Crônica: Entrada Proibida
Adriana Falcão
A sala do coração tem muitas janelas e
duas portas, a que dá pra dentro e a que dá pra fora. A que dá pra dentro está
sempre aberta. A que dá pra fora vive trancada. Espalhadas pela sala, as
notícias do jornal de hoje, a bobagem dita ontem, o natal passado, o retrasado,
a mula sem cabeça, o banco imobiliário, uma febre, um sarampo, a enchente, o
cometa Harley, um São João, um Jeep amarelo, a foto do casamento, o nascimento
do filho, o velório da avó, a festa do tetra, a desesperança do mundo, a
expectativa do próximo fim de semana e outras tralhas, cada qual lá com sua
importância, vão acumulando poeira. Talvez se sintam meio tristes por estarem
virando memória, quadro, objeto na estante. Talvez se sintam felizes. Quem
sabe?
O coração tem muitos quartos. No
primeiro, logo o da frente, algumas lembranças dormem, umas riem, umas mentem,
outras doem. O bolo de aniversário dos seus oito anos, não o dos sete nem o dos
nove, o olhar azul da avó quando entrava na ambulância, o primeiro beijo, foi
na escada?, a primeira mão que desceu mais um pouquinho, o refrão daquela
música que um dia embalou o final do seu namoro e nunca, nunca mais vai tocar
no rádio, a primeira vez que, sem ninguém explicar, você juntou o nome à pessoa
e a palavra orgasmo (tirada de alguma matéria de revista) legendou seu
pensamento, uma cama laqueada com um estrado tão atento que no melhor da
história, por piada ou por recato, quase sempre desabava, aquele sapatinho de
bebê que só você sabe a cor exata e o exato pompom, o dia da derrota do seu
candidato, da sua ingenuidade, da sua felicidade, da sua ignorância, da
importância daquela pessoa, daquela outra, e daquela, especialmente, que um dia
já foi tanto, tanto, tanto.
O segundo quarto é meio escuro e faz
tempo que não recebe um vento. É ali que estão guardados, em caixas, caixinhas,
caixonas, envelopes, sacolas, pelos cantos, uns entulhos e uns tesouros. Quase
ninguém entrou nesse quarto, além de você, e mesmo você só entra lá muito de
vez em quando. Imagina só que perigo se deparar assim de repente com aquela
canção de ninar, um lápis de bandeirinhas mordido na ponta, o apontador verde,
o estojo, a máquina de escrever do escritório do seu pai, uma barraca colorida
de praia, o botão número três do elevador de um prédio antigo, o nome que você
fazia com letras de macarrão ou o formato exato da boca do dono desse nome, a
primeira desilusão, o primeiro desapego, a primeira devassa, uma tarde, numa
praia, uma certeza insistente, a vontade de que chegue amanhã, vai, amanhã,
chega logo, amanhã vai ser uma beleza.
O terceiro quarto permanece fechado de
dia e só se abre, certas noites, em alguns sonhos. Lá estão, entre outras
tantas, coisas que não fazem nenhum sentido aparente, pedaços, cheiros, fitas,
mofo, uma bacia de lata, um compacto simples, um cinzeiro laranja, uma mentira,
uma vergonha, um medo, um choro engolido, detalhes que nem você sabia que
existiam ainda, violentos assim, se é que eles ainda existem (o coração às
vezes também inventa um pouco).
O último quarto, no fim do corredor,
hoje em dia é só depósito. Um dragão imenso, parado na porta, tenta parecer
assustador uma vez que serve de vigia. Ou pensa que serve. Mal sabe ele que foi
tirado da fachada de um restaurante chinês, ou, na melhor das hipóteses, de uma
página de um livro de arte. Ninguém sabe até hoje o que tem dentro desse
quarto, nem você, nem a sua mãe, nem o seu psiquiatra. Enquanto o dragão fica
lá convicto de que você morre de medo dele, você continua convencido de que só
não entra ali pra não ter o trabalho de matar o coitado.
No banheiro, antigo e grande, tem uma
banheira que já foi oceano de bonecos, uma cortina de plástico, alguns
decalques (meio tortos) descascados nos azulejos, um bidé muito importante e
uma mania de comer pasta de dente escondido dos outros. Um biscoito que você
mordia cuidadosamente pelas bordas para preservar intacta a figura que tinha
dentro, (era uma árvore, parece), está guardado na cozinha do coração junto com
o cheiro do feijão da sua avó e a esperança de que estivessem fritando batatas.
O quintal está interditado. É campo
minado. É um perigo. Deve ser atávico. Ninguém precisa ter tido um quintal na
vida pra saber a alegria e a tristeza que podem causar uma cerca, um portão,
uma pedra, uma lagarta. Nunca visite o quintal do seu coração, não corra esse
risco, não cometa essa loucura, a não ser em caso de extrema necessidade ou em
dias de vento forte, raios, relâmpagos e muitas trovoadas. Se você por acaso
der de cara com você lá, brincando, bem contente, a sua vida pode virar uma
calamidade.
Entendendo a crônica:
01 – O que a autora descreve
como estando na "sala do coração"?
A sala do coração
contém muitas janelas e duas portas, com objetos, lembranças e experiências da
vida.
02 – O que a autora descreve
nos quartos do coração?
A autora descreve
que o coração tem vários quartos onde memórias, lembranças e experiências estão
guardadas, cada uma com suas peculiaridades.
03 – O que está no terceiro
quarto do coração, que permanece fechado durante o dia?
O terceiro quarto contém coisas que não
fazem sentido aparente, pedaços, cheiros, fitas, mofo, entre outras memórias
obscuras.
04 – Qual é o papel do dragão
na porta do último quarto do coração?
O dragão na porta
do último quarto é um elemento de proteção, embora seja apenas decorativo, e a
autora sugere que ninguém sabe o que está dentro desse quarto.
05 – O que a autora aconselha
sobre visitar o quintal do coração?
A autora
aconselha que o quintal do coração é um lugar perigoso e que as pessoas não
devem visitá-lo, a menos que seja absolutamente necessário ou em situações de
turbulência emocional.
06 – O que está guardado na
cozinha do coração, de acordo com a crônica?
Na cozinha do
coração, a autora menciona que estão guardados um biscoito com uma figura
dentro, o cheiro do feijão da avó e a esperança de que estivessem fritando
batatas.
07 – O que a crônica sugere
sobre as memórias e experiências guardadas no coração?
A crônica sugere
que as memórias e experiências guardadas no coração são variadas, algumas
felizes, outras dolorosas, e que cada uma delas possui um espaço específico nos
quartos do coração, muitas vezes trancados ou inacessíveis.