CRÔNICA: O MARRECO
QUE PAGOU O PATO
Carlos Eduardo Novaes
Semana passada, São
Paulo, apesar de toda fama de que não pode parar, parou. E não foi num
congestionamento. Parou para discutir o caso do marreco Quércia e sua marreca
Amélia, presos e engaiolados durante 24 horas sob a acusação de poluírem o meio
ambiente. Diante do fato eu fico aqui pensando que os paulistas já devem ter
resolvido todos os seus grandes problemas urbanos. Sim, claro: quando um povo
começa a prender marrecos é porque não tem mais nada para fazer.
Fonte da imagem - https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2KIYLsOBW0u5H8Qv_dhMSPgOI_s2N-RL9Xl_kzcxusrDVScW807vN-S_HI0WHoZS_3Q2D28Dqi5m2_wjSx4ltt5ps31e2e1c2A8sMEHnNrOPqVux550E84wdLbItBhjxPYqOMmbT6q9-doljoa_-Ly0PVLYwx_LW97KjgvZjxfVO7tLAW0GEsZTuUL-g/s320/Marreco.jpg
O marreco Quércia -
deixa-me explicar - ganha a vida honestamente como relações-públicas da casa
Agro Dora, na Rua da Consolação, 208. Em seu trabalho passa os dias inteiros
circulando pela calçada e atraindo fregueses para a loja. Na segunda-feira o
gerente da loja foi surpreendido com a presença de um fiscal, que muito
compenetrado perguntou se o marreco era de sua propriedade. Diante da resposta
positiva, virou-se para o gerente e pediu:
"Seus
documentos?". Leu atentamente um por um, devolveu-os e disse: "Agora
deixe-me ver os documentos do marreco".
- O marreco não tem
documentos - respondeu o gerente.
- Nenhum? Nem título
de eleitor? Certificado de reservista? Nada? Então eu acho que vou ter que
prender o seu marreco.
- O senhor não pode
fazer uma coisa dessas - ponderou o gerente. - Não há nenhuma lei que obrigue
marrecos a ter documento.
- Não há? -
desconfiou o fiscal. - Então espere um momentinho.
Foi ao telefone e
ligou para o chefe da repartição: "Alô, chefe? Encontrei um marreco
passeando pela rua sem documento".
- Que está
esperando? - vociferou o chefe. - Prenda-o por vadiagem.
- Mas, chefe, é um
marreco. Precisamos de uma lei para enquadrá-lo. O senhor sabe qual é o número
dessa lei?
- Não tenho a menor
ideia.
- Então pergunta se
alguém aí sabe.
- Alguém aí sabe -
perguntou o chefe, voltando-se para os funcionários da repartição - quais são
os documentos que um marreco necessita para transitar livremente pelas ruas?
Não. Ninguém sabia.
O chefe então sugeriu que o fiscal procurasse outro motivo para prender o
marreco. "Mas que motivo?", perguntou o fiscal, que era meio duro de
imaginação.
- O marreco está nu?
- Indagou o chefe. - Então prenda-o por atentado ao pudor.
O fiscal parou um
pouco, pensou e não se lembrou de ter visto jamais um marreco vestido. Não,
essa era demais. O chefe, já pensando no almoço de domingo, insistiu: "O
marreco está parado em cima da calçada?".
- Está.
- Então prenda-o por
estacionar em local proibido.
"Boa
ideia", pensou o fiscal. Voltou ao gerente, que estava parado na calçada
ao lado do marreco, disfarçou, disse que iria perdoar, disse que iria perdoar a
falta de documentos, "mas infelizmente tenho que levar o seu marreco por
estar parado em local não permitido".
- Esta certo -
concordou, irritado, o gerente -, mas então chama o guincho.
- Pra que guincho?
- Meu marreco só sai
daqui rebocado.
Formou-se a maior
confusão em torno do marreco. O fiscal querendo levá-lo de qualquer maneira, e
o gerente, apoiado por dezenas de populares, defendendo a inocência do marreco.
Nisso, chegou um segundo fiscal pouquinha coisa mais inteligente que o primeiro
e decretou: "O marreco não pode ficar solto, é um agente da
poluição".
- Agente de quem? -
espantou-se um balconista da loja. - Garanto que não.
O Quércia trabalha
aqui há mais de dois anos.
- E daí? - interveio
um popular que estava do lado do fiscal. - Ele pode ter dois empregos. Vai ver
que quando sai daqui faz um bico em alguma agência.
- E você acha que o
marreco, com esse bico, ainda precisa fazer outro?
- A acusação é
injusta - interrompeu o gerente -, o marreco não pode ser acusado de poluir. Se
eu tivesse aqui um elefante soltando fumaça pela tromba está certo, mas o
Quércia nem fuma.
- Não interessa -
afirmou o segundo fiscal, meio agressivo -, isso o senhor explica lá para o
chefe.
O marreco entrou na
sede da Administração Regional da Sé cheia de ginga.
Imediatamente o
chefe destacou um funcionário para qualificá-lo: nome, endereço, estado civil,
essas coisas.
De gravata e camisa
de manga curta, o burocrata sentou-se à máquina e começou: "Nome?". O
gerente com o marreco no colo respondeu: "Quércia".
- Quércia de quê?
- De nada.
- Como de nada? Ele
não tem família?
- Tem. É da família
dos anatídeos.
- Então - prosseguiu
o funcionário batendo na máquina -, Quércia Anatídeo.
Terminada a ficha o
burocrata abriu uma gaveta e, enquanto procurava o material para tirar as
impressões digitais, disse ao gerente:
- Me dá aí o polegar
do marreco.
- O marreco não tem
polegar - desculpou-se o gerente.
- Não? - disse o
funcionário já contrariado porque não encontrava as almofadas para carimbos. -
Então me dá o indicador.
- O marreco também
não tem indicador.
- E o anular, tem?
- Também não,
senhor.
- Poxa - chateou-se
o burocrata -, então me dá aí qualquer dedo que estiver sobrando.
O gerente precisou
explicar que marreco não tinha dedo. Tinha pata. Ainda assim o funcionário já
meio perturbado entendeu que o gerente se referia à companheira do marreco e
perguntou: "Uma pata?".
- Não. Duas.
- E ele vive bem com
as duas?
Custou pouco para
desfazer a confusão. Encerrada essa fase, o funcionário encaminhou-se para
outra sala, onde o marreco teria que tirar umas fotos três por quatro de
identificação.
O fotógrafo,
repetindo gestos tão automáticos quanto a máquina, mandou o marreco subir na
cadeira, esticar bem o pescoço, olhar para a frente e não se mexer. O marreco,
mesmo sem entender nada, seguiu as instruções do fotógrafo. Quando enfiou a
cabeça por debaixo do pano preto - a máquina era daquelas antigas -, observou
pelo visor que alguma coisa estava errada. Tornou a levantar a cabeça e indagou
do funcionário: "Nós vamos fotografá-lo assim?.
- Assim como? -
indagou o funcionário sem entender.
- Sem gravata?
- Não sei - disse o
funcionário meio reticente -, mas eu acho que marreco não precisa botar
gravata.
- Acho melhor botar
uma gravata nele - retrucou o fotógrafo -, você sabe como é o chefe: já disse
que foto só de gravata.
O funcionário tirou
sua gravata, pediu um paletó emprestado a um datilógrafo, tiraram as fotos
necessárias e depois engaiolaram o marreco. E não é que no dia seguinte a
poluição em São Paulo diminuiu sensivelmente...
NOVAES, Carlos Eduardo. A cadeira do dentista e
outras crônicas. São Paulo: Ática, 1995. p. 77-81.
Fonte:
Livro – Português – Conexão e Uso -7º Ano – Dileta Delmanto/Laiz B. de
Carvalho, Editora Saraiva, 1ª ed., São Paulo, 2018.p 188-193.
Vocabulário
compenetrado: concentrado.
certificado de reservista: documento utilizado para comprovar
que o cidadão prestou serviço às Forças Armadas do
Brasil.
ponderou: considerou, expôs com prudência e calma.
vociferou: berrou, reclamou aos gritos.
transitar: percorrer, caminhar.
atentado ao pudor: ato ofensivo à decência, honra, dignidade de alguém.
ginga: movimento de balançar
o corpo de um lado para outro, expressão corporal de quem caçoa.
qualificar: avaliar, emitir opinião a respeito de algo.
burocrata: (pejorativo) pessoa que, por achar de grande prestígio seu cargo
burocrático, exorbita de suas funções e assume atitudes intoleráveis no desempenho
dessas funções.
anatídeos: família de aves que inclui patos, marrecos, cisnes.
reticente: que hesita ou age com cautela.
retrucou: respondeu de modo
imediato.
ENTENDENDO
O TEXTO
01.
Essa crônica foi escrita por Carlos Eduardo
Novaes, conhecido cronista brasileiro.
a) Qual é a finalidade da crônica de
Carlos Eduardo Novaes?
Despertar
reflexões e divertir o leitor.
b)
Qual é o assunto da crônica?
A
história de um marreco que foi preso sem motivo algum.
c) Sua hipótese sobre o assunto da
crônica foi confirmada? Explique.
Resposta pessoal.
02. O cronista narra um evento, um
pequeno acontecimento, tomando o tema para discutir:
a) a situação dos patos que são
utilizados em atividades comerciais.
b) a burocracia que leva a situações absurdas
no dia a dia das pessoas.
c) o envolvimento de pessoas
estranhas ao caso no desenrolar do conflito.
03. Converse com os colegas e verifique
quais afirmações a seguir se referem adequadamente à crônica lida.
a) Trata-se de uma história curta, com narrador, personagens, tempo e
espaço.
b) Leva à reflexão
sobre um problema social.
c) Faz crítica por
meio do humor.
d)
Apresenta trechos narrativos, mas não é considerada como narrativa por
apresentar diálogos e descrições.
e) Trata de um tema
atual.
f) Tem como ponto de
partida uma cena ou uma questão do cotidiano.
04. “O marreco que pagou o pato” é uma crônica
narrativa, pois apresenta uma história com começo, meio e fim e tem elementos próprios
das narrativas (personagens, tempo, espaço, narrador), assim como acontece no
conto, na fábula, no causo, etc.
a) O
cronista escolheu o ponto de vista da 3a pessoa. É um narrador que apenas
observa e conta o que viu ou parece conhecer os sentimentos dos personagens?
Identifique um trecho que exemplifique sua resposta.
Ele parece saber o que se passa no interior dos personagens.
Possibilidades: “O fiscal parou um pouco, pensou e não se lembrou de ter visto
jamais um marreco vestido.” / “’Boa ideia’, pensou o fiscal.”
b) As
narrativas costumam organizar-se nestas partes, que você já conhece.
Situação
inicial Desenvolvimento (ações) Complicação
Clímax
(o ponto mais tenso) Desfecho
Indique
que momento da narrativa corresponde à
complicação e ao desfecho.
Complicação: Os marrecos são presos.
Desfecho: O marreco é fichado como se fosse um criminoso.
05.Releia
estes trechos.
Nisso,
chegou um segundo fiscal [...] e decretou: “o marreco não pode ficar solto, é
um agente da poluição”.
O
funcionário tirou sua gravata, pediu um paletó emprestado a um datilógrafo,
tiraram as fotos necessárias e depois engaiolaram o marreco. E não é que no dia
seguinte a poluição em São Paulo diminuiu sensivelmente...
a)
Em sua opinião, o narrador acredita que a
poluição tenha diminuído depois da prisão do marreco? Explique sua resposta.
Não, ele está zombando da atitude dos burocratas.
b)
Além do contexto, no segundo trecho, qual é a
expressão que confirma sua resposta?
Espera-se que os alunos percebam que é a expressão “não é que”, que
indica suposta surpresa.
Recursos
expressivos
01.
A história é narrada em 3a pessoa.
a)
Quem poderia ser esse narrador?
Uma pessoa que teria presenciado os acontecimentos.
b)
Como você o imagina?
Resposta pessoal. Possibilidade: Uma pessoa crítica, irônica e
bem-humorada.
c)
Você acha que o narrador poderia ter mesmo
presenciado tudo que narra? Explique.
Resposta pessoal.
02.
As crônicas podem apresentar uma mistura de
trechos narrativos, expositivos (em que se expõem informações para explicar
algo), descritivos e opinativos. Indique no caderno se os trechos a seguir são
narrativos, expositivos, descritivos ou opinativos.
a)
O marreco Quércia — deixa-me explicar — ganha a
vida honestamente como relações públicas da casa A. D. [...]. expositivo
b)
Foi ao telefone e ligou para o chefe da
repartição [...].
narrativo
c)
Formou-se a maior confusão em torno do marreco.
narrativo
d)
Sim, claro: quando um povo começa a prender
marrecos é porque não tem mais nada para fazer.
opinativo
e)
Nisso, chegou um segundo fiscal pouquinha coisa
mais inteligente que o primeiro [...].
opinativo
03.
O fiscal e os policiais queriam que o marreco
seguisse uma série de normas. Indique algumas dessas normas.
Sugestões: O marreco não pode andar sem documentos, a ave não deveria
andar sem roupas nem estacionar em local proibido, o marreco não pode ficar
solto, é um agente de poluição.
04.
Há momentos em que o narrador conversa
diretamente com o leitor, tornando o texto mais informal. Localize um deles.
“O marreco Quércia — deixa-me explicar — ganha a vida honestamente
como relações públicas [...].”