Mostrando postagens com marcador VICTOR GIUDICE. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador VICTOR GIUDICE. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

CONTO: O ARQUIVO - VICTOR GIUDICE - COM GABARITO

 CONTO: O arquivo 

                  Victor Giudice

 No fim de um ano de trabalho, João obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.

joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.

No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.

Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.

Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.

O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.

Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento.

Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.

Agora joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.

Prosseguiu a luta.

Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.

joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.

Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.

Respirou descompassado.

— Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.

joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.

— Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.

O coração parava.

— Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.

A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.

— De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?

Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.

Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.

Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.

Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência. A vida foi passando, com novos prêmios.

Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.

O corpo era um monte de rugas sorridentes.

Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:

— Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.

O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:

— Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.

O chefe não compreendeu:

— Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?

A emoção impediu qualquer resposta.

joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.

joão transformou-se num arquivo de metal.

(GIUDICE, Victor. In: Setecontos setecantos. São Paulo: FTD, 1986.v.2)

Fonte: Livro – Práticas de Linguagem – v.4 – São Paulo: Editora Scipione, 2000, p.37- 41.

SOBRE O TEXTO

1.   Como devemos entender as constantes “promoções” de joão?

Devemos interpretá-las como constantes “despromoções”. Realça que toda a carga irônica do texto está centrada numa absoluta inversão de valores.

2.   Qual seria a maior de todas as “promoções”?

Após estar “desassalariado”, a promoção seguinte daria a joão o “direito” de pagar para trabalhar.

3.   Como você percebeu, o personagem principal tem seu nome grafado com inicial maiúscula apenas na primeira frase do texto; a partir daí, seu nome aparece grafado com a inicial minúscula. Por que o autor teria usado esse recurso?

O texto trabalha com o crescente coisificação de joão, a qual atinge o clímax quando o personagem transforma-se em arquivo, isto é, literalmente numa coisa, num objeto. O uso da inicial minúscula reforça a ideia de joão como um objeto, um substantivo comum. Ao perder a individualidade, a personalidade, joão perdeu também a inicial maiúscula dos nomes próprios.

4.   O narrador participa dos fatos ou se coloca como observador?

O narrador se coloca como observador (narração em terceira pessoa).

5.   O texto poderia ser narrado em primeira pessoa? Por quê?

Sim. No entanto, como o texto trabalha com o aniquilamento e a absoluta desumanização do personagem, transformar joão em personagem-narrador exigiria uma apuradíssima técnica de composição da narrativa.

6.   Quando os fatos ocorrem?

Os fatos se sucedem ao longo de 40 anos, desde a primeira “promoção” até a coisificação de joão.

7.   Onde eles ocorrem?

Fundamentalmente, no escritório onde joão trabalha; no mais, há referências vagas aos lugares onde joão morou. No entanto, embora esses lugares não sejam propriamente descritos, desempenham papel importante na construção da narrativa: à medida que ele é “promovido”, vai se mudando para lugares mais distantes, até “não ter mais problemas de moradia” (passa a viver nos campos).

8.   Que conflito há na história? Quem é o protagonista? E o antagonista? Comente.

João é o protagonista; seu chefe seria o antagonista. O conflito está presente na relação (joão x empresa, explorado x explorador, etc). O interessante é que o autor soube usar muito bem a ironia, dando ao conflito a aparência de harmonia, isto é, transformando em “promoção” a crescente exploração do trabalhador.