Romance: Iracema Capítulo XV
José de Alencar
[...]
Nasceu o dia e expirou.
Já brilha na cabana de Araquém o fogo,
companheiro da noite. Correm lentas e silenciosas no azul do céu, as estrelas,
filhas da lua, que esperam a volta da mãe ausente.
Martim se embala docemente; e como a
alva rede que vai e vem, sua vontade oscila de um a outro pensamento. Lá o
espera a virgem loura dos castos afetos; aqui lhe sorri a virgem morena dos
ardentes amores.
Iracema
recosta-se langue ao punho da rede; seus olhos negros e fúlgidos, ternos olhos
de sabiá, buscam o estrangeiro e lhe entram n'alma. O cristão sorri; a virgem
palpita; como o saí, fascinado pela serpente, vai declinando o lascivo talhe,
que se debruça enfim sobre o peito do guerreiro.
Já o estrangeiro a preme ao seio; e o
lábio ávido busca o lábio que o espera, para celebrar nesse ádito d'alma, o
himeneu do amor.
No recanto escuro o velho Pajé, imerso
em funda contemplação e alheio às cousas deste mundo, soltou um gemido doloroso
Pressentira o coração o que não viram os olhos? Ou foi algum funesto presságio
para a raça de seus filhos, que assim ecoou n'alma de Araquém?
Ninguém o soube.
O cristão repetiu do seio a virgem
indiana. Ele não deixará o rasto da desgraça na cabana hospedeira. Cerra os
olhos para não ver; e enche sua alma com o nome e a veneração de seu Deus:
— Cristo! . . . Cristo! . . .
Volta a serenidade ao seio do guerreiro
branco, mas todas as vezes que seu olhar pousa sobre a virgem tabajara, ele
sente correr-lhe pelas veias uma onda de ardente chama. Assim quando a criança
imprudente revolve o brasido de intenso fogo, saltam as faúlhas inflamadas que
lhe queimam as faces.
Fecha os olhos o cristão, mas na sombra
de seu pensamento surge a imagem da virgem, talvez mais bela. Embalde chama o
sono às pálpebras fatigadas; abrem-se, malgrado seu.
Desce-lhe do céu ao atribulado
pensamento uma inspiração.
— Virgem formosa do sertão, esta é a última
noite que teu hóspede dorme na cabana de Araquém, onde nunca viera, para teu
bem e seu. Faze que seu sono seja alegre e feliz.
— Manda; Iracema te obedece. Que pode
ela para tua alegria?
O cristão falou submisso, para que não
o ouvisse o velho Pajé:
— A virgem de Tupã guarda os sonhos da
jurema que são doces e saborosos!
Um triste sorriso pungiu os lábios de
Iracema:
— O estrangeiro vai viver para sempre à
cintura da virgem branca; nunca mais seus olhos verão a filha de Araquém, e ele
já quer que o sono feche suas pálpebras, e que o sonho o leve à terra de seus
irmãos!
— O sono é o descanso do guerreiro,
disse Martim; e o sonho a alegria d'alma. O estrangeiro não quer levar consigo
a tristeza da terra hospedeira, nem deixá-la no coração de Iracema!
A virgem ficou imóvel.
— Vai, e torna com o vinho de Tupã.
Quando Iracema foi de volta, já o Pajé
não estava na cabana; tirou a virgem do seio o vaso que ali trazia oculto sob a
carioba de algodão entretecida de penas. Martim lho arrebatou das mãos, e libou
as gotas do verde e amargo licor.
Agora podia viver com Iracema, e colher
em seus lábios o beijo, que ali viçava entre sorrisos, como o fruto na corola da
flor. Podia amá-la, e sugar desse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no
seio da virgem.
O gozo era vida, pois o sentia mais
forte e intenso; o mal era sonho e ilusão, que da virgem não possuía senão a
imagem.
Iracema afastara-se opressa e
suspirosa.
Abriram-se os braços do guerreiro
adormecido e seus lábios; o nome da virgem ressoou docemente.
A juruti, que divaga pela floresta,
ouve o terno arrulho do companheiro; bate as asas, e voa a conchegar-se ao
tépido ninho. Assim a virgem do sertão, aninhou-se nos braços do guerreiro.
Quando veio a manhã, ainda achou
Iracema ali debruçada, qual borboleta que dormiu no seio do formoso cacto. Em
seu lindo semblante acendia o pejo vivos rubores; e como entre os arrebóis da
manhã cintila o primeiro raio do sol, em suas faces incendidas rutilava o
primeiro sorriso da esposa, aurora de fruído amor.
A jandaia fugira ao romper d'alva e
para não tornar mais à cabana.
Vendo Martim a virgem unida ao seu
coração, cuidou que o sonho continuava; cerrou os olhos para torná-los a abrir.
A pocema dos guerreiros, troando pelo
vale, o arrancou ao doce engano; sentiu que já não sonhava, mas vivia. Sua mão
cruel abafou nos lábios da virgem o beijo que ali se espanejava.
— Os beijos de Iracema são doces no
sonho; o guerreiro branco encheu deles sua alma. Na vida, os lábios da virgem
de Tupã amargam e doem como o espinho da jurema.
A filha de Araquém escondeu no coração
a sua ventura. Ficou tímida e inquieta, como a ave que pressente a borrasca no
horizonte. Afastou-se rápida, e partiu.
As águas do rio banharam o corpo casto
da recente esposa.
Tupã já não tinha sua virgem na terra
dos tabajaras.
[...].
ALENCAR, José de.
Iracema. Porto Alegre: L&PM, 2002.
Fonte: Livro – Viva
Português 2° – Ensino médio – Língua portuguesa – 1ª edição 1ª impressão – São
Paulo – 2011. Ed. Ática. p. 41-4.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Arrebóis: os tons avermelhados do céu no amanhecer e no entardecer.
·
Borrasca: temporal com chuvas e ventos intensos.
·
Carioba: espécie de camisa de algodão.
·
Corola: conjunto de pétalas da flor.
·
Entretecida: entrelaçada, intercalada.
·
Espanejar: desabrochar.
·
Fluído: gozado, desfrutado.
·
Jandaia: designação comum a várias aves semelhantes, como papagaios e
periquitos.
·
Juruti: designação comum a várias aves semelhantes, como pombas e
rolinhas.
·
Libar: beber, sorver; beber mais por prazer do que por necessidade.
·
Pejo: pudor, vergonha.
·
Pocema: grito de guerra.
·
Pungir: começar a apontar, começar a aflorar.
·
Rubor: a cor vermelha nas faces provocada por vergonha.
·
Rutilar: fazer brilhar, resplandecer.
·
Troar: retumbar, trovejar.
·
Viçar: desenvolver-se com força.
02 – Releia:
“—
A virgem de Tupã guarda os sonhos da jurema que são doces e saborosos!
Um triste sorriso pungiu os lábios de
Iracema:
— O estrangeiro vai viver para sempre à
cintura da virgem branca; nunca mais seus olhos verão a filha de Araquém, e ele
já quer que o sono feche suas pálpebras, e que o sonho o leve à terra de seus
irmãos!”. O que Iracema imaginava que Martim desejava sonhar sob o
efeito da bebida da jurema?
Iracema imaginava
que os sonhos de Martim seriam ligados a sua terra (Portugal) e a tudo que
deixara por lá.
03 – Diante do desejo de
Martim de provar a jurema, um sorriso triste aponta nos lábios da índia. Qual
pode ter sido a razão da tristeza de Iracema?
Ela possivelmente
imaginou que, com a proximidade da partida, Martim preferisse ficar mais tempo
com ela a sonhar com a mulher branca que deixara em Portugal.
04 – As diversas comparações
e metáforas presentes ao longo do romance Iracema são responsáveis pela criação
do tom poético da obra, como em:
“— O sono é o descanso do guerreiro,
disse Martim; e o sonho a alegria d'alma. O estrangeiro não quer levar
consigo a tristeza da terra hospedeira, nem deixá-la no coração de
Iracema!
Observe a oposição representada pelos
termos destacados e complete a frase a seguir no caderno. O elemento, nesse
contexto, que poderia corresponder à tristeza da terra hospedeira, aquilo que
um sonho bom deveria substituir, é .............
·
A saudade da própria terra, Portugal, que
Martim deixou há bastante tempo.
·
A saudade da noiva, que o espera em sua terra
de origem.
·
A impossibilidade de ter Iracema,
de amá-la.
·
As tristezas e as decepções vividas no
Brasil.
·
A melancolia observada em todos os índios da
tribo em que estava.
05 – Releia:
“Agora
podia viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo, que ali viçava
entre sorrisos, como o fruto na corola da flor. Podia amá-la, e sugar desse
amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem.”. Se o amor de
Martim pela índia era impossível, por que, nesse momento, ele acredita poder
“viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo”?
Porque o efeito
da jurema lhe dava a possibilidade de viver em sonho algo que não poderia ser vivido
na realidade.
06 – Complete as frases no
caderno. No contexto do trecho: “Podia
amá-la, e sugar desse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da
virgem”, mel e perfume
significam a sensação agradável sentida naquele estado de sonho. A frase “sem
deixar veneno no seio da virgem”, portanto, pode significar .........
·
Não permitir que Iracema bebesse o licor de
Tupã, bebida destinada apenas aos guerreiros.
·
Viver as delícias do contato com
Iracema apenas em sonho, sem de fato consumar o amor, protegendo, assim, a
virgindade da índia.
·
Não permitir que Iracema tomasse contato com
seus sonhos, seus desejos.
·
Não deixar que, durante seus sonhos, a jurema
vertesse sobre o corpo de Iracema.
·
Proteger Iracema de qualquer agressão que
pudesse vir dos índios de sua tribo.
07 – A certeza de Martim de
que havia estado com Iracema apenas em sonho pode ser comprovada pelo seguinte
trecho:
a)
“[...] e colher em seus lábios o beijo, que
ali viçava entre sorrisos, como o fruto na corola da flor.”
b)
“O gozo era vida, pois o sentia mais forte e
intenso [...]”.
c)
“[...] o mal era sonho e ilusão,
que da virgem não possuía senão a imagem”.
08 – É possível, no trecho
lido, verificar uma integração entre as ações e descrições das personagens e os
elementos da paisagem. Releia:
“Quando veio a manhã, ainda achou
Iracema ali debruçada, qual borboleta que dormiu no seio do formoso cacto. Em
seu lindo semblante acendia o pejo vivos rubores; e como entre os arrebóis da
manhã cintila o primeiro raio do sol, em suas faces incendidas rutilava o
primeiro sorriso da esposa, aurora de fruído amor.”
a) A manhã que surge ainda encontra a índia junto de Martim. Em seu rosto brilha um sorriso, “o primeiro sorriso da esposa”. A que elemento da paisagem é comparado o sorriso de Iracema?
Ao primeiro raio do sol que cintila entre os arrebóis da manhã.
b) O que essa comparação revela sobre esse momento da vida de Iracema?
A comparação enfatiza a nova condição de Iracema, que nasce para uma
nova vida. Ela não é mais a virgem de Tupã, ela traz agora o “primeiro sorriso
da esposa”.