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quarta-feira, 10 de julho de 2019

CRÔNICA: O VERBO FOR - JOÃO UBALDO RIBEIRO - COM GABARITO

Crônica: O Verbo For
               João Ubaldo Ribeiro

        Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).
        O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.
        Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.
        — Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.
        — "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.
        Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a plateia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.
        — Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!
        Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.
        O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:
        — Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
        — As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
        — Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?
        — Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
        — Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!
        Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.
        — Esse "for" aí, que verbo é esse?
        Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.
        — Verbo for.
        — Verbo o quê?
        — Verbo for.
        — Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
        — Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.
        Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.
                                              João Ubaldo Ribeiro. "O Conselheiro Come", Ed Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 2000, pág. 20-23.

Entendendo a crônica:

01 – Na primeira frase do texto, o narrador faz uma afirmação que sugere sua idade. Copie no caderno o trecho que faz essa sugestão e explique por que você o selecionou.
      “No meu tempo”. A afirmação indica que ele é de outra época, anterior à da narração.

02 – Em seguida, ele afirma: “[...] Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo [...]”
a)   Por que o autor valoriza o passado e nega o presente?
Ele parece se sentir velho demais para aprender as novidades do presente.

b)   A expressão “à altura da vida” parece autorizar o narrador a dizer tudo o que pensa. Comente o significado dessa expressão.
Quer dizer que ele chegou a um tempo em que pode ser dito, pois já está velho.

03 – O vestibular evoca, na memória do narrador, seu tempo de juventude, o tempo em que o vestibular era de “verdade”. Quais são as palavras ou expressões que marcam, no texto, saudade daquela época?
      “O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora”.

04 – Destaque do texto dois trechos que sinalizam que o vestibular do passado era mais difícil que o de hoje.
      “Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira”; “Havia provas escritas e orais”.

05 – Copie o trecho em que o narrador conta o que fazia os alunos sentirem medo do mestre Evandro Baltazar de Silveira.
      “A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino, o mestre não perdoava”.

06 – Observe o seguinte fragmento:
        “— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
        — As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
        — Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?
        — Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
        — Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!”.

a)   Copie no caderno a passagem do trecho em que se pode perceber que o professor acreditava ter feito uma pergunta difícil.
“Dou-lhe dez, se [...]”.

b)   Por que o professor interrompe a resposta do aluno?
Porque o aluno já havia acertado a resposta e demonstrou ter muito conhecimento sobre o assunto.

c)   O que ele quis dizer com “Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!”.
Ele sugere que os baianos são inteligentes.

07 – Quando era professor, o narrador considerava a prova oral “bestíssima”. Por que ele tinha essa opinião?
      Porque a prova se limitava à leitura de um trecho em voz alta para saber se o candidato sabia ler. Depois, faziam-se perguntas simples sobre vocabulário.

08 – Releia a frase: “Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir".” Por que o narrador se qualifica como “carrasco fictício”?
      Anteriormente, o narrador já havia dito que tinha injustamente fama de ser um professor carrasco. No trecho transcrito, ele mostra que não era carrasco, já que fez uma pergunta muito simples.

09 – A pergunta correspondente ao verbo “for” foi respondida prontamente? Copie no caderno a passagem que justifica sua resposta.
      Não. “Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente”.

10 – Observe o trecho: “—Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo”.
a)   Qual é a palavra indicativa de informalidade na frase?
É a palavra .

b)   Por que o professor foi mais informal ao fazer a pergunta?
Porque a resposta anterior do rapaz estava errada, não existe o verbo for, portanto ele não poderia ser conjugado.

11 – No último parágrafo, o narrador se apropria do erro do candidato para promover uma brincadeira com a linguagem.
a)   A que expressão corresponde “fondo para quebrar”?
Ele compara essa expressão a “pondo para quebrar”.

b)   Que sentido está implícito na expressão acima citada?
Apesar de o candidato não estar preparado, deve ocupar um alto cargo no governo.

12 – Releia o diálogo:
        “— Verbo for.
         — Verbo o quê?
         — Verbo for.
         — Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
         — Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.”

a)   O que provoca riso no trecho destacado?
Quando o narrador pede ao rapaz que ele conjugue o verbo for, espera-se que ele perceba o erro que havia cometido; mas não, ele conjuga com segurança o verbo.

b)   Explique o tom irônico usado pelo narrador para descrever o candidato.
Ao utilizar o adjetivo impávido, o narrador sugere que o moço estava tão seguro de sua resposta que não percebeu o seu erro.

13 – No último parágrafo da crônica, o narrador apresenta outra característica do vestibular de seu tempo. Que característica é essa?
      O narrador diz que o vestibular no tempo dele era muito mais divertido do que hoje.

14 – Agora releia o final da crônica: “Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas.”
a)   Explique a crítica que está implícita no trecho.
A crítica é a de que os funcionários públicos não estão bem preparados para a função que exercem e, além disso, ganham salários altos.

b)   Em sua opinião, o final da crônica manteve o humor dado à narrativa?
Sim, pois a situação inesperada apresentando no final manteve humor.




segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

CRÔNICA: OS COMEDORES DE BAIACU - JOÃO UBALDO RIBEIRO - COM GABARITO

Crônica: Os comedores de baiacu
                João Ubaldo Ribeiro

        O baiacu, como haverão de saber os amáveis leitores, é o nome popular de alguns peixes aqui no Brasil (ou pelo menos em Itaparica; Itaparica é Brasil), geralmente da desagradável família dos tetradontídeos. Para ser mais claro, trata-se de um vulgar actinopterígio, teleósteo, da ordem dos plectógnatos, da já mencionada família tetradontídea e, julgo eu, na maior parte dos casos, é um exemplar da espécie em que Lineu tacou o nome de Lagocephalus laevigatus. Não sei por quê. Lineu tinha dessas coisas. Qualquer um que já viu um baiacu percebe logo que ele não pode ser um Lagocephalus e muito menos um laevigatus.
        Mas, enfim, eis que o baiacu abunda nestas plagas. Outro dia mesmo, pescando mais Luiz Cuiúba, ferrei uns dez, tudo maiorzinho de um palmo, pescaria até boa, se fosse peixe que prestasse. Até os quatro dentinhos dele chateiam o vivente, porque só são quatro, como o nome da família indica, mas são navalhas, estropiam anzóis, às vezes cortam até os arames das paradas. E o miserável, ainda por cima, é guloso, engole o anzol de vez e é um sacrifício para tirar tudo lá de dentro. Para não falar que é metido a batalhador e então o sujeito está ali pedindo a Deus um vermelhinho, um dentão, uma xumberga, um beiju-pirá, uma coisa assim decente, e aí a vara verga, a linha se estica e sai em disparada para o lado, peixe grande comeu! Comeu nada. O camarada sua, luta pra cá, luta pra lá, mete a mão na linha, faz o diabo, e quem chega, sacudindo vergonhosamente a ponta da linha? Um baiacu. Não pode haver maior tristeza para quem já tinha garantido ao companheiro de pescaria que “esse bicho aqui na linha é uma sororoca e das grandes”.
        Cuiúba não deixava que eu jogasse fora os baiacus e, lá pelas tantas, havia uma pilha deles, ainda espadanando a pocinha do fundo da canoa.
        — Ha-ha! — exclamou Cuiúba, brandindo facinorosamente a faca enferrujada, mas amoladíssima, que ele sempre leva.
        — Vou fazer filé de baiacu, que amanhã eu como uma moqueca!
        E passou, com habilidade um tanto assustadora, a eviscerar, esfolar e desossar os baiacus, jogando “filé” atrás de “filé” para dentro do coifo. Alguns dos filés, inclusive, continuavam se batendo, não fibrilando como carne de cágado, mas se agitando mesmo, quase como peixes vivos. Não creio que isto possa vir a tornar-se uma atração turística, nunca vi coisa mais esquisita. E meu dever, embora Cuiúba saiba mais de peixes do que quarenta delegados regionais da Sudepe, era fazer uma advertência. Nós, biólogos, temos obrigações sociais.
        — Cuiúba, você está maluco? Você vai comer isso? Isso é um Lagocephalus laevigatus! O famoso peixe venenoso, isso mata em poucas horas!
        — Já tinha ouvido gente chamar isso de peixe-sapo, mas esse nome que você falou nunca ouvi falar — disse Cuiúba, jogando outro filé na cesta.
        — Um anfíbio anuro? — disse eu. — Não seja ridículo, isso é um Lagocephalus.
        — Isto — disse Cuiúba, metendo a faca na barriga de mais um peixe — é um baiacu. É o melhor peixe do mar e eu vou comer tudo de moqueca.
        — Mas você não sabe que baiacu é venenoso?
        — É pra quem não sabe tratar. O veneno está aqui — mostrou ele, cutucando uma bolinha entre as vísceras. — Tirando isso, fica logo o melhor peixe do mar.
        — Mas você não sabe que de vez em quando morre um depois de comer baiacu, às vezes famílias inteiras, e de gente acostumada a comer baiacu?
        — É, eu sei. Agora mesmo, semana passada, morreram quatro de vez, no Alto de Santo Antônio, só sobrou um quinto, que ainda está passando mal no hospital. Eles comiam sempre baiacu, a velha fazia um escaldado com quiabo ótimo, eu mesmo comi lá várias vezes.
        — E então? E ela não sabia dessa bolinha aí, não estava acostumada a tratar baiacu?
        — Estava, estava. Mas ninguém está livre de uma distração, é ou não é? Uma distração assim ... — e, ploft, outro filé no cesto.
        — Cuiúba, deixe de ser doido, você pode morrer se comer esse negócio.
        — Morro nada.
        De volta ao Mercado, procurei apoio na autoridade de Sete Ratos, peixeiro antigo, diz o povo que hoje rico, da venda de peixe.Com certeza ele dissuadiria Cuiúba daquela ideia tresvariada de comer baiacu. Encontro Sete Ratos em pé diante de uma banca, com as mãos metidas numa gamela, tratando peixe. Já eram quase dez horas, passava da hora do almoço e era natural que ele estivesse ali preparando sua comida. Olhei para dentro da gamela, vi uns vinte baiacus miúdos.
        — Sete Ratos, você vai comer baiacu?
        — É o melhor peixe do mar!
        — Mas essa desgraça é venenosa, você não sabe que é venenosa?
        — Ah, é. Semana passada mesmo, morreram acho que quatro ou cinco, lá no Alto. Família acostumadinha a comer baiacu, nesse dia comeram... É o desacerto.
        — Eu sei, Cuiúba me contou. E eu que vinha aqui justamente para lhe pedir que tirasse da cabeça dele a ideia de comer uns filés de baiacu que a gente pescou.
        — Ele esfolou o peixe? Tirou a pele? Tirou justamente o que dá gosto na moqueca? Tirou de frouxidão, foi isso, tirou de frouxidão! Hem, Cuiúba, você tirou a pele porque acha que o veneno está na pele, hem? Deixe de ser frouxo, rapaz, isso tudo é conversa, o veneno nunca esteve na pele, se fosse assim eu já era defunto.
        — Eu sei — falou Cuiúba. — Eu tirei porque gosto de filé de peixe, mas eu sei que o veneno está naquela bolinha da barriga.
        — Que bolinha da barriga, rapaz, tem nada de bolinha de barriga, isso tudo é conversa, tem nada de bolinha na barriga. Isso aí a pessoa tira porque ninguém vai comer tripa de peixe, só francês ou senão americano. O negócio é na hora do cozimento, aí tem de cozinhar direito!
        — E você vai mesmo comer essa baiacuzada, Sete Ratos?
        — Ora, é o melhor peixe do mar!
        Saí por ali, conversei com Turrico, que, além de garçom, é bom pescador. Ele também é muito chegado a uma moquequinha de baiacu. Mas não é veneno, Turrico? É, semana passada mesmo, no Alto... Mas só é veneno nos meses que não têm r, no mês que tem r pode comer sossegado.
        — Mas Sete Ratos me disse que era no cozimento. E Cuiúba...
        — Isso é tudo conversa, tudo conversa. Eu não deixei de comer baiacu nem depois que morreu uma parenta minha — uma não, duas, que eram velhas vitalinas e moravam juntas. Elas estavam acostumadas, faziam baiacu muito bem. Mas nesse dia...
        — E então?
        — É porque foi em julho. Julho não tem r. Ou tem?
        Está certo, pensei eu sem entender nada, enquanto me dirigia à casa de meu amigo Zé de Honorina, para pegar um feijãozinho atendendo a amável e generoso convite. Comentei com ele minha perplexidade.
        — Que coincidência! — disse ele alegremente. — Comadre Dagmar está aí justamente preparando uma moqueca de baiacu.
        — Ah, desculpe, Zé, mas eu não como baiacu.
        — Besteira sua, é o melhor peixe do mar. Agora, não se pode negar que é venenoso. Semana passada mesmo, no Alto...
        — Eu soube, eu soube. E você vai comer assim mesmo?
        — Claro que vou, mas não se preocupe, que eu mandei preparar uma garoupinha para você, separada.
        Entre limões, mãos de coentro, pilhas de cebolas, alhos, malaguetas e tomates, Dagmar dava os últimos retoques na moqueca de baiacu. Aproximei-me, estava tudo muito cheiroso. Observei como aquela sua moqueca de baiacu era famosa, como Zé tinha confiança em comer aquele peixe venenoso quando era ela quem o preparava. Qual o segredo para tratar o baiacu?
        — Ah, não sei — disse ela. — Eu mesma não como.

        RIBEIRO, João Ubaldo. Os comedores de baiacu. In: Arte e ciência de roubar galinha:
Crônicas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 45-9.
Entendendo a crônica:

01 – Que explicações foram dadas pelos vários personagens, no decorrer da história, sobre o veneno do baiacu? Que informações concretas foram dadas sobre as atividades desses personagens?
·        Luiz Cuiúba = Pescador. O veneno está em uma bolinha entre as vísceras. Se for retirada, o baiacu não faz mal.

·        Sete Ratos = Peixeiro antigo. O segredo está na hora do cozimento.

·        Turrico = Garçom e pescador. O peixe só é venenoso nos meses que não têm r. No mês que tem r pode-se comer sossegado.

02 – Que características são comuns a todos esses personagens? Como você poderia descrevê-los?
      Pessoas que vivem e sobrevivem a partir de conhecimentos, mitos e lendas que vão passando de geração em geração.

03 – Os personagens, segundo o texto, possuem suficientes conhecimentos científicos para justificar as afirmações que fazem? De onde provem as teorias deles sobre o assunto? Considere as informações que o texto fornece sobre esses personagens.
      Não. O conhecimento deles faz parte dos saberes populares que vão sendo passados de geração em geração.

04 – O narrador parece desesperado para convencer os outros de que o peixe é venenoso. Que indicativos há no texto de que ele possui uma certa autoridade para falar no assunto?
      Ele se diz biólogo. E tenta provar seu conhecimento citando nomes e mais nomes científicos relacionados ao baiacu.

05 – Além de não servirem para comer, que outros motivos os pescadores têm, em geral, para não gostarem de fisgar baiacus?
      Porque tais peixes, além de não servirem para se comer, estropiam anzóis, cortam arames das paradas e engolem anzóis.



domingo, 5 de agosto de 2018

ARTIGO DE OPINIÃO: OS EXTRATERRESTRES PODERIAM FAZER A NOSSA FELICIDADE - JOÃO UBALDO RIBEIRO - COM GABARITO

Artigo de Opinião: Os extraterrestres poderiam fazer a nossa felicidade
         João Ubaldo Ribeiro


   Uma das minhas maiores frustações é nunca ter visto um disco voador. Até porque conheço gente que já viu, às vezes em circunstâncias portentosas. Um desses felizardos, conceituado médico e amigo de minha família, estava dirigindo numa estrada deserta, quando um forte clarão, acompanhado por uma espécie de frufrulhar (ele usou esta palavra, que nos remeteu ao Aurélio, como a vocês agora), surgiu acima do carro, cujo motor morreu instantaneamente. Tudo deixou de funcionar, os faróis se apagaram, o rádio desligou-se. Em cima, persistiam o frufrulhar e uma luz eucrômica (ele também usou esta palavra, que não achamos no Aurélio, mas adivinhamos de qualquer forma e não demos o braço a torcer, porque estava na cara que ele tinha uma fonte para provar que a palavra existia e ninguém era besta para abrir o jogo; com baiano, palavra difícil é questão de honra).
        Quanto tempo isso durou, ele não sabia bem, pois até seu Rolex parou, mas devia ter sido coisa de uns dez mesmerizantes minutos. Inopinadamente, contudo, o frufrulhar tornou-se um cicio e a luz eucrômica um inconstante bruxuleio. Tudo no carro voltou a funcionar, inclusive o Rolex. Ele, apesar do choque, manteve a atenção vigilante. A pouca distância de seu para-brisas, em baixa altura, viu um objeto piriforme (esta não fez sucesso, não foi preciso Aurélio), que girava em torno de si mesmo. Pairou alguns instantes e, com o cicio já promovido a silvo, partiu tão célere em direção ao espaço que desapareceu num segundo.
        Não tenho razões para duvidar do relato. Tratava-se de pessoa idônea a quem a sorte (ou a Providência, quem sabe, há sempre os eleitos) escolhera para ver o disco voador, ou melhor, um objeto voador não-identificado, porque, sendo piriforme, não era disco. Mas só podia ser OVNI mesmo, é claro. Fico injuriado com essa discriminação. Que pelo menos me fosse dado ver uma fita cassete voadora, ou outro objeto, mesmo que não piriforme ou não emitindo luz eucrômica.
        Mas, ai de mim, nunca vi nada. Nem em fotografias. Fotos de OVNIs têm o curioso dom de parecer qualquer coisa, desde a consequência de haverem esfregado uma panqueca na lente da câmara, ao flagrante de um traseiro de galinha logo após a postura. São como as fotos do Abominável Homem das Neves ou do monstro do Lago Ness. O Abominável lembra invariavelmente uma mancha de chantili numa gravata pied-de-poule e o monstro do lago evoca o close desfocado de uma minhoca com problemas de obesidade. Houve as fotos publicadas na antiga revista O Cruzeiro, que eram claras e tão bem-produzidas que, ao que parece, o consenso hoje é que não se tratava de coisa autêntica.
        Antes que comece a receber cartas revoltadas de ufologistas radicais (é engraçado como quem vê um disco voador pegar freguesia e vê muitos outros; esse médico mesmo acabou vendo vários, só que em condições não tão espetaculares), apresso-me a esclarecer: como muita gente, inclusive cientistas respeitáveis, também acho improvável que, neste Universo inimaginavelmente vasto, só o nosso planetinha abrigue vida. Todo mundo já ouviu esse raciocínio e não aceita-lo parece tornar-nos meio ptolemaicos, achando que a Terra é o centro do Universo. Apenas ninguém, que se saiba ao certo, tem provas de que haja vida fora da Terra e, muito menos, de que outras civilizações deem passeios por aqui.
        Existe o pessoal que tem certeza de que o Pentágono e a Nasa dispõem de dados concretíssimos e mantêm tudo guardado a sete chaves. Agora mesmo, voltam a publicar velhas fotos de Marte, mostrando indícios de civilizações, a escultura de um rosto humano, pirâmides e outros (eu próprio, do mesmo jeito que como Abominável, não vejo nada, mas admito que enxergo mal), para sublinhar como é suspeito o fato de a nova sanda que ia mapear Marte pifar bem na hora de começar o serviço. Deve ter sido mesmo um acidente, como tantos outros que já ocorreram no espaço. Mas, como os governos mentem muito, há um certo direito de duvidar do que dizem. Faz alguns dias, não saiu nos jornais que os propalados êxitos do programa reaganista “Guerra nas Estrelas” foram blefes para assustar os então soviéticos?
      O problema é que a maior parte dos ufólogos, pelo menos dos que conheço, tem mais espírito religioso do que científico. Há uma necessidade de acreditar nos OVNIs, pois somente o contato com civilizações superiores poderia orientar esta Humanidade enlouquecida. Pois sim. Uma civilização capaz de viajar à vontade dezenas ou centenas de anos-luz teria tanto interesse em nossas mazelas quanto um biólogo em indagar dos sentimentos dos paramécios que vê em seu microscópio. Mas a certeza de que eles virão, ou estão vindo, persiste. A ufologia é uma vocação que deve trazer grande apelo à alma brasileira. Já que D. Sebastião não volta (o Dr. Sarney talvez volte), mais dia menos dia um disco voador aterrissa aqui, acaba a inflação, cura o câncer e a Aids, transforma os meninos de rua em harvardianos e estabelece a felicidade geral. Pode até ser. Mas, por enquanto, o único objeto exótico com cuja aparição podemos contar é o fusca 94 – e com o Dr. Itamar ao volante.
                                    João Ubaldo Ribeiro. O Estado de São Paulo.
Entendendo o texto:
01 – O que é frustação?
      É não ter conseguido o que desejava.

02 – Quando as circunstâncias são portentosas?
      Quando são maravilhosas, prodigiosas, assombrosas.

03 – Qual o significado de conceituado?
      De bom conceito, afamado.

04 – O que frufrulhar?
      É produzir um rumor de folhas.

05 – A palavra eucrômino é formada pelo prefixo grego eu, que bom, belo, e o radical crôn. que é cor, seguido pelo prefixo ico. Como você interpreta o significado de luz eucrômica?
      Luz de bela cor.

06 – O que significa não dar o braço a torcer?
      Não se considerar vencido.

07 – Qual o sinônimo de besta em: ninguém era besta?
      Bobo.

08 – Rolex é marca de quê?
      Relógio.

09 – Se mesmerizar é hipnotizar, o que quer dizer mesmerizantes minutos?
      Minutos hipnotizantes.

10 – Inopinadamente é de modo inopinado. O que é inopinado?
      Imprevisto.

11 – Que é cicio?
      Barulho fraco, rumor brando.

12 – Explique o significado de inconstante bruxuleio.
      Brilho oscilante de modo não constante.

13 – Piriforme é o mesmo que periforme. O que ambas significam?
      Em forma de pera.

14 – O que é pairar?
     Mover-se com lentidão no alto.

15 – Um sinônimo de célere.
      Rápido.

16 – Existem duas palavras parecidas (parônimas): descriminação e discriminação. Que significam?
      Descriminação: ato de inocentar de um crime.
      Discriminação: ato de distinguir, separar.

17 – No texto, há palavras estrangeiras, como a francesa pied-de-poule (pé de galinha), a inglesa close, parte de close-up (fotografia de objeto próximo). Há, também, uma palavra francesa aportuguesada pelo autor. Em francês é chantilly. Como o autor usou? O que esta palavra designa?
      Chantili – designa um saboroso creme.

18 – Desfocado é um vocábulo comum em fotografia. Como é uma foto desfocada?
      Fora de foco, não é nítida.

19 – Quando há consenso no seu grupo?
      Quando todos concordam.

20 – Ufologista é o mesmo que ovniologista. E qual é o significado?
      Estudioso dos objetos voadores não identificados.

21 – O que caracteriza uma pessoa radical?
      É inflexível, durona.

22 – O sistema ptolemaico é geocêntrico. O que é geocêntrico?
      É o que considera a Terra como centro do Universo.

23 – Quais são as atribuições do Pentágono e da Nasa?
      Pentágono é o que trata da defesa militar dos E.U.A.
      Nasa é agência do programa espacial.

24 – Que significa guardar a sete chaves?
      Guardar muito bem guardado.

25 – De um sinônimo de pifar.
      Quebrar, deixar de funcionar.

26 – O que é propalar êxitos?
      Divulgar bons resultados.

27 – Reaganista é relacionado com Ronald Reagan, que foi presidente de um país da América do Norte. Que país é?
      Estados Unidos da América.

28 – Qual o sentido de blefe?
      Engano, logro.

29 – Que são mazelas?
      Feridas, doenças, aborrecimentos.

30 – João Ubaldo usou a palavra paramécios, que são protozoários. O que é protozoário?
      É um animal unicelular.

31 – Harvardiano é adjetivo relacionado com Harvard University, uma famosa universidade norte-americana. Fica em que país?
      Nos Estados Unidos da América.

32 – Dê um sinônimo de exótico.
      Estranho, incomum.