de eleitor? Certificado de reservista? Nada? Então eu acho que vou ter que prender o seu marreco.

- O senhor não pode fazer uma coisa dessas - ponderou o gerente. - Não há nenhuma lei que obrigue marrecos a ter documento.

- Não há? - desconfiou o fiscal. - Então espere um momentinho.

Foi ao telefone e ligou para o chefe da repartição: "Alô, chefe? Encontrei um marreco passeando pela rua sem documento".

- Que está esperando? - vociferou o chefe. - Prenda-o por vadiagem.

- Mas, chefe, é um marreco. Precisamos de uma lei para enquadrá-lo. O senhor sabe qual é o número dessa lei?

- Não tenho a menor ideia.

- Então pergunta se alguém aí sabe.

 - Alguém aí sabe - perguntou o chefe, voltando-se para os funcionários da repartição - quais são os documentos que um marreco necessita para transitar livremente pelas ruas?

Não. Ninguém sabia. O chefe então sugeriu que o fiscal procurasse outro motivo para prender o marreco. "Mas que motivo?", perguntou o fiscal, que era meio duro de imaginação.

- O marreco está nu? - Indagou o chefe. - Então prenda-o por atentado ao pudor.

O fiscal parou um pouco, pensou e não se lembrou de ter visto jamais um marreco vestido. Não, essa era demais. O chefe, já pensando no almoço de domingo, insistiu: "O marreco está parado em cima da calçada?".

- Está.

- Então prenda-o por estacionar em local proibido.

"Boa ideia", pensou o fiscal. Voltou ao gerente, que estava parado na calçada ao lado do marreco, disfarçou, disse que iria perdoar, disse que iria perdoar a falta de documentos, "mas infelizmente tenho que levar o seu marreco por estar parado em local não permitido".

- Esta certo - concordou, irritado, o gerente -, mas então chama o guincho.

- Pra que guincho?

- Meu marreco só sai daqui rebocado.

Formou-se a maior confusão em torno do marreco. O fiscal querendo levá-lo de qualquer maneira, e o gerente, apoiado por dezenas de populares, defendendo a inocência do marreco. Nisso, chegou um segundo fiscal pouquinha coisa mais inteligente que o primeiro e decretou: "O marreco não pode ficar solto, é um agente da poluição".

- Agente de quem? - espantou-se um balconista da loja. - Garanto que não.

O Quércia trabalha aqui há mais de dois anos.

- E daí? - interveio um popular que estava do lado do fiscal. - Ele pode ter dois empregos. Vai ver que quando sai daqui faz um bico em alguma agência.

- E você acha que o marreco, com esse bico, ainda precisa fazer outro?

- A acusação é injusta - interrompeu o gerente -, o marreco não pode ser acusado de poluir. Se eu tivesse aqui um elefante soltando fumaça pela tromba está certo, mas o Quércia nem fuma.

- Não interessa - afirmou o segundo fiscal, meio agressivo -, isso o senhor explica lá para o chefe.

O marreco entrou na sede da Administração Regional da Sé cheia de ginga.

Imediatamente o chefe destacou um funcionário para qualificá-lo: nome, endereço, estado civil, essas coisas.

De gravata e camisa de manga curta, o burocrata sentou-se à máquina e começou: "Nome?". O gerente com o marreco no colo respondeu: "Quércia".

- Quércia de quê?

- De nada.

- Como de nada? Ele não tem família?

- Tem. É da família dos anatídeos.

- Então - prosseguiu o funcionário batendo na máquina -, Quércia Anatídeo.

Terminada a ficha o burocrata abriu uma gaveta e, enquanto procurava o material para tirar as impressões digitais, disse ao gerente:

- Me dá aí o polegar do marreco.

- O marreco não tem polegar - desculpou-se o gerente.

- Não? - disse o funcionário já contrariado porque não encontrava as almofadas para carimbos. - Então me dá o indicador.

- O marreco também não tem indicador.

- E o anular, tem?

- Também não, senhor.

- Poxa - chateou-se o burocrata -, então me dá aí qualquer dedo que estiver sobrando.

O gerente precisou explicar que marreco não tinha dedo. Tinha pata. Ainda assim o funcionário já meio perturbado entendeu que o gerente se referia à companheira do marreco e perguntou: "Uma pata?".

- Não. Duas.

- E ele vive bem com as duas?

Custou pouco para desfazer a confusão. Encerrada essa fase, o funcionário encaminhou-se para outra sala, onde o marreco teria que tirar umas fotos três por quatro de identificação.

O fotógrafo, repetindo gestos tão automáticos quanto a máquina, mandou o marreco subir na cadeira, esticar bem o pescoço, olhar para a frente e não se mexer. O marreco, mesmo sem entender nada, seguiu as instruções do fotógrafo. Quando enfiou a cabeça por debaixo do pano preto - a máquina era daquelas antigas -, observou pelo visor que alguma coisa estava errada. Tornou a levantar a cabeça e indagou do funcionário: "Nós vamos fotografá-lo assim?.

- Assim como? - indagou o funcionário sem entender.

- Sem gravata?

- Não sei - disse o funcionário meio reticente -, mas eu acho que marreco não precisa botar gravata.

- Acho melhor botar uma gravata nele - retrucou o fotógrafo -, você sabe como é o chefe: já disse que foto só de gravata.

O funcionário tirou sua gravata, pediu um paletó emprestado a um datilógrafo, tiraram as fotos necessárias e depois engaiolaram o marreco. E não é que no dia seguinte a poluição em São Paulo diminuiu sensivelmente...

NOVAES, Carlos Eduardo. A cadeira do dentista e outras crônicas. São Paulo: Ática, 1995. p. 77-81.

Fonte: Livro – Português – Conexão e Uso -7º Ano – Dileta Delmanto/Laiz B. de Carvalho, Editora Saraiva, 1ª ed., São Paulo, 2018.p 188-193.

Vocabulário

compenetrado: concentrado.

certificado de reservista: documento utilizado para comprovar

que o cidadão prestou serviço às Forças Armadas do Brasil.

ponderou: considerou, expôs com prudência e calma.

vociferou: berrou, reclamou aos gritos.

transitar: percorrer, caminhar.

atentado ao pudor: ato ofensivo à decência, honra, dignidade de alguém.

ginga: movimento de balançar o corpo de um lado para outro, expressão corporal de quem caçoa.

qualificar: avaliar, emitir opinião a respeito de algo.

burocrata: (pejorativo) pessoa que, por achar de grande prestígio seu cargo burocrático, exorbita de suas funções e assume atitudes intoleráveis no desempenho dessas funções.

anatídeos: família de aves que inclui patos, marrecos, cisnes.

reticente: que hesita ou age com cautela.

retrucou: respondeu de modo imediato.

ENTENDENDO O TEXTO

01. Essa crônica foi escrita por Carlos Eduardo Novaes, conhecido cronista brasileiro.

         a) Qual é a finalidade da crônica de Carlos Eduardo Novaes?

             Despertar reflexões e divertir o leitor.

         b) Qual é o assunto da crônica?

              A história de um marreco que foi preso sem motivo algum.

         c) Sua hipótese sobre o assunto da crônica foi confirmada? Explique.

             Resposta pessoal.

      02. O cronista narra um evento, um pequeno acontecimento, tomando o tema para discutir:

          a) a situação dos patos que são utilizados em atividades comerciais.

          b) a burocracia que leva a situações absurdas no dia a dia das pessoas.

         c) o envolvimento de pessoas estranhas ao caso no desenrolar do conflito.

     03. Converse com os colegas e verifique quais afirmações a seguir se referem adequadamente à crônica lida.

a) Trata-se de uma história curta, com narrador, personagens, tempo e espaço.

         b) Leva à reflexão sobre um problema social.

         c) Faz crítica por meio do humor.

         d) Apresenta trechos narrativos, mas não é considerada como narrativa por apresentar diálogos e descrições.

         e) Trata de um tema atual.

         f) Tem como ponto de partida uma cena ou uma questão do cotidiano.

  04. “O marreco que pagou o pato” é uma crônica narrativa, pois apresenta uma história com começo, meio e fim e tem elementos próprios das narrativas (personagens, tempo, espaço, narrador), assim como acontece no conto, na fábula, no causo, etc.

a) O cronista escolheu o ponto de vista da 3a pessoa. É um narrador que apenas observa e conta o que viu ou parece conhecer os sentimentos dos personagens? Identifique um trecho que exemplifique sua resposta.

Ele parece saber o que se passa no interior dos personagens. Possibilidades: “O fiscal parou um pouco, pensou e não se lembrou de ter visto jamais um marreco vestido.” / “’Boa ideia’, pensou o fiscal.”

b) As narrativas costumam organizar-se nestas partes, que você já conhece.

Situação inicial        Desenvolvimento (ações)      Complicação

Clímax (o ponto mais tenso)           Desfecho

Indique  que momento da narrativa corresponde à complicação e ao desfecho.

Complicação: Os marrecos são presos.

Desfecho: O marreco é fichado como se fosse um criminoso.

 05.Releia estes trechos.

Nisso, chegou um segundo fiscal [...] e decretou: “o marreco não pode ficar solto, é um agente da poluição”.

O funcionário tirou sua gravata, pediu um paletó emprestado a um datilógrafo, tiraram as fotos necessárias e depois engaiolaram o marreco. E não é que no dia seguinte a poluição em São Paulo diminuiu sensivelmente...

a)    Em sua opinião, o narrador acredita que a poluição tenha diminuído depois da prisão do marreco? Explique sua resposta.

Não, ele está zombando da atitude dos burocratas.

b)    Além do contexto, no segundo trecho, qual é a expressão que confirma sua resposta?

Espera-se que os alunos percebam que é a expressão “não é que”, que indica suposta surpresa.

Recursos expressivos

01. A história é narrada em 3a pessoa.

a)   Quem poderia ser esse narrador?

Uma pessoa que teria presenciado os acontecimentos.

b)   Como você o imagina?

Resposta pessoal. Possibilidade: Uma pessoa crítica, irônica e bem-humorada.

c)   Você acha que o narrador poderia ter mesmo presenciado tudo que narra? Explique.

Resposta pessoal.

02. As crônicas podem apresentar uma mistura de trechos narrativos, expositivos (em que se expõem informações para explicar algo), descritivos e opinativos. Indique no caderno se os trechos a seguir são narrativos, expositivos, descritivos ou opinativos.

a)   O marreco Quércia — deixa-me explicar — ganha a vida honestamente como relações públicas da casa A. D. [...]. expositivo

b)   Foi ao telefone e ligou para o chefe da repartição [...].

narrativo

c)    Formou-se a maior confusão em torno do marreco.

narrativo

d)   Sim, claro: quando um povo começa a prender marrecos é porque não tem mais nada para fazer.

opinativo

e)   Nisso, chegou um segundo fiscal pouquinha coisa mais inteligente que o primeiro [...].

opinativo

03. O fiscal e os policiais queriam que o marreco seguisse uma série de normas. Indique algumas dessas normas.

Sugestões: O marreco não pode andar sem documentos, a ave não deveria andar sem roupas nem estacionar em local proibido, o marreco não pode ficar solto, é um agente de poluição.

04. Há momentos em que o narrador conversa diretamente com o leitor, tornando o texto mais informal. Localize um deles.

“O marreco Quércia — deixa-me explicar — ganha a vida honestamente como relações públicas [...].”

domingo, 9 de maio de 2021

CRÔNICA: A IDADE DA PEDRA - CARLOS EDUARDO NOVAES - COM GABARITO

 CRÔNICA: A IDADE DA PEDRA 

     Carlos Eduardo Novaes

         A juventude parece ter descoberto algo de que sempre desconfiei: a vida é um recreio. Como disse uma gatinha de 17 anos entrevistada por um semanário: "só há duas coisas na vida: som e patins". Sendo assim, a juventude Zona sul vai em frente exibindo o seu invejável realce existencial. "O mundo seria muito mais saudável", afirma outra gatinha, "se os nossos governantes andassem de tênis e camiseta". Infelizmente, porém, a terra dos adultos continua sendo aquela coisa árida, sinistra e plúmbea. E é nesta praia que a garotada vai acabar desembarcando quando terminar a pilha da juventude. Tenho certeza de que esse é o momento mais difícil na vida de um jovem de hoje: atravessar a fronteira da juventude para a idade adulta, duas terras que nunca estiveram tão distantes. Sei que a experiência é traumatizante porque tenho um amigo que a viveu com seu filho de 20 anos. O garotão, Otávio, tinha trancado matrícula na faculdade havia dois anos e não queria nem saber: vivia na dele, curtindo adoidado um rock, praia, windsurf, patinação, gatinha, invariavelmente metido dentro do uniforme oficial dos gatões, jeans, camisetas e tênis. O mundo para ele era do tamanho de uma lantejoula. No dia em que fez 21 anos, o pai o chamou para uma conversa.

-- Escuta, filho, nós precisamos conversar. 

O garotão deslizava na sala de um lado para o outro experimentando seus novos patins. Nem era com ele. 

-- Escuta, filho -- repetia o pai, falando como se assistisse a um jogo de tênis: cabeça pra lá, cabeça pra cá --, nós precisamos ter uma conversinha. Você afinal está fazendo 21 anos e....

Otávio continuava patinando como se estivesse sozinho na sala. 

-- Filho, eu já estou ficando tonto. Quer fazer o favor de...

O garotão parou a um canto, fechou os olhos e começou a se contorcer, como se acompanhasse alguma música. O pai olhou à volta, apurou o ouvido e não escutou nada. A mulher entrou na sala. 

-- Cristina, ou o teu filho tá maluco ou eu tô ficando surdo. Olha só o jeitão dele...

A mãe foi ao filho, determinada, e tirou-lhe o headphone dos ouvidos. 

-- Tatá. escuta o  seu pai que ele tem uma coisa muito importante para lhe dizer.

O garotão deu um muxoxo e fez uma expressão de "que saco!"

-- Escuta, filho, eu não sei como lhe dizer... você está fazendo 21 anos... sei que é duro, mas... mas a vida é assim mesmo e...

-- Desembucha logo, coroa. Qual é? Hiiiiii...

-- O que quero lhe dizer, meu filho, é que agora... agora você já é um... como direi?... um adulto! 

A face de Otávio se contraiu como se tivesse recebido a pior notícia do mundo. Seus lábios ficaram brancos, os olhos arregalaram. Botou as mãos na cabeça e caiu num pranto convulso.

-- Não! Não! -- berrava. -- Um adulto, não! Eu não quero ser adulto. Eu não quero! Mamãe, eu não quero.

Correu para os braços da mãe e começou a chorar em seu ombro.

-- Eu lhe disse, Alfredo -- resmungou a mãe acariciando o filho soluçante. -- Você tinha que dar a notícia com cuidado... você traumatizou o garoto. 

-- Algum dia ele teria que saber, Cristina. 

-- Mas não é assim. Você tinha que ir preparando o garoto aos poucos. Você pensa que é fácil para um jovem que vê o mundo de um ringue de patinação, de cima de uma prancha de windsurf, de repente ouvir que já é um adulto? Saber que vai ter de votar? Preencher declaração de Imposto de Renda? Trabalhar? É duro, Alfredo, é duro... 

-- Mãe, eu não quero -- disse Otávio enxugando as lágrimas --, eu ainda não tô preparado para ser um adulto... deixa eu ficar mais uns cinco anos com a minha juventude... aos 26 eu prometo que serei um adulto... juro que serei um adulto... e dos bons. 

O pai foi inflexível.

-- Não, filho. Você tem que conhecer o outro lado da vida... A vida não é só som e patins. Eu arranjei um emprego. 

-- Um emprego? Mas pra quê, pai? Você ainda está trabalhando... Você ainda goza de boa saúde. Nós temos sido tão felizes assim: você e mamãe trabalhando e eu me divertindo. Alguém precisa se divertir nessa casa. 

-- Sinto muito, filho, mas não vou ficar sustentando um marmanjo de 21 anos. 

-- Por que não? -- esbravejou o garotão. -- Você me botou no mundo. Eu não tive escolha. Agora aguenta. Além do mais, você devia se sentir orgulhoso de financiar a minha vida: sou o melhor patinador que tem no Roller. 

O pai, um economista influente, disse que ele iria trabalhar no gabinete da presidência da Petrobrás. Acrescentou que começaria hoje no trabalho, portanto deveria tirar o calção e vestir uma roupa para se apresentar ao chefe do gabinete. Otávio, sem conseguir esconder o pânico por ter virado adulto, foi ao quarto e voltou de jeans, camiseta e um tênis todo sujo. 

-- É assim que você tá pensando em se apresentar na Petrobrás?

-- Por que não? Vou assim a todos os lugares. Nunca usei outra roupa.

-- Escuta, filho -- disse o pai tentando manter a calma --, você ia assim a todos os lugares quando era jovem. Agora você é um adulto...

-- Não precisa me lembrar isso toda hora, pai -- respondeu Otávio ameaçando chorar novamente. 

-- O mundo dos adultos é diferente -- prosseguiu o pai explicativo. -- Para você poder entrar, ele exige traje passeio completo. Vai lá dentro e bota o terno que sua mãe comprou. 

Mas eu nunca botei um terno... Por quê? Por que tem que ser de terno? Eu não entendo... por quê? 

-- Porque é assim que os adultos andam, filho. Os adultos são pessoas sérias, honestas, incorruptíveis, democráticas, pacifistas... devem usar roupas adequadas...

-- Ou será que os adultos usam essas roupas exatamente para dar a impressão de que eles são tudo aquilo que não são?

-- Vai, vai, filho. Depois nós conversamos sobre isso. Vamos ter muito que conversar. Você é um recém-chegado no mundo dos adultos. Está confuso, ainda tem muito que aprender. Vá botar o terno.

Novamente o filho foi e voltou. Finalmente estava tudo no seu lugar, apesar de o garotão andar todo torto. 

-- Excelente, filho. Agora estou orgulhoso de você, você tá com cara de adulto. Pode ir para o seu trabalho... e boa sorte. 

O garotão saiu caminhando todo duro. O pai foi ao seu quarto, colocou um tênis, uma camiseta, um jeans, pegou os patins de Otávio e foi saindo de mansinho. A mulher flagrou-o da porta da cozinha. 

-- Que é isso, Alfredo? Aonde é que você vai assim? 

-- Cristina, alguém precisa se divertir nessa casa. 

                                                                 (Carlos Eduardo Novaes)

 Entendendo o texto

1)   Numere as colunas de acordo com os significados das palavras destacadas nas frases:

(1)”...a terra dos adultos continua sendo aquela coisa árida, sinistra e plúmbea.”

(2)”Sei que a experiência é traumatizante porque tenho um amigo que a viveu com seu filho de 20 anos”.

(3)”A face de Otávio se contraiu como se tivesse recebido a pior notícia do mundo”.

(4)”Botou as mãos na cabeça e caiu num pranto convulso.”

(5)”O pai foi inflexível”.

(  5   )    resistente                    ( 1  ) perturbadora

(   2  )    apertou                       (  4  ) cinzenta

(   3  )    nervoso

2)   Segundo o autor, existem algumas diferenças entre o mundo dos jovens e dos adultos: Identifique três delas.

No mundo adulto, tem-se que votar, preencher declarações de imposto de renda e trabalhar duro.

3)   O “uniforme oficial” do jovem simboliza para a juventude...

·        Marque (x) as alternativas CORRETAS:

(A)   a liberdade de ser o que quer;

(B)   uma convenção social;

(C)    o desejo de ser diferente;

(D)    a descontração necessária às suas ações;

(E)   uma forma de rebeldia.

4)   A crônica apresenta certos exageros que a tornam um texto humorístico. Relacione três fatos que justifiquem a afirmativa.

O filho afirma que o pai deveria sentir orgulho em financiá-lo; o filho se arruma de jeans e tênis para se apresentar no trabalho; o pai resolve se divertir nos patins do filho.

5)   Explique a dificuldade do Otávio de atender ao pedido do pai em relação à sua aparência na hora de ir à Petrobrás para ser entrevistado.

Otávio, até então, nunca havia vestido um terno na vida e não conseguia entender o motivo de ter que se apresentar assim para o trabalho.

6)   “Novamente o filho foi e voltou. Finalmente estava tudo no seu lugar”.

·        Marque (x) nas respostas CORRETAS:

Em relação à mudança sofrida pelo jovem...

(A) Ele já estava preparado para o novo emprego;

(B) Ele parecia um peixe fora d’água;

( C)Ele apenas correspondia aos interesses do mundo adulto;

     (D)Ele necessitava de um tempo para se adaptar.

     (E)Ele já estava pronto para enfrentar a vida adulta.

  7) Marque a melhor resposta.

·        O comportamento do pai no final do texto demonstra:

(A)O cansaço do pai em ser tão responsável e adulto;

(B)Os adultos gostariam de viver como os jovens sem grandes obrigações;

(C)                Trocou-se para ir ao supermercado;

(D)                Usou uma roupa descontraída porque ficaria em casa mesmo;

(E)O quanto a vida adulta exige responsabilidades.

 

8)Explique a metáfora contida na primeira frase do texto: “a vida é um recreio”.

A vida é vista como um período de diversão, lazer.

 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

CRÔNICA: REDASSÃO, UM ATO DE EX-CREVER - CARLOS EDUARDO NOVAES - COM GABARITO

       CRÔNICA: REDASSÃO, UM ATO DE EX-CREVER

                                 Carlos Eduardo Novaes     

          Prova de redação de Ouriço Jr., incluído entre os 8% dos vestibulandos que ainda conseguem pensar alguma coisa, em ordem.

  Tema: “São frequentes os comentários sobre a falta de hábito de leitura dos jovens. Como você vê este problema? Que fatores estarão dificultando o encontro dos jovens com o livro?”

             Como eu vejo este problema? Eu não vejo. Num tá com nada quem andou espalhando por aí que nós não temos hábito de leitura. A gente não tem hábito por causa que ninguém escreve pros jovens. Uma vez, em 1977, eu entrei numa livraria e só tinha livro pra adulto e pra criança. Aí eu pedi um livro pra mim e o vendedor trouxe um, dum cara chamado Robson Cruzeiro que morava numa ilha deserta e teve um caso com um índio. Aí eu disse pro vendedor: escuta meu irmão, isso não tem nada a ver, eu moro na Barata Ribeiro e não tem índio em Copacabana.

          Não manjo muito de fatores não, mas esse deve ser um. No cinema é a mesma coisa: só tem filme pra criança ou pra adulto, no teatro idem, idem. Então se a Cultura não quer nada com a gente, a gente vai pro Consumo que dá pra gente a maior cobertura.

          Acho que os jovens e os livros transaram um encontro errado: os jovens foram prum lado e os livros pro outro. Mas os adultos é que devem responder a essa pergunta. Se vocês, caras, que são adultos não sabem, se soubessem não tavam perguntando, que dirá eu que nunca li nem um livro de cheque. Aliás, tô achando esse tema muito devagar. Livro não tá com nada. Meu avô me disse que o mundo era muito melhor quando não havia livros. Os astecas nunca leram um livro e fizeram uma civilização porreta. Os incas também nunca entraram numa livraria. Deviam mais era pegar esses caras que se metem a escrever livros e jogar na lavoura. Se por cada página de livro fosse plantado um pé de tomate tava resolvido o problema da fome. Depois que todo mundo acabasse de comer aí então a gente ia fazer a digestão lendo um livrinho que podia ser, deixa eu ver se me lembro de algum? Ah, sim, podia ser o Livro de Ouro da minha avó.

           Acho também que a falta de hábito de leitura é por causa que ler não é fácil. Ler é uma transa muito complicada. Tanto é, que no Brasil tem mais de 50 milhões de pessoas que não sabem ler. A gente tinha que mudar esse alfabeto. Fazer umas letras e umas palavras que o analfabeto também pudesse entender. Esse alfabeto é muito careta, antigão e quadrado. O mundo mudou muito nestas últimas décadas só o alfabeto continua o mesmo. Eu não agüento mais. A televisão que começou muito depois do livro tá mandando ver. Há dez anos que a gente já tem tevê a cores. O livro continua em preto e branco. A gente abre, é aquela coisa monótona, as páginas brancas e as letrinhas pretas. Só a capa é que é bonita. Por isso eu só gosto de ler capa de livro. Acho que os jovens iam ler muito mais se os livros só tivessem capa.

              Os livros são um negócio muito antigo. Desde que foi impresso o primeiro, se não me engano, a Bíblia de Jesus Cristo que eles têm o mesmo formato. Por que não fazem livros redondos? Por que não imprimem histórias em papel de parede? Os americanos estão imprimindo livros em papel higiênico. Por que não escrevem um livro numa prancha de surfe? Por que ainda hoje as histórias têm que ser impressas nos livros, como na época do Gutemberg Guarabira? Uma linha embaixo da outra? Eu que vivo a mil e só sei ler pulando de três em três linhas fico todo baratinado. Também acho que esses escritores escrevem demais. No dia em que eu entrei na tal livraria tinha livro, podes crer, de 400 páginas.  Ninguém mais tem tempo pra tudo isso. Eu queria aproveitar pra dar um plá pros escritores e pedir pra ver se dá pra resumir tudo em uma, duas, três páginas no máximo, assim todo mundo ia ler às pampas.

           O problema é que além de escrever muito, esses intelectuais escrevem muito difícil. Meu professor disse que nunca viu um livro onde tivesse escrito: sem essa, é isso aí, bicho, pintou um bode. Os nossos escritores ainda escrevem em latim ou português arcaico. Tem vezes que eu abro um livro e não manjo nada. Aí tenho que pegar um dicionário. Vocês já sentiram o peso de um dicionário? Não é mole ficar andando com um livro e um dicionário para lá e pra cá. Aí eu desisto. Os escritores têm que entrar na nossa.  Se escreverem na nossa língua não vão precisar mais do que 30 palavras pra resumir tudo.

           Outro problema é que os livros são muito caros. E por que são caros? O professor me disse que é por causa do preço do papel. Por que os editores não fazem livros de plástico que é mais barato? Mas eu não acredito muito nesse papo não, porque o disco também é caro e vende adoidado. A televisão também é cara e lá na minha casa tem três aparelhos (e dois livros). A questão é que o livro tá  superadão. Como os discos é que vendem, eu se fosse escritor ia gravar meu livro. Tem um papo aí que a televisão atrapalha a leitura.  Todo mundo gosta de ver televisão. Por que então os editores não sacam uma e inventam uma televisão literária? Um  aparelho, já andei bolando, em que você enfia um livro dentro e vai virando os canais: cada canal é uma página.

         Tô desconfiado que esses editores não têm a menor criatividade. Já que os livros estão caros por que não vendem páginas descartáveis? A gente ia poder entrar numa livraria e pedir: me dá aí 10 páginas da Divina Comédia do Grande Otelo e meia dúzia de páginas do Que é isso, Meu Chapa? do Otávio Mangabeira. Lá na minha casa todo mundo lê. Minha avó lê bula de remédio, minha irmã que tá desempregada lê os anúncios dos classificados e eu me amarro em ler inscrições nos muros. Já li todos os muros e paredes do Rio. Isso dá quase um livro não dá? A mais viva de todas é a minha tia, que só lê mão — e ainda ganha dinheiro pra isso. A única que lê livro mesmo é minha mãe. Ela é considerada a intelectual da família.  Toda vez que vai visita jantar lá em casa ela pega um livro e vai ler na cozinha.

In Democracia à vista. Rio de Janeiro: Nórdica, 1981.

Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fgesconcursos.com.br%2Festudar-para-concurso-durante-as-ferias-e-possivel-saiba-como%2Flivros-abertos%2F&psig=AOvVaw1ukLPx_aEDBbAN-yoX-OUU&ust=1605832043624000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCICLreasje0CFQAAAAAdAAAAABAD

Compreensão do texto:

1)   Por que o autor escreveu o título do seu texto com erros de ortografia?

Para chamar a atenção do leitor, despertar a curiosidade para saber do que se trata.

2)   Há algum argumento usado pelo aluno: Justifique suas respostas.

     a)   do qual você discorda totalmente?

Resposta pessoal.

 b)   com o qual você concorda totalmente?

Resposta pessoal.

c)   com o qual você concorda em parte?

Resposta pessoal.

3)   Observe os trechos seguintes, retirados do texto lido.

                “Como eu vejo este problema? Eu não vejo.

             Mas os adultos não sabem, se soubessem não tavam perguntando, que dirá eu que

              Nunca li nem um livro de cheque.”

      Nos dois trechos o autor da dissertação se mostra despreparado para debater o assunto. Na sua opinião, como leitor, esse procedimento diminui sua confiança nos argumentos apresentados? Por quê?

      Resposta pessoal.

    4)   Identifique e comente as falhas existentes no seguinte argumento do estudante:

       "Acho que os jovens iam ler muito mais se os livros só tivessem capa."

  A desculpa não tem fundamento, a verdade é que só leem quando a leitura é obrigatória pela escola como dever escolar. 

  Abordagem do texto:

1-   Baseando-se no parágrafo inicial, responda:

   a)   Em que situação o texto do vestibulando foi escrito?

Em uma Prova de Redação.

 b)   Qual era o tema da redação?

            “São frequentes os comentários sobre a falta de hábito de leitura dos jovens. Como você vê este problema? Que fatores estarão dificultando o encontro dos jovens com o livro?”

2-   Indique os argumentos com os quais o estudante fundamenta as afirmações a seguir:

   a)   “A gente não tem hábito por causa que ninguém escreve pros jovens”.

Uma vez, em 1977, eu entrei numa livraria e só tinha livro pra adulto e pra criança. Aí eu pedi um livro pra mim e o vendedor trouxe um, dum cara chamado Robson Cruzeiro que morava numa ilha deserta e teve um caso com um índio. Aí eu disse pro vendedor: escuta meu irmão, isso não tem nada a ver, eu moro na Barata Ribeiro e não tem índio em Copacabana.

 b)   “Livro não tá com nada.”

Meu avô me disse que o mundo era muito melhor quando não havia livros. Os astecas nunca leram um livro e fizeram uma civilização porreta. Os incas também nunca entraram numa livraria. Deviam mais era pegar esses caras que se metem a escrever livros e jogar na lavoura. Se por cada página de livro fosse plantado um pé de tomate tava resolvido o problema da fome.

3-   Na sua opinião. A sugestão do vestibulando de eliminar o alfabeto para tornar a leitura uma atividade mais fácil é lógica? Por quê?

     Resposta pessoal.

   Estudo da linguagem 

 

1-   Releia o terceiro parágrafo e corrija as expressões que podem ser consideradas inadequadas em um exercício escrito, por representarem recursos da linguagem oral.

Como eu vejo este problema? Eu não vejo. Não está correto quem andou falando por aí que nós não temos hábito de leitura. Nós não tem hábito por que ninguém escreve para os jovens. Uma vez, em 1977, eu entrei numa livraria e só tinha livro para adulto e para criança. Então pedi um livro para mim e o vendedor trouxe um, de um autor chamado Robson Cruzoé que morava numa ilha deserta e teve um caso com um índio. Eu disse para o vendedor: isso não tem nada a ver comigo, eu moro na Barata Ribeiro e não tem índio em Copacabana.

2-   Substitua os termos destacados nos trechos a seguir por outros mais formais.

     Se vocês, caras, que são adultos não sabem [...]

     Se vocês, examinadores, que são adultos não sabem [...]

     Livro não tá com nada. Meu avô me disse que o mundo era muito melhor quando não havia livros. Os astecas nunca leram um livro e fizeram uma civilização porreta. Os inca também nunca entraram numa livraria. Deviam mais era pegar esses caras que se metem a escrever livros e jogar na lavoura.

 

     Se vocês, pessoas, que são adultos não sabem [...]

     Se vocês, averiguadores, que são adultos não sabem [...]

     Livro não faz qualquer sentido. Meu avô me disse que o mundo era muito melhor quando não havia livros. Os astecas nunca leram um livro e fizeram uma civilização muito boa. Os inca também nunca entraram numa livraria. Deviam levar essas  pessoas que gostam de escrever livros e colocar na lavoura.