Fábula: O Leão e o Rato
Millôr Fernandes
Depois que o Leão desistiu de comer o
Rato porque o Rato estava com espinho no pé (ou por desprezo, mas dá no mesmo),
e, posteriormente, o Rato, tendo encontrado o Leão envolvido numa rede de caça,
roeu a rede e salvou o Leão (por gratidão ou mineirice, já que tinha que
continuar a viver na mesma floresta), os dois, Rato e Leão, passaram a andar
sempre juntos, para estranheza dos outros habitantes da floresta (e das
fábulas). E como os tempos são tão duros nas florestas quanto nas cidades, e
como a poluição já devastou até mesmo as mais virgens das matas, eis que os
dois se encontraram, em certo momento, sem ter comido durante vários dias.
Disse o Leão:
– Nem um boi. Nem ao menos uma paca.
Nem sequer uma lebre. Nem mesmo uma borboleta, como hors-d’oeuvres de uma
futura refeição.
Caiu estatelado no chão, irado ao mais
fundo de sua alma leonina. E, do chão onde estava, lançou um olhar ao Rato que
o fez estremecer até a medula. “A amizade resistiria à fome?” – pensou ele. E,
sem ousar responder à própria pergunta, esgueirou-se pé ante pé e sumiu da
frente do amigo (?) faminto. Sumiu durante muito tempo. Quando voltou, o Leão
passeava em círculos, deitando fogo pelas narinas, com ódio da humanidade. Mas
o Rato vinha com algo capaz de aplacar a fome do ditador das selvas: um enorme
pedaço de queijo Gorgonzola que ninguém jamais poderá explicar onde conseguiu
(fábulas!). O Leão, ao ver o queijo, embora não fosse animal queijífero, lambeu
os beiços e exclamou:
– Maravilhoso, amigo, maravilhoso! Você é
uma das sete maravilhas! Comamos, comamos! Mas, antes, vamos repartir o queijo
com equanimidade. E como tenho receio de não resistir à minha natural
prepotência, e sendo ao mesmo tempo um democrata nato e confirmado, deixo a
você a tarefa ingrata de controlar o queijo com seus próprios e famélicos
instintos. Vamos, divida você, meu irmão! A parte do Rato para o Rato; para o
Leão, a parte do Leão.
A expressão ainda não existia naquela
época, mas o Rato percebeu que ela passaria a ter uma validade que os tempos
não mais apagariam. E dividiu o queijo como o Leão queria: uma parte do Rato,
outra parte do Leão. Isto é: deu o queijo todo ao Leão e ficou apenas com os
buracos. O Leão segurou com as patas o queijo todo e abocanhou um pedaço
enorme, não sem antes elogiar o Rato pelo seu alto critério:
– Muito bem, meu amigo. Isso é que se
chama partilha. Isso é que se chama justiça. Quando eu voltar ao poder,
entregarei sempre a você a partilha dos meus bens que me couberem no litígio
com os súditos. Você é um verdadeiro e egrégio meritíssimo! Não vai se
arrepender!
E o ratinho, morto de fome, riu o riso
menos amarelo que podia, e ainda lambeu o ar para o Leão pensar que lambia os
buracos do queijo, e enquanto lambia o ar, gritava, no mais forte que podiam
seus fracos pulmões:
– Longa vida ao Rei Leão! Longa vida ao
Rei Leão!
MORAL: Os ratos são iguaizinhos aos
homens.
Disponível em: http://www2.uol.com.br/millor/fabulas/067.htm.
Acesso em: 9 fev. 2015.
Fonte: Livro Língua
Portuguesa – Singular & Plural – 7° ano – Laura de Figueiredo – 2ª edição.
São Paulo, 2015 – Moderna. p. 163-5.
Entendendo a fábula:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Hors-d’oeuvres: prato leve e frio, servido antes da entrada ou do prato
principal.
·
Esgueirou-se: saiu às escondidas.
·
Equanimidade: equilíbrio, imparcialidade.
·
Famélicos: famintos.
·
Litígio: conflito de interesses.
·
Súditos: aquele que estão submetidos à vontade de uma autoridade.
·
Egrégio: magnífico.
·
Meritíssimo: juiz.
02 – Essa fábula daria
continuidade a que outra da tradição?
A do leão e do rato, contada por Esopo.
03 – A voz do narrador está
preocupada em recuperar exatamente o que acontecia na história original? O que
você observou para chegar a essa conclusão?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Não, como ela manifesta em certas passagens entre
parênteses, por exemplo: “(ou por desprezo, mas dá no mesmo”).
04 – Em nossa cultura,
muitos estereótipos são atribuídos às pessoas de diferentes estados e regiões.
O texto brinca com isso, ao dizer que talvez o rato tenha salvado o leão por
mineirice. O que seria a “mineirice”?
Mineirice, quer dizer que seria sujeitos
moderados, sempre agindo com cautela, para não se comprometerem.
05 – Como você interpretaria
a expressão “fábulas!”, no terceiro parágrafo?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Trata-se de certo deboche do narrador pelo absurdo de
aparecer um queijo caro em meio à floresta, acontecimento só possível no mundo
da imaginação.
06 – Localize no texto uma
referência que pode ser tomada como discurso crítico à ação do homem no meio
ambiente.
“E como a poluição já devastou até mesmo
as mais virgens das matas.”
07 – Releia: “– Nem um boi. Nem ao menos uma paca. Nem
sequer uma lebre. Nem mesmo uma borboleta, como hors-d’oeuvres de uma futura
refeição.”
a)
O que você percebe na enumeração dos animais:
há uma lógica na sequência dessa enumeração?
Sim, vai do maior ao menor animal.
b)
Que ideia é reforçada com esse jeito de
apresentar os animais na fala do leão?
A de falta absoluta de alimento.
c)
Por que o leão estava “com ódio da
humanidade”?
Ele culpa o ser humano, como já havia feito explicitamente o narrador,
pela falta de alimentos.
08 – Que parte do texto
poderia ser relacionada com a parábola bíblica?
A fala do leão ao rato: “A parte do rato
para o rato; para o leão, a parte do leão”.
a)
Com que possíveis intenções de sentido ela
foi usada pela personagem?
O leão quis lembrar ao rato que ele era o mais poderoso e, por isso,
mereceria a maior parte.
b)
Você acha que ao dar essa fala para a
personagem, o narrador reforça o que o leitor espera desse tipo? Por quê?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A fala da personagem reforça as
características e ações esperadas em relação ao que o leão representa no mundo
das fábulas: prepotência, abuso de autoridade, etc.
09 – Releia: “A expressão ainda não existia naquela
época, mas o Rato percebeu que ela passaria a ter uma validade que os tempos
não mais apagariam.”. Estabeleça relações com as informações do boxe
“Clipe”.
Clipe
Sem
correção da tabela, mordida do IR será maior
Acaba este ano o compromisso do governo
federal de corrigir a tabela do Imposto de Renda (IR) em 4,5% para repor as
perdas provocadas pela inflação [...]. Caso uma nova correção não seja definida
até o fim do ano, o trabalhador pagará mais IR em 2011. O pagamento de mais
imposto ocorre porque o contribuinte que teve aumento de renda poderá deixar de
ser isento ou subir de faixa de tributação e receber uma mordida maior do Leão.
Publicado em: 17 nov.
2010. Disponível em: http://blogs.estaadao.com.br/jt-seu-bolso/sem-correcao-da-tabela-mordida-do-ir-sera-maior/.
Acesso em: 2 fev. 2015. Fragmento.
a)
O que é imposto de renda?
O imposto que todo trabalhador precisa pagar sobre sua renda ou
salário.
b)
A notícia é favorável ao contribuinte, isto
é, ao trabalhador que paga os impostos?
Não, ela mostra que o contribuinte poderá pagar ainda mais impostos.
c)
Quem é o leão a que se refere a notícia?
O imposto de renda.
d)
Sabendo disso, que crítica pode estar
implícita na parte da fábula que você releu?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O texto permite pensar em nosso
próprio contexto, em que o leão ainda exige sua, bem grande, parte.
10 – Como você interpretaria
a moral da fábula?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O
rato precisou ceder a parte do leão para sobreviver, como fazem os cidadãos que
estão na economia ativa.
11 – Agora é a sua vez!
Pensando nas relações que o texto permite com a parábola e com a cobrança de
imposto de renda em nossa sociedade, invente outra moral para a fábula com foco
no leão.
Resposta pessoal
do aluno.