Poema em prosa: O chá, os fantasmas, os
ventos encanados..
Mario Quintana
Nasci no tempo dos ventos encanados,
quando, para evitar compromissos, a “gente bem” dizia estar com enxaqueca,
palavra horrível mas desculpa distinta. Ter enxaqueca não era para todos, mas
só para essas senhoras que tomavam chá com o dedo mindinho espichado. Quando eu
via aquilo, ficava a pensar sozinho comigo (menino, naqueles tempos, não
dava opinião) por que é que elas não usavam, para cúmulo da elegância, um
laçarote azul no dedo...
Também se falava misteriosamente em
“moléstias de senhoras” nos anúncios farmacêuticos que eu lia. Era decerto uma
coisa privativa das senhoras, como as enxaquecas, pois as criadas, essas
não tinham tempo para isso. Mas, em compensação, me assustavam deliciosamente
com histórias de assombrações. Nunca me apareceu nenhuma.
Pelo visto, era isso: nunca consegui
comunicar-me com este nem com o outro mundo. A não ser através do “Tico-tico” e
da poesia de Camões – do qual até hoje me assombra este verso único: “Que o
menor mal de tudo seja a morte!”.
Pois a verdadeira poesia sempre foi um
meio de comunicação com este e com o outro mundo.
QUINTANA, Mario. Sapo
amarelo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984. p. 13. (Série O Menino Poeta, 5).
© by Elena Quintana.
Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na
língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição
– São Paulo, 2016 – Moderna – p. 277-8.
Entendendo o poema em prosa:
01 – Ao usar a
expressão gente bem para designar
um grupo de pessoas, o eu lírico sugere concordância ou discordância em relação
a essa qualificação? Justifique.
O eu lírico
sugere discordância, como revela o uso de aspas, indicativo de que a expressão
costuma ser empregada por outras pessoas e ele não a absorveu.
02 – No trecho “Ter enxaqueca não era para todos, mas só
para essas senhoras que tomavam chá com o dedo mindinho espichado”, que
palavra contrasta com só? Por
quê? Como ela se classifica?
O pronome
indefinido todos, usado para indicar totalidade, contrasta com a
noção de exclusividade sugerida por só.
03 – Por que o pronome
demonstrativo essas, no mesmo
trecho, sugere uma impressão pessoal do eu lírico? Qual seria essa visão?
Essas adquire um
sentido crítico, pois o eu lírico afasta-se do grupo de senhoras ao empregar um
pronome de segunda pessoa para referir-se a elas.
04 – Que ideia é retomada
pelo pronome demonstrativo na oração “Quando
eu via aquilo”? De que modo tal pronome se relaciona com a
expressão o tempo dos ventos encanados?
O pronome aquilo retoma
a cena das senhoras tomando chá com o dedo mindinho espichado e institui entre
elas e o eu lírico uma grande distância temporal, coincidente com a
expressão o tempo dos ventos encanados.
05 – Que pronome está
relacionado à ideia expressa na oração “menino,
naqueles tempos, não dava opinião”? Por quê?
O pronome comigo, que sugere que os pensamentos do menino não eram
compartilhados.
06 – No trecho “por que é que elas não
usam, para cúmulo da elegância, um laçarote azul no dedo...”, qual é a
função do pronome que em negrito?
Ele questiona a causa.
07 – Quando menino, o eu
lírico não compreendia o sentido da expressão moléstias de senhoras. Por que essa expressão pode ser considerada
um eufemismo?
Provavelmente, referia-se ao
termo menstruação, substituindo-o por algo menos explícito, na época
considerado mais elegante.
08 – De que forma o uso
dessa expressão sugere um passado distante?
Atualmente, não
há constrangimento no emprego de um termo como esse, que apenas designa uma
característica física da mulher.
09 – Releia agora este outro
trecho: “Era decerto uma coisa
privativa das senhoras, como as enxaquecas, pois as criadas, essas não tinham
tempo para isso”. O pronome essas poderia
ser excluído sem prejudicar a estrutura da oração? Que efeito seu uso produz?
Sim, pois o
pronome apenas coloca seu referente (as criadas) em evidência, não interferindo
no sentido da oração.
10 – Em “me assustavam deliciosamente com histórias de assombração”, qual é
o sujeito da ação? Que palavra expressa o alvo desse sujeito? Justifique o uso
dessa palavra.
O sujeito é criadas, e o alvo, me,
um pronome oblíquo átono usado como complemento para se referir à 1ª pessoa do
discurso.
11 – Como você interpretou a
afirmação “nunca consegui comunicar-me
com este nem com o outro mundo”? Que importância tem o pronome
demonstrativo na caracterização de um dos dois mundos citados?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: O eu lírico sugere que teve dificuldades não apenas na
comunicação com o outro mundo, aquele fantástico de que falavam as
criadas, mas também com o mundo dele próprio, sugerindo que não se comunicava
bem com as pessoas. O pronome este foi usado para enfatizar esse
mundo real do eu lírico.
12 – De que maneira as
memórias apresentadas no poema confirmam a dificuldade de comunicação do eu
lírico?
As memórias
contadas revelam sua dificuldade em compreender certos atos das senhoras da
época, sugerindo dificuldade de inserção no grupo social a que pertencia.
13 – No penúltimo parágrafo,
a expressão a não ser introduz
uma ressalva. Explique-a.
A ressalva indica
que, apesar da dificuldade de comunicação do eu lírico, a poesia funcionava
como um elo entre ele e o mundo, fosse este o real ou o fictício.