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quarta-feira, 8 de novembro de 2023

CONTO: A ARMADILHA - MURILO RUBIÃO - COM GABARITO

 Conto: A armadilha

           Murilo Rubião

        Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjucrdK7QgNZke9VLHZpiBrPcv0eny8w6TEOvt7VCEUhWqJdaUSRz1DdoozIAup1NQPU9h2l4tqZmrN2sKK7sOmVMNW6-Y0tcCo2B0hK4rSHSw9_uq5Mo-RT8rrFCUp-WkTwmQWw3om0wIqRsVFz9OGdCxl5AIY012tGrjP_4obmsvkBgG8ate5Fm5P-Ag/s1600/ESCADA.jpg


        Não demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos. Todas as salas encontravam-se fechadas e delas não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana.

        Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase, escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quis voltar ao corredor, a fim de recomeçar a busca, quando deu com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta semicerrada. Empurrou-a. Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada, um homem de cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na direção do intruso, ordenou-lhe que não se afastasse.

        Também a Alexandre não interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro. A sensação de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa, ao fitar os olhos do velho. Deles emergia uma penosa tonalidade azul.

        Naquela sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas do seu solitário ocupante:

        — Estava à sua espera — disse, com uma voz macia. Alexandre não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu interlocutor. Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num vão de escada.

        O outro teve que insistir:

        — Afinal, você veio.

        Subtraído bruscamente às recordações, ele fez um esforço violento para não demonstrar espanto:

        — Ah, esperava-me? — Não aguardou resposta e prosseguiu exaltado, como se de repente viesse à tona uma irritação antiga: — Impossível! Nunca você poderia calcular que eu chegaria hoje, se acabo de desembarcar e ninguém está informado da minha presença na cidade! Você é um farsante, mau farsante. Certamente aplicou sua velha técnica e pôs espias no meu encalço. De outro modo seria difícil descobrir, pois vivo viajando, mudando de lugar e nome.

        — Não sabia das suas viagens nem dos seus disfarces.

        — Então, como fez para adivinhar a data da minha chegada?

        — Nada adivinhei. Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos, desta cadeira, na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria.

        Por instantes, calaram-se. Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em que se empenhavam.

        Alexandre pensou em tomar a iniciativa do ataque, convencido de que somente assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este, entretanto, percebeu-lhe a intenção e antecipou-se:

        — Antes que me dirija outras perguntas — e sei que tem muitas a fazer-me — quero saber o que aconteceu com Ema.

        — Nada — respondeu, procurando dar à voz um tom despreocupado.

        — Nada?

        Alexandre percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação. Tentou revidar com um palavrão. Todavia, a firmeza e a tranquilidade que iam no rosto do outro venceram-no.

        — Abandonou-me — deixou escapar, constrangido pela vergonha. E numa tentativa inútil de demonstrar um resto de altivez, acrescentou: — Disso você não sabia!

        Um leve clarão passou pelo olhar do homem idoso:

        — Calculava, porem desejava ter certeza.

        Começava a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos volveram para certas reminiscências que, mesmo contra a vontade deles, sempre os ligariam.

        O velho guardou a arma. Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo. Acendeu um cigarro e pensou em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria desnecessária. Alexandre impediu que a fizesse. Gesticulando, nervoso, aproximara-se da mesa:

        — Seu caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para matá-lo? Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver.

        — Não, além de desarmado, você não veio aqui para matar-me.

        — O que está esperando, então?! — gritou Alexandre. — Mate-me logo!

        — Não posso.

        — Não pode ou não quer?

        — Estou impedido de fazê-lo. Para evitar essa tentação, após tão longa espera, descarreguei toda a carga da arma no teto da sala.

        Alexandre olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos, refazendo-se da surpresa, abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas e tentou atirar-se através dela. Não a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu desmaiado no chão.

        Ao levantar-se, viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave.

        Lançou-se na direção dele, disposto a impedi-lo. Era tarde. O outro já concluíra seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do adversário:

        — Eu esperava que você tentaria o suicídio e tomei a precaução de colocar telas de aço nas janelas.

        A fúria de Alexandre chegara ao auge:

        — Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!

        — Inútil. Se tivesse reparado nela, saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta.

        — Gritarei, berrarei!

        — Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os empregados, despejei os inquilinos.

        E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:

        — Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.

Murilo Rubião.

Entendendo o conto:

01 – Quem é o protagonista do conto "A Armadilha" de Murilo Rubião?

      O protagonista é Alexandre Saldanha Ribeiro.

02 – Por que Alexandre Saldanha Ribeiro escolheu subir as escadas em vez de usar o elevador?

      Alexandre Saldanha Ribeiro escolheu subir as escadas porque estava determinado a chegar a um destino específico e estava seguro de sua resolução.

03 – O que Alexandre encontra ao entrar no último escritório?

      Ao entrar no último escritório, Alexandre encontra um homem idoso com cabelos grisalhos sentado diante de uma mesa, apontando-lhe um revólver.

04 – Como o homem idoso reage quando Alexandre o acusa de ser um farsante?

      O homem idoso mantém a calma e afirma que estava à espera de Alexandre por dois anos, esperando sua chegada.

05 – Qual é o estado da sala em que os dois personagens se encontram?

      A sala em que os personagens se encontram está em péssimas condições, cheia de poeira, detritos e cheiro de mofo.

06 – Por que Alexandre não pode matar o homem idoso?

      Alexandre não pode matar o homem idoso porque este descarregou toda a carga de sua arma no teto da sala para evitar essa tentação.

07 – O que Alexandre tenta fazer quando percebe que está preso na sala?

      Alexandre tenta atirar-se através de uma janela, mas percebe que ela possui uma fina malha metálica que o impede de escapar.

08 – Qual é a reação do homem idoso ao perceber que Alexandre tentou o suicídio?

      O homem idoso se diverte com o pânico de Alexandre e revela que colocou telas de aço nas janelas para evitar o suicídio.

09 – O que o homem idoso faz para garantir que Alexandre não possa sair do prédio?

      O homem idoso fecha a porta e joga a chave por baixo dela, garantindo que Alexandre não possa sair.

10 – Por que o homem idoso afirma que ficarão naquele local por um tempo indeterminado?

      O homem idoso afirma que ficarão naquele local por um tempo indeterminado porque ele despediu os empregados, despejou os inquilinos do prédio e fez várias modificações para tornar o local inacessível. Eles estão agora presos juntos, sem possibilidade de escapar.

 

 

domingo, 31 de julho de 2022

CONTO: O EDIFÍCIO - (FRAGMENTO) - MURILO RUBIÃO - COM GABARITO

 Conto: O edifício – Fragmento

            Murilo Rubião

“Chegará o dia em que os teus pardieiros se transformarão em edifícios: naquele dia ficarás fora da lei.”

Miqueias, VII, 11.

        Mais de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do edifício que, segundo o manifesto de incorporação, teria ilimitado número de andares. As especificações técnicas, cálculos e plantas, eram perfeitas, não obstante o ceticismo com que o catedrático da Faculdade de Engenharia encarava o assunto. Obrigado a se manifestar sobre a matéria, por alunos insatisfeitos com o tom reticencioso do mestre, resvalava para a malícia afirmando tratar-se de “vagas experiências de outra escola de concretagem”.

        Batida a última estaca e concluídos os alicerces, o Conselho Superior da Fundação, a que incumbia a direção geral do empreendimento, dispensou os técnicos e operários para, em seguida, recrutar nova equipe de profissionais e artífices.

        1. A lenda

        Ao engenheiro responsável, recém-contratado, nada falaram das finalidades do prédio. Finalidades, aliás, que pouco interessavam a João Gaspar, orgulhoso como se encontrava de, no início da carreira, dirigir a construção do maior arranha-céu de que se tinha notícia.

        Ouviu atentamente as instruções dos conselheiros, cujas barbas brancas, terminadas em ponta, lhes emprestavam aspecto de severa pertinácia.

        Davam-lhe ampla liberdade, condicionando-a apenas a duas ou três normas, que deveriam ser corretamente observadas. A sua missão não seria somente exercer funções de natureza técnica. Envolvia toda a complexidade de um organismo singular. Os menores detalhes do funcionamento da empresa construtora estariam a seu cargo, cabendo-lhe proporcionar salários compensadores e constante assistência ao operariado. Competia-lhe, ainda, evitar quaisquer motivos de desarmonia entre os empregados. Essa diretriz, conforme lhe acentuaram, destinava-se a cumprir importante determinação dos falecidos idealizadores do projeto e anular a lenda corrente de que sobreviveria irremovível confusão no meio dos obreiros ao se atingir o octingentésimo andar do edifício e, consequentemente, o malogro definitivo do empreendimento.

        No decorrer das minuciosas explicações dos dirigentes da Fundação, o jovem engenheiro conservou-se tranquilo, demonstrando absoluta confiança em si, e nenhum receio quanto ao êxito das obras. Houve, todavia, uma hora em que se perturbou ligeiramente, gaguejando uma frase ambígua. Já terminara a entrevista e ele recolhia os papéis espalhados pela mesa, quando um dos velhos o advertiu:

        – Nesta construção não há lugar para os pretensiosos. Não pense em terminá-la, João Gaspar. Você morrerá bem antes disso. Nós que aqui estamos constituímos o terceiro Conselho da entidade e, como os anteriores, jamais alimentamos a vaidade de sermos o último.

        2. A advertência

        A mesma orientação que recebera dos seus superiores, o engenheiro a transmitiu aos subordinados imediatos. Nem sequer omitiu a advertência que o encabulara. E vendo que suas palavras tinham impressionado bem mais a seus ouvintes do que a ele as do ancião, sentiu-se plenamente satisfeito.

        3. A comissão

        João Gaspar era meticuloso e detestava improvisações. Antes de encher-se a primeira forma de concreto, instituiu uma comissão de controle para fiscalizar o pessoal, organizar tabelas de salários e elaborar um boletim destinado a registrar as ocorrências do dia.

        Essa medida valeu maior rendimento de trabalho e evitou, por diversas vezes, dissensões entre os assalariados.

        A fim de estimular a camaradagem entre os que lidavam na construção, desenvolviam-se aos domingos alegres programas sociais. Devido a esse e outros fatores, tudo corria tranquilamente, encaminhando-se a obra para as etapas previstas.

        De cinquenta em cinquenta andares, João Gaspar oferecia uma festa aos empregados. Fazia um discurso. Envelhecia.

        4. O baile

        Inquietante expectativa marcou a aproximação do 800º pavimento. Redobraram-se os cuidados, triplicou-se o número de membros da Comissão de Controle, cuja atividade se tornara incessante, superando dificuldades, aplainando divergências. Deliberadamente, adiou-se o baile que se realizava ao termo de cada cinquenta pisos concluídos.

        Afinal, dissiparam-se as preocupações. Haviam chegado sem embaraços ao octingentésimo andar. O acontecimento foi comemorado com uma festa maior que as precedentes.

        Pela madrugada, porém, o álcool ingerido em demasia e um incidente de pequena importância provocaram um conflito de incrível violência. Homens e mulheres, indiscriminadamente, se atracaram com ferocidade, transformando o salão num amontoado de destroços. Enquanto cadeiras e garrafas cortavam o ar, o engenheiro, aflito, lutava para acalmar os ânimos. Não conseguiu. Um objeto pesado atingiu-o na cabeça, pondo fim a seus esforços conciliatórios. Quando voltou a si, o corpo ensanguentado e dolorido pelas pancadas e pontapés que recebera após a queda, sentiu-se vítima de terrível cilada. De modo inesperado, cumprira-se a antiga predição.

        [...]

RUBIÃO, Murilo. In: SILVERMAN, Malcolm. O novo conto brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 231-238.

              Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 129-132.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Pardieiro: casa ou edifício velho, em ruínas.

·        Planta: mapa, projeto, esquema para a construção de um edifício ou casa.

·        Ceticismo: estado de quem duvida de tudo; descrença.

·        Pertinácia: persistência; obstinação, teimosia.

·        Octingentésimo: 800º = que ocupa, numa sequência, a posição do número oitocentos.

·        Malogro: fracasso; falta de êxito; insucesso.

·        Meticuloso: detalhista; que se preocupa com pormenores; minucioso, cuidadoso, cauteloso.

·        Dissensão: desentendimento; divergência de opiniões ou de interesse; desavença, dissidência; oposição.

02 – Você já ouviu falar em realismo fantástico ou realismo mágico?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – Conhece as obras de representantes brasileiros dessa tendência literária, como Murilo Rubião e José J. Veiga?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – Explique no caderno a alternativa que não se refere aos temas presentes no trecho que você leu.

a)   Aspectos absurdos e fantásticos da vida.

b)   Alienação motivada por trabalho mecânico e obsessivo.

c)   Possibilidade de controle da criação.

d)   Impossibilidade de mudar a realidade.

e)   Transmissão de obras para outras gerações.

Alternativa c: o conto revel a impossibilidade de controlar a criação.

05 – Que elementos desse trecho do conto “O edifício” extrapolam a realidade, ou seja, podem ser considerados fantásticos, absurdos ou extraordinários?

      O conto apresenta elementos simbólicos misteriosos, como a impossibilidade de terminar o edifício; a referência à maldição que se cumpre na conclusão do 800° andar; o fato de terem sido gastos mais de cem anos na construção das fundações do edifício; o número ilimitado de andares; o desconhecimento da finalidade da obra.

06 – Releia o terceiro parágrafo da parte 1, “A lenda”. Como você interpreta as exigências e recomendações feitas a João Gaspar pelos dirigentes da Fundação?

      Trata-se de uma ironia. As empresas, em geral, não têm como objetivo principal o bem-estar dos operários.

07 – Quantos andares foram concluídos até o trecho do conto que você leu?

      800 andares.

08 – Leia:

        Epígrafe, no contexto literário, é uma frase ou texto, geralmente de outro autor, colocado no início de um livro, capítulo, conto, poema etc. para lhe dar apoio temático ou resumir-lhe o sentido ou a motivação.

        Os contos de Murilo Rubião costumam ser precedidos de epígrafes bíblicas. No conto “O edifício”, a epígrafe é uma profecia, uma advertência. Com qual trecho da parte 4, “O baile”, a epígrafe do conto dialoga?

      “[...] sentiu-se vítima de terrível cilada. De modo inesperado, cumprira-se a antiga predição.”

09 – Muitos críticos e estudiosos consideram o conto “O edifício”, de Murilo Rubião, como uma metáfora da criação artística e uma narrativa metalinguística, pois reflete a respeito do ato de criação.

a)   Registre no caderno as características de uma obra de arte que podem ser inferidas pela leitura do conto.

I.             É coletiva e interminável.

II.           Cada geração dá sequência à obra iniciada anteriormente.

III.          É intertextual, pois dialoga com outros movimentos artísticos, com outras obras e com outros autores.

         Todas as alternativas estão corretas.

b)   Que trecho desse conto pode ser relacionado ao confronto entre inovação e tradição (escola tradicional ou acadêmica × escola de vanguarda)?

O trecho que fala do ceticismo do catedrático e da insatisfação dos alunos: “As especificações técnicas, cálculos e plantas, eram perfeitas, não obstante o ceticismo com que o catedrático da Faculdade de Engenharia encarava o assunto. Obrigado a se manifestar sobre a matéria, por alunos insatisfeitos como tom reticencioso do mestre, resvalava para a malícia afirmando tratar-se de ‘vagas experiência de outra escola de concretagem’”.

 

 

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

POEMA: VOCAÇÃO DO POETA - MURILO MENDES - COM GABARITO

Poema: Vocação do poeta
         
     Murilo Mendes

Não nasci no começo deste século:
Nasci no plano eterno,
Nasci de mil vidas superpostas,
Nasci de mil ternuras desdobradas
Vim para conhecer o mal e o bem
E para separar o mal e o bem.


Vim para amar e ser desamado.
Vim para ignorar os grandes e consolar os pequenos
Não vim para construir a minha própria riqueza
Nem para destruir a riqueza dos outros.
Vim para reprimir o choro formidável
Que as gerações anteriores me transmitiram.
Vim para experimentar dúvidas e contradições.

Vim para sofrer as influências do tempo
E para afirmar o princípio eterno de onde vim.
Vim para distribuir inspiração às musas.
Vim para anunciar que a voz dos homens
Abafará a voz da sirene e da máquina,
E que a palavra essencial de Jesus Cristo
Dominará as palavras do patrão e do operário.
Vim para conhecer Deus meu criador, pouco a pouco,
Pois se O visse de repente, sem preparo, morreria.

                                        MENDES, Murilo. “Vocação do poeta”. In: Poesia e prosa completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994. p. 248.
Fonte: Livro- Português – Série – Novo Ensino Médio – Vol. único. Ed. Ática – 2000- p. 357.

Entendendo o poema:

01 – Segundo as palavras de Cristo, “Todo aquele pois que se fizer pequeno, como este menino, esse será grande no reino dos céus” (Mateus; XVIII,4). Em que verso pode-se perceber a presença dessa passagem bíblica?
      “Vim para consolar os grandes e ignorar os pequenos”.

02 – Relendo a 2ª estrofe, você diria que os objetivos do eu lírico são materiais ou espirituais? Justifique com um verso da estrofe em questão.
      Espirituais. “Não vim para construir minha própria riqueza”.

03 – Diante de um mundo em que prevalece a mecanização, qual a esperança do eu lírico?
      Para o eu lírico, “a voz dos homens abafará a voz da sirene e da máquina”.

04 – Segundo o eu lírico, o que poderá eliminar definitivamente o conflito entre os homens, entre o capital e o trabalho, entre patrões e operários?
      “A palavra essencial de Cristo”.


sábado, 7 de julho de 2018

CONTO: O PIROTÉCNICO ZACARIAS - MURILO RUBIÃO - COM GABARITO

Conto: O PIROTÉCNICO ZACARIAS
          Murilo Rubião


        E se levantará pela tarde sobre ti uma luz como a do meio-dia; e quando te julgares consumido, nascerás como a estrela-d’alva. (Jó, xi, 17).
        Raras são as vezes que, nas conversas de amigos meus, ou de pessoas das minhas relações, não surja esta pergunta. Teria morrido o pirotécnico Zacarias?
        A esse respeito as opiniões são divergentes. Uns acham que estou vivo — o morto tinha apenas alguma semelhança comigo. Outros, mais supersticiosos, acreditam que a minha morte pertence ao rol dos fatos consumados e o indivíduo a quem andam chamando Zacarias não passa de uma alma penada, envolvida por um pobre invólucro humano. Ainda há os que afirmam de maneira categórica o meu falecimento e não aceitam o cidadão existente como sendo Zacarias, o artista pirotécnico, mas alguém muito parecido com o finado.
        Uma coisa ninguém discute: se Zacarias morreu, o seu corpo não foi enterrado.
        A única pessoa que poderia dar informações certas sobre o assunto sou eu. Porém estou impedido de fazê-lo porque os meus companheiros fogem de mim, tão logo me avistam pela frente. Quando apanhados de surpresa, ficam estarrecidos e não conseguem articular uma palavra.
        Em verdade morri, o que vem ao encontro da versão dos que creem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente.
        A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho 15 compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue, quase sem cor.
        Quando tudo começava a ficar branco, veio um automóvel e me matou.
        — Simplício Santana de Alvarenga!
        — Presente!
        Senti rodar-me a cabeça, o corpo balançar, como se me faltasse o apoio do solo. Em seguida fui arrastado por uma força poderosa, irresistível. Tentei agarrar-me às árvores, cujas ramagens retorcidas, puxadas para cima, escapavam aos meus dedos. Alcancei mais adiante, com as mãos, uma roda de fogo, que se pôs a girar com grande velocidade por entre elas, sem queimá-las, todavia.
        — “Meus senhores: na luta vence o mais forte e o momento é de decisões supremas. Os que desejarem sobreviver ao tempo tirem os seus chapéus!”
        (Ao meu lado dançavam fogos de artifício, logo devorados pelo arco-íris.)
        — Simplício Santana de Alvarenga!
        — Não está?
        — Tire a mão da boca, Zacarias!
        — Quantos são os continentes?
        — E a Oceania?
        Dos mares da China não mais virão as quinquilharias.
        A professora magra, esquelética, os olhos vidrados, empunhava na mão direita uma dúzia de foguetes. As varetas eram compridas, tão longas que obrigavam dona Josefina a ter os pés distanciados uns dois metros do assoalho e a cabeça, coberta por fios de barbante, quase encostada no teto.
        — Simplício Santana de Alvarenga!
        — Meninos, amai a verdade!
        A noite estava escura. Melhor, negra. Os filamentos brancos não tardariam a cobrir o céu.
        Caminhava pela estrada. Estrada do Acaba Mundo: algumas curvas, silêncio, mais sombras que silêncio.
        O automóvel não buzinou de longe. E nem quando já se encontrava perto de mim, enxerguei os seus faróis. Simplesmente porque não seria naquela noite que o branco desceria até a terra.
        As moças que vinham no carro deram gritos histéricos e não se demoraram a desmaiar. Os rapazes falaram baixo, curaram-se instantaneamente da bebedeira e se puseram a discutir qual o melhor destino a ser dado ao cadáver.
        A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso, com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, quase sem cor. Sem cor jamais quis viver. Viver, cansar bem os músculos, andando pelas ruas cheias de gente, ausentes de homens.
        Havia silêncio, mais sombras que silêncio, porque os rapazes não mais discutiam baixinho. Falavam com naturalidade, dosando a gíria.
        Também o ambiente repousava na mesma calma e o cadáver — o meu ensanguentado cadáver — não protestava contra o fim que os moços lhe desejavam dar.
        A ideia inicial, logo rejeitada, consistia em me transportar para a cidade, onde me deixariam no necrotério. Após breve discussão, todos os argumentos analisados com frieza, prevaleceu a opinião de que meu corpo poderia sujar o carro. E havia ainda o inconveniente das moças não se conformarem em viajar ao lado de um defunto. (Nesse ponto eles estavam redondamente enganados, como explicarei mais tarde.)
      Um dos moços, rapazola forte e imberbe — o único que se impressionara com o acidente e permanecera calado e aflito no decorrer dos acontecimentos —, propôs que se deixassem as garotas na estrada e me levassem para o cemitério. Os companheiros não deram importância à proposta. Limitaram-se a condenar o mau gosto de Jorginho — assim lhe chamavam — e a sua insensatez em interessar-se mais pelo destino do cadáver do que pelas lindas pequenas que os acompanhavam.
        O rapazola notou a bobagem que acabara de proferir e, sem encarar de frente os componentes da roda, pôs-se a assoviar, visivelmente encabulado.
        Não pude evitar a minha imediata simpatia por ele, em virtude da sua razoável sugestão, debilmente formulada aos que decidiam a minha sorte. Afinal, as longas caminhadas cansam indistintamente defuntos e vivos. (Esse argumento não me ocorreu no momento.)
        Discutiram em seguida outras soluções e, por fim, consideraram que me lançar ao precipício, um fundo precipício, que margeava a estrada, limpar o chão manchado de sangue, lavar cuidadosamente o carro, quando chegassem a casa, seria o alvitre mais adequado ao caso e o que melhor conviria a possíveis complicações com a polícia, sempre ávida de achar mistério onde nada existe de misterioso.
        Mas aquele seria um dos poucos desfechos que não me interessavam. Ficar jogado em um buraco, no meio de pedras e ervas, tornava-se para mim uma ideia insuportável. E ainda: o meu corpo poderia, ao rolar pelo barranco abaixo, ficar escondido entre a vegetação, terra e pedregulhos. Se tal acontecesse, jamais seria descoberto no seu improvisado túmulo e o meu nome não ocuparia as manchetes dos jornais.
        Não, eles não podiam roubar-me nem que fosse um pequeno necrológio no principal matutino da cidade. Precisava agir rápido e decidido:
        — Alto lá! Também quero ser ouvido.
        Jorginho empalideceu, soltou um grito surdo, tombando desmaiado, enquanto os seus amigos, algo admirados por verem um cadáver falar, se dispunham a ouvir-me.
        Sempre tive confiança na minha faculdade de convencer os adversários, em meio às discussões. Não sei se pela força da lógica ou se por um dom natural, a verdade é que, em vida, eu vencia qualquer disputa dependente de argumentação segura e irretorquível.
        A morte não extinguira essa faculdade. E a ela os meus matadores fizeram justiça. Após curto debate, no qual expus com clareza os meus argumentos, os rapazes ficaram indecisos, sem encontrar uma saída que atendesse, a contento, às minhas razões e ao programa da noite, a exigir prosseguimento. Para tornar mais confusa a situação, sentiam a impossibilidade de dar rumo a um defunto que não perdera nenhum dos predicados geralmente atribuídos aos vivos.
        Se a um deles não ocorresse uma sugestão, imediatamente aprovada, teríamos permanecido no impasse. Propunha incluir-me no grupo e, juntos, terminarmos a farra, interrompida com o meu atropelamento.
        Entretanto, outro obstáculo nos conteve: as moças eram somente três, isto é, em número igual ao de rapazes. Faltava uma para mim e eu não aceitava fazer parte da turma desacompanhado. O mesmo rapaz que aconselhara a minha inclusão no grupo encontrou a fórmula conciliatória, sugerindo que abandonassem o colega desmaiado na estrada. Para melhorar o meu aspecto, concluiu, bastaria trocar as minhas roupas pelas de Jorginho, o que me prontifiquei a fazer rapidamente.
        Depois de certa relutância em abandonar o companheiro, concordaram todos (homens e mulheres, estas já restabelecidas do primitivo desmaio) que ele fora fraco e não soubera enfrentar com dignidade a situação. Portanto, era pouco razoável que se perdesse tempo fazendo considerações sentimentais em torno da sua pessoa.
        Do que aconteceu em seguida não guardo recordações muito nítidas. A bebida, que antes da minha morte pouco me afetava, teve sobre o meu corpo defunto uma ação surpreendente. Pelos meus olhos entravam estrelas, luzes cujas cores ignorava, triângulos absurdos, cones e esferas de marfim, rosas negras, cravos em forma de lírios, lírios transformados em mãos. E a ruiva, que me fora destinada, enlaçando-me o pescoço com o corpo transmudado em longo braço metálico.
        Ao clarear o dia, saí da semiletargia em que me encontrava. Alguém me perguntava onde eu desejava ficar. Recordo-me que insisti em descer no cemitério, ao que me responderam ser impossível, pois àquela hora ele se encontrava fechado. Repeti diversas vezes a palavra cemitério. (Quem sabe nem chegasse a repeti-la, mas somente movesse os lábios, procurando ligar as palavras às sensações longínquas do meu delírio policrômico.)
        Por muito tempo se prolongou em mim o desequilíbrio entre o mundo exterior e os meus olhos, que não se acomodavam ao colorido das paisagens estendidas na minha frente. Havia ainda o medo que sentia, desde aquela madrugada, quando constatei que a morte penetrara no meu corpo.
        Não fosse o ceticismo dos homens, recusando-se aceitar-me vivo ou morto, eu poderia abrigar a ambição de construir uma nova existência.
        Tinha ainda que lutar contra o desatino que, às vezes, se tornava senhor dos meus atos e obrigava-me a buscar, ansioso, nos jornais, qualquer notícia que elucidasse o mistério que cercava o meu falecimento.
        Fiz várias tentativas para estabelecer contato com meus companheiros da noite fatal e o resultado foi desencorajador. E eles eram a esperança que me restava para provar quão real fora a minha morte.
        No passar dos meses, tornou-se menos intenso o meu sofrimento e menor a minha frustração ante a dificuldade de convencer os amigos de que o Zacarias que anda pelas ruas da cidade é o mesmo artista pirotécnico de outros tempos, com a diferença de que aquele era vivo e este, um defunto.
        Só um pensamento me oprime: que acontecimentos o destino reservará a um morto se os vivos respiram uma vida agonizante? E a minha angústia cresce ao sentir, na sua plenitude, que a minha capacidade de amar, discernir as coisas, é bem superior à dos seres que por mim passam assustados.
        Amanhã o dia poderá nascer claro, o sol brilhando como nunca brilhou. Nessa hora os homens compreenderão que, mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque a minha existência se transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra para exclusiva ternura dos meus olhos.

                                                                                    Murilo Rubião
Entendendo o conto:
01 – Com base na leitura e análise do conto O Pirotécnico Zacarias, classifique as afirmações seguintes de verdadeiras ou falsas:
a)   (F) O conto é narrado na terceira pessoa; o narrador é, pois, onisciente e não participa da história.
b)   (V) O narrador tem visão limitada dos fatos que narra.
c) (F) O narrador detém-se nos caracteres físicos das personagens, valorizando cabelos, olhos, cor de pele, estatura.
d) (V) Zacarias é personagem densa, esférica, como perfil psicológico delineado.
e) (F) Em todo o conto, Zacarias não consegue comunicar-se com os vivos, advindo daí sua angústia principal.

02 – Com base na leitura e análise do conto O Pirotécnico Zacarias, classifique as afirmações seguintes de verdadeiras ou falsas:
a)   (F) A relação de Zacarias com os vivos, apesar dos desajustes iniciais, normalizou-se com o tempo.
b)   (F) As únicas pessoas com quem Zacarias conseguia comunicar-se eram as moças e os rapazes que o atropelaram.
c)   (F) A vida que Zacarias levava depois da morte era inferior à de quando estava vivo, pois as percepções ficaram embaçadas.
d)   (F) O autor cria um ambiente utópico em que vivos e ex-vivos convivem sem discriminação.
e)   (F) Zacarias assistiu ao próprio enterro, presenciando a despedida de amigos e parentes ao seu cadáver.

03 – No conto O Pirotécnico Zacarias, Murilo Rubião:
a)   Valoriza o Realismo Fantástico, criando uma atmosfera em que a vida, depois da morte, só não segue normal por causa da discriminação dos vivos.
b)   Cria um cenário policrômico, descrevendo com muitos detalhes o ambiente citadino.
c)   Dá ênfase aos espetáculos em que Zacarias, quando vivo, exibia suas habilidades com o fogo.
d)   Descreve os horrores por que os mortos têm que passar quando não conseguem livrar-se do mundo dos vivos.
e)   Mostra que os mortos podem ajudar a desvendar crimes, desde que os vivos acreditem nisso.

04 – Depois do atropelamento, o corpo de Zacarias:
a)   Foi levado para o necrotério da cidade.
b)   Foi entregue à polícia.
c)   Foi jogado em um precipício, à beira da estrada.
d)   Foi levado direto para o cemitério e, ali, abandonado.
e)   Por sugestão de um dos rapazes, passou a fazer parte do grupo.

05 – Depois de morto;
a)   O álcool, antes danoso à saúde de Zacarias, não surtia mais nenhum efeito.
b)   A percepção sensorial de Zacarias, incluindo a capacidade de amar, melhorou sensivelmente.
c)   Zacarias voltou a trabalhar em um circo, fazendo coisas que, quando vivo, eram impossível de realizar.
d)   Zacarias passou a ser visto apenas pelo grupo de moas e rapazes que o atropelou.
e)   Zacarias voltou para os seus familiares, embora ninguém acreditasse que aquele fosse realmente Zacarias e, sim, uma pessoa muito parecida com o finado.

06 – No conto O Pirotécnico Zacarias, a linguagem de Murilo Rubião:
a)   É prolixa, com excesso de adjetivos e com descrições cansativas.
b)   É extremamente coloquial, com erros gramaticais.
c)   É sóbria, concisa, direta, beirando a gramática culta.
d)   É romântica, com descrições exageradas.
e)   É técnica, com excesso de termos científicos.