Conto: À FLOR DA PELE
Luiz Ruffato
Há, ainda hoje, em certos círculos
intelectuais, quem defenda a existência de uma “democracia racial” no Brasil,
tese nascida na década de 1930 e rapidamente assimilada como ideologia nacional
pela nossa tradição de governos autoritários. Essa perspectiva — que relativiza
a tragédia de mais de três séculos de escravidão — sempre impediu uma discussão
séria sobre a questão do preconceito de cor em nosso país. Basta observar que,
mesmo a literatura, arte que busca transcender a hipocrisia, poucas vezes ousou
enfrentar o tema e, quando o fez, deparou-se com a incompreensão e/ou desprezo
da crítica.
O pequeno número de autores
afrodescendentes inscritos no cânone literário brasileiro — Machado de Assis
(1839-1908), Cruz e Souza (1861-1898), Lima Barreto (1881-1922) — já é uma
clara evidência do lugar destinado ao negro em nossa sociedade. Sem acesso à
educação e acantonados no limiar da miséria, os afrodescendentes não se
constituíram como cidadãos; impedidos de agir como sujeitos da própria
história, sucumbiram, pela força da opressão, a meros coadjuvantes da
construção de uma identidade nacional. Raros são, até pelo menos o último
quartel do século XX, os romances ou contos protagonizados por personagens
afrodescendentes.
A uma mulher, Maria Firmina dos Reis
(1825-1917), ela mesma mestiça, deve-se uma das primeiras representações do
negro na prosa de ficção brasileira, no romance Úrsula, aparecido em 1859. Mas
a Mãe Suzana, de Maria Firmina, digna depositária da cultura africana e do
desejo de liberdade, é uma exceção no quadro do nosso romantismo. Joaquim
Manuel de Macedo (1820-1882), como As vítimas-algozes, de 1869, apenas reforça
o estereótipo do escravo como um ser despido de humanidade, receptáculo da
maldade, da crueldade e da maledicência. E Bernardo Guimarães (1825-1884),
embora sincero em sua adesão à causa antiescravagista, criou, em A escrava
Isaura, de 1875, uma personagem que em tudo seguia o padrão de beleza das
heroínas importadas da França.
Aliás, é curioso que o tema da escravidão,
que mobilizou grandes nomes da poesia romântica, não tenha tido o mesmo apelo
junto aos ficcionistas. Além dos títulos citados, está presente apenas, salvo
engano, em Motta Coqueiro ou A pena de morte (1887), de José do Patrocínio
(1854-1905) — após a abolição, foram publicados A família Medeiros, de 1892, de
Júlia Lopes de Almeida (1862-1934); Rei Negro, de 1914, de Coelho Neto (1864-
1934), e a obra-prima A menina morta, de Cornélio Pena (1896-1958), lançado em
1954, todos tratando, de maneira direta ou indireta, do assunto.
O caso de Machado de Assis parece hoje
caminhar para um consenso. Durante muito tempo incompreendido, o autor carregou
a pecha de se ter omitido da discussão sobre a situação do negro na sociedade,
uma censura injusta àquele que buscava refletir sobre o homem em sua
complexidade, independentemente da cor da pele. A sua obra, que acompanha os
descaminhos sociopolíticos do Brasil por todo o Segundo Império, não teria como
se furtar a refletir sobre a questão. Só que, avesso à superficialidade, é nas
entrelinhas, no não-dito, que se realiza sua prospecção sobre os recônditos da
alma humana. Prova disso, basta ler o conto “Pai contra mãe”, presente nesta
coletânea.
O período compreendido entre o final do
século XIX e o começo do século XX é de renovado interesse pelo problema. Em
1881, Aluísio Azevedo (1857-1913) causou escândalo em sua cidade natal, São
Luís (MA), com a publicação do romance O mulato, que tratava de um caso de
preconceito racial (identifica-se, em geral, o personagem título com o poeta
Gonçalves Dias). Azevedo voltaria ao tema em O cortiço, de 1890, que mostra
como o português João Romão, para ascender socialmente, descarta-se de
Bertoleza, após usá-la anos e anos como escrava e amante. Em 1895, Adolfo
Caminha (1867-1897) publicou o corajoso O bom crioulo, que tem como
protagonista um negro homossexual, uma ousadia que relegou o livro, até muito
recentemente, ao limbo da história literária.
No entanto, é com Lima Barreto que
chegamos ao ápice da representação do negro na literatura brasileira.
Comprometido com a causa afrodescendente, desde seus primeiros escritos assumiu
sua condição de mestiço e de suburbano numa sociedade branca e elitista — e
pagou caro por isso. Por conta de seu alcoolismo, não chegou a realizar
totalmente a obra projetada. Mas deixou pelo menos dois grandes personagens, o
Isaías Caminha, de Recordações do escrivão Isaías Caminha, de 1909, e a Clara
dos Anjos, da novela do mesmo nome, publicada postumamente em 1948.
Estranhamente,
entretanto, em boa parte do século XX, esta preocupação estará ausente do
horizonte dos escritores brasileiros. Exceção a ser destacada cabe a O moleque
Ricardo, de 1935, e sua complementação, a primeira parte de Usina, de 1936, de
José Lins do Rego (1901-1957). Intercalado ao chamado ciclo da cana-de-açúcar,
destoa dos romances anteriores e posteriores pelo cenário (a ação decorre em
Recife) e pelo tema (as agruras do proletariado urbano). Negro, sem
perspectivas no engenho, Ricardo foge e vai trabalhar na capital pernambucana.
Lá descobre o amor, a militância política e a tragédia. O livro termina com sua
prisão na ilha de Fernando de Noronha, mas a história de Ricardo continua na
primeira parte de Usina, que mostra o dia a dia do presídio e seu envolvimento
afetivo com o cozinheiro, seu Manuel. No final, Ricardo volta para o engenho,
derrotado.
A segunda metade do século XX é
dominada pelos negros e mulatas estereotipados de Jorge Amado (1912-2001),
eclipsado momentaneamente apenas pelo fenômeno editorial que foi Quarto de
despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus (1914-1977). A partir da década de
1970, coincidindo com um certo renascimento da literatura brasileira e com o
surgimento de movimentos de valorização da consciência negra, começam a surgir
livros protagonizados por personagens afrodescendentes. Apenas a título de
exemplo, podemos citar as coletâneas de contos O carro do êxito (1972), de
Oswaldo de Camargo (1936), Um negro vai à forra (1977), de Edilberto Coutinho
(1933-1995), Cauterizai o meu umbigo (1986), de Eustáquio José Rodrigues (1946)
e Santugri (1988), de Muniz Sodré (1942); os romances Luanda, Beira, Bahia
(1971), de Adonias Filho (1915-1990), Os tambores de São Luís (1975), de Josué
Montello (1917-2006), Crônica dos indomáveis delírios (1991), de Joel Rufino
dos Santos (1941); e a trilogia A casa da água (1969), O rei de Keto (1980) e
Trono de vidro (1987), de Antônio Olinto (1919). Mais recentemente, já no
século XXI, apareceram, entre outros, Elegbara (2005), de Alberto Mussa (1961),
Contos negreiros (2005), de Marcelino Freire (1967), contos e uns trocados
(2006), de Nei Lopes (1942), e os romances A noite dos cristais (2001), de Luís
Fulano de Tal (1959) e Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves (1970).
Necessário ressaltar, finalmente, a
importantíssima contribuição do movimento Quilombo hoje, fundado em 1980 por
Oswaldo de Camargo, Paulo Colina (1950-1999), Cuti (1951) e Abelardo Rodrigues
(1952), que busca incentivar a reflexão e a produção de uma literatura
comprometida com a valorização da cultura afro-brasileira. Responsável pela
publicação anual dos Cadernos Negros, que reúne contos e poemas de
afrodescendentes, revelou inúmeros novos autores, alguns deles presentes nesta
antologia.
Luiz Ruffato.
Entendendo o conto:
01 – Quem são alguns dos
autores afrodescendentes mencionados no texto e quais são suas obras mais
significativas?
Alguns autores
mencionados são Lima Barreto, com obras como "Recordações do Escrivão
Isaías Caminha" e "Clara dos Anjos", e Carolina Maria de Jesus,
autora de "Quarto de Despejo".
02 – Como o texto descreve a
abordagem da literatura brasileira em relação à questão do preconceito racial
ao longo do tempo?
O texto sugere
que a literatura brasileira inicialmente evitou ou representou de forma
estereotipada personagens afrodescendentes, mas mais tarde, especialmente a
partir do final do século XX, houve um aumento na representação e reflexão
sobre essa questão.
03 – Quais são algumas das
obras literárias específicas mencionadas que abordam a questão da escravidão e
do preconceito racial no Brasil?
"O
mulato" de Aluísio Azevedo, "O bom crioulo" de Adolfo Caminha e
"Recordações do Escrivão Isaías Caminha" de Lima Barreto são algumas
das obras citadas.
04 – Como o texto caracteriza
a postura de Machado de Assis em relação à discussão sobre a situação do negro
na sociedade?
O texto sugere
que Machado de Assis foi mal compreendido por muito tempo, sendo acusado de
omitir a discussão sobre a situação do negro, mas, na verdade, ele refletia
sobre a complexidade humana nas entrelinhas de suas obras.
05 – Quais são as obras
literárias mais recentes mencionadas no texto que trazem personagens
afrodescendentes como protagonistas?
"Elegbara"
de Alberto Mussa, "Um defeito de cor" de Ana Maria Gonçalves e
"Contos negreiros" de Marcelino Freire são alguns exemplos citados.
06 – Quais foram os autores e
obras que contribuíram para a representação do negro na literatura brasileira
na segunda metade do século XX?
Autores como
Jorge Amado, Carolina Maria de Jesus e movimentos como o Quilombo hoje foram
destacados por sua contribuição nesse período.
07 – Quais foram os motivos
pelos quais Lima Barreto foi considerado o ápice da representação do negro na
literatura brasileira pelo texto?
O texto sugere
que Lima Barreto assumiu sua condição de mestiço e suburbano em uma sociedade
elitista e branca, refletindo isso em personagens como Isaías Caminha e Clara
dos Anjos.
08 – Como o texto descreve a
evolução da representação de personagens afrodescendentes na literatura
brasileira ao longo dos séculos?
Começando com
poucas representações e estereótipos, a representação evoluiu gradualmente para
incluir personagens mais complexos e historicamente relevantes.
09 – Qual é o papel do
movimento Quilombo hoje na literatura afro-brasileira?
O movimento
Quilombo hoje busca incentivar a reflexão e produção de uma literatura
comprometida com a valorização da cultura afro-brasileira, revelando novos
autores por meio dos Cadernos Negros.
10 – Como o texto caracteriza
o período entre o final do século XIX e o início do século XX em relação ao
interesse pela problemática racial na literatura brasileira?
O texto sugere
que foi um período de renovado interesse pelo problema racial, com autores como
Aluísio Azevedo, Adolfo Caminha e Lima Barreto abordando o preconceito racial
em suas obras.