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quinta-feira, 3 de julho de 2025

CRÔNICA: PRIMEIRA CARTA - PAULO FREIRE - COM GABARITO

 Crônica: Primeira carta

               Paulo Freire

        Voltar-me sobre minha infância remota é um ato de curiosidade necessário.

        Quanto mais me volto sobre a infância distante, tanto mais descubro que tenho sempre algo a aprender dela. Dela e da adolescência difícil. É que não faço este retorno como quem se embala sentimentalmente numa saudade piegas ou como quem tenta apresentar a infância e a adolescência pouco fáceis como uma espécie de salvo-conduto revolucionário. Esta seria, de resto, uma pretensão ridícula.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEigacWfuYHbF0koV9NluOZGFjrNPBA4UhpEWULJ7wW94UV8tB0ajSqqzh0bm5TYor717kptvIRBpODj5BgTfJTIm8H9LqTSqbrUPNMAAzrYLTxZ0G2hjjNC2BiDQGLjkFH_v_zCw8hokPVUCavUwhPWXKZP3qcXopgyj0818CtIeg0FBvASnZOTsQl5oG4/s320/png-transparent-boy-child-infant-neonate-age-kindergarten-birth-mother.png 


        No meu caso, porém, as dificuldades que enfrentei, com minha família, na infância e na adolescência, forjaram em mim, ao contrário de uma postura acomodada diante do desafio, uma abertura curiosa e esperançosa diante do mundo, jamais me senti inclinado, mesmo quando me era ainda impossível compreender a origem de nossas dificuldades, a pensar que a vida era assim mesma, que o melhor a fazer diante dos obstáculos seria simplesmente aceitá-los como eram. Pelo contrário, em tenra idade, já pensava que o mundo teria de ser mudado. Que havia algo errado no mundo que não podia nem devia continuar. Talvez seja esta uma das positividades da negatividade do contexto real em que minha família se moveu. A de, submetido a certos rigores que outras crianças não sofriam, ter me tornado capaz de, pela comparação entre situações contrastantes, admitir que o mundo tivesse algo errado que precisava de conserto. Positividade que hoje veria em dois momentos significativos:

        * de, experimentando-me na carência, não ter caído no fatalismo;

        * de, nascido numa família de formação cristã, não ter me orientado rio sentido de aceitar a situação como sendo a expressão da vontade de Deus, entendendo, pelo contrário, que havia algo de errado no mundo e que este precisava de reparo.

        A minha posição, desde então, era a de otimismo crítico, isto é, a da esperança que inexiste fora do embate. Talvez venha daquela fase, a da infância remota, o hábito que me acompanha até hoje, o de entregar-me, de vez em quando, a um profundo recolhimento em mim mesmo, quase como se estivesse isolado do resto, das pessoas e das coisas que me cercam. Recolhido em mim mesmo, gosto de pensar, de me encontrar no jogo aparente de perder-me. Quase sempre me recolho assim, em indagações no sítio mais apropriado, meu gabinete de trabalho. Mas faço isso também em outros espaços e tempos.

        Assim, para mim, voltar-me, de vez em quando, sobre a infância remota é um ato de curiosidade necessário. Ao fazê-lo, tomo distância dela, objetivo-a, procurando a razão de ser dos fatos em que me envolvi e suas relações com a realidade social de que participei. Neste sentido é que a continuidade entre o menino de ontem e o homem de hoje se clarifica pelo esforço reflexivo que o homem de hoje exerce no sentido de compreender as formas como o menino de ontem, em suas relações no interior de sua família como na escola ou nas ruas, viveu a sua realidade. Mas, por outro lado, a experiência atribulada do menino de ontem e a atividade educativa, portanto, política, do homem de hoje não poderão ser compreendidas se tomadas como expressões de uma existência isolada, ainda quando não possamos negar a sua dimensão particular. Esta não é, porém, suficiente para explicar a significação mais profunda do meu quefazer. Experimentei-me, enquanto menino tanto quanto enquanto homem, socialmente e na história de uma sociedade dependente, participando, desde cedo, de sua terrível dramaticidade. Nesta, é bom sublinhar desde logo, é que se encontra a razão objetiva que explica a crescente radicalidade de minhas opções. Estariam equivocados, como de resto sempre estão, aquelas ou aqueles que procurassem ver nesta radicalidade, que jamais, porém, se alongou em sectarismo, a expressão traumática de um menino que se tivesse sentido desamado ou desesperadamente só.

        Desta forma, a minha radical rejeição à sociedade de classes, como uma sociedade necessariamente violenta, seria, para tais possíveis analistas, a maneira pela qual se estaria explicitando hoje o "desencontro" afetivo que eu teria vivido na infância.

        Na verdade, porém, não fui um menino desesperadamente só nem desamado. Jamais me senti ameaçado, sequer, pela dúvida em torno da afeição de meus pais entre si como de seu amor por nós, por meus irmãos, por minha irmã e por mim. E terá sido essa segurança o que nos ajudou a enfrentar, razoavelmente, o real problema que nos afligiu durante grande parte de minha infância e adolescência – o da fome. Fome real, concreta, sem data marcada para partir, mesmo que não tão rigorosa e agressiva quanto outras fomes que conhecia. De qualquer maneira, não a fome de quem faz operação de amígdalas ou a de quem faz dieta para ficar elegante. A nossa fome, pelo contrário, foi a que chegava sem pedir licença, a que se instala e se acomoda e vai ficando sem tempo certo para se despedir. Fome que, se não amenizada, como foi a nossa, vai tomando o corpo da gente, fazendo dele, às vezes, uma escultura arestosa, angulosa. Vai afinando as pernas, os braços, os dedos. Vai escavando as órbitas em que os olhos quase se perdem, como era a fome mais dura de muitos companheiros nossos e continua sendo a fome de milhões de brasileiros e brasileiras que dela morrem anualmente.

        Quantas vezes fui vencido por ela sem condições de resistir a sua força, a seus "ardis", enquanto procurava "fazer" os meus deveres escolares. Às vezes, me fazia dormir, debruçado sobre a mesa em que estudava, como se estivesse narcotizado. E quando, reagindo ao sono que me tentava dominar, escancarava os olhos que fixava com dificuldade sobre o texto de história ou de ciências naturais – “lições” de minha escola primária –, as palavras eram como se fossem pedaços de comida.

        Em outras ocasiões, à custa de tremendo esforço, me era possível realmente lê-las, uma a uma, mas nem sempre conseguia entender a significação do texto que elas compunham.

        Muito longe estava eu, naquela época, de participar de uma experiência educativa em que educandos e educadoras, enquanto leitores e leitoras, se soubessem produtores também da inteligência dos textos. Experiência educativa na qual a compreensão dos textos não estivesse depositada neles por seu autor ou autora à espera de que leitores a descobrissem. Entender um texto era sobretudo decorá-lo mecanicamente, e a capacidade de memoralizá-lo era vista como um sinal de inteligência. Quanto mais, então, me sentia incapaz de fazê-lo, tanto mais sofria pelo que me parecia ser a minha rudeza insuperável.

        Foi preciso que vivesse muitos momentos como aqueles, mas, sobretudo, que começasse a comer melhor e mais amiudadamente, a partir de certo tempo, para que percebesse que minha rudeza, afinal, não era tão grande quanto pensava. Ela era, pelo menos, menor do que a fome tanta que eu tinha.

        Anos mais tarde, como diretor da Divisão de Educação de uma instituição privada, no Recife, me seria fácil compreender quão difícil era para as meninas e meninos proletários, submetidos ao rigor de uma fome maior e mais sistemática do que a que eu tivera e sem nenhuma das vantagens de que desfrutara, como criança de classe média, alcançar um razoável índice de aprendizagem.

        Não precisava de consultar estudos científicos que tratassem das relações entre desnutrição e dificuldades de aprendizagem. Tinha um conhecimento de primeira mão, existencial, destas relações.

        Revia-me no perfil raquítico, nos olhos grandes e às vezes tristes, nos braços alongados, nas pernas finas de muitos deles. Neles, revia também alguns de meus companheiros de infância que, se vivos ainda hoje, possivelmente não lerão o livro que surgirá das cartas que lhe escrevo e não saberão que a eles agora me refiro com respeito e saudade. Toinho Morango, Baixa, Dourado, Reginaldo.

        Ao referir-me, porém, à relação entre condições concretas desfavoráveis e dificuldades de aprendizagem, devo deixar clara minha posição em face da questão. Em primeiro lugar, de maneira nenhuma aceito que estas condições sejam capazes de criar em quem as experimenta uma espécie de natureza incompatível com a capacidade de escolarização. O que vem ocorrendo é que, de modo geral, a escola autoritária e elitista que aí está não leva em consideração, na organização curricular e na maneira como trata os conteúdos programáticos, os saberes que vêm se gerando na cotidianidade dramática das classes sociais submetidas e exploradas. Passa-se por muito longe do fato de que as condições difíceis, por mais esmagadoras que sejam, geram nos e nas que as vivem saberes sem os quais não lhes seria possível sobreviver. No fundo, saberes e cultura das classes populares dominadas e que experimentam entre si níveis diferentes de exploração e de consciência da própria exploração. Saberes que, em última análise, são expressões de sua resistência.

        Estou convencido de que as dificuldades referidas diminuiriam se a escola levasse em consideração a cultura dos oprimidos, sua linguagem, sua forma de fazer contas, seu saber fragmentário do mundo de onde afinal transitariam até o saber mais sistematizado, que cabe à escola trabalhar. Obviamente, esta não é a tarefa a ser cumprida pela escola de classe dominante, mas tarefa para ser realizada na escola de classe dominante, entre nós, agora, por educadores e educadoras progressistas, que vivem a coerência entre seu discurso e sua prática.

        Muitas vezes, em minhas visitas constantes às escolas, quando conversava com uns e com outros e não apenas com as professoras, imaginava, de forma bastante realista, o quanto lhes estaria custando aprender suas lições, desafiados pela fome quantitativa e qualitativa que os consumia.

        Numa daquelas visitas, uma professora me falou, preocupada, de um deles. Discretamente, fez com que eu dirigisse minha atenção a uma figurinha miúda, que, num canto da sala, era como se estivesse ausente, distante do que se passava em seu redor. "Parte da manhã", disse ela, "ele leva dormindo. Seria uma violência acordá-lo, não acha? Que faço?"

        Pedrinho, soubemos mais tarde, era o terceiro filho de uma família numerosa. Seu pai, operário numa fábrica local, não ganhava o suficiente para oferecer à família um mínimo de condições materiais. Viviam em promiscuidade num mocambo precário. Pedrinho não apenas quase nada comia, mas também tinha de trabalhar para ajudar a sobrevivência da família. Vendia frutas pelas ruas, fazia mandados, carregava fretes na feira popular de seu bairro.

        A escola era, para ele, em última análise, um parêntese, um espaço-tempo em que repousava de sua canseira diária. Pedrinho não era uma exceção e havia situações piores que a dele. Mais dramáticas ainda.

        Ao olhá-los, ao conversar com eles e com elas, recordava o que também representara para mim estudar com fome. Lembrava-me do tempo que gastava dizendo e redizendo, olhos fechados, cadernos nas mãos: Inglaterra, capital Londres, França, capital Paris. Inglaterra, capital Londres. "Repete, repete que tu aprendes", era a sugestão mais ou menos generalizada no meu tempo de menino. Como aprender, porém, se a única geografia possível era a geografia de minha fome? A geografia dos quintais alheios, das fruteiras – mangueiras, jaqueiras, cajueiros, pitangueiras –, geografia que Temístocles – meu irmão imediatamente mais velho do que eu -e eu sabíamos, aquela sim, de cor, palmo a palmo. Conhecíamos os seus segredos e na memória tínhamos os caminhos mais fáceis que nos levavam às fruteiras melhores.

        Conhecíamos os lugares mais seguros, onde, cuidadosamente, entre folhas secas, acolhedoras, mornas, escondíamos as bananas que tirávamos ainda "em vez" e que assim "agasalhadas" amadureciam "resguardadas" de outras fomes, como, sobretudo, do "direito de propriedade" dos donos dos quintais.

        Um desses donos de quintais me flagrou um dia, manhã cedo, tentando furtar um lindo mamão em seu quintal. Apareceu inesperadamente em frente a mim, sem que eu tivesse tido a oportunidade de fugir. Devo ter empalidecido. A surpresa me desconcertou. Não sabia o que fazer de minhas mãos trêmulas, das quais mecanicamente tombou o mamão. Não sabia o que fazer do corpo todo – se ficava empertigado, se ficava relaxado, em face da figura sisuda e rígida, toda ela expressão de uma dura censura a meu ato.

        Apanhando a fruta, tão necessária a mim naquele instante, de forma significativamente possessiva, o homem me fez um sermão moralista que não tinha nada que ver com minha fome.

        Sem dizer palavra – sim, não, desculpe ou até logo – deixei o quintal e fui andando sumido, diminuído, achatado, para casa, metido na mais fundo de mim mesmo. O que eu queria naquele instante era um lugar em que nem eu mesmo pudesse me ver.

        Muitos anos depois, em circunstância distinta, experimentei novamente a estranha sensação de não saber o que fazer das mãos, do corpo todo: "Capitão, mais um passarinho pra gaiola", disse, debochadamente, no "corpo da guarda" de um quartel do Exército no Recife, depois do golpe de estado de 1° de abril de 1964, o polícia que me trouxera preso de casa. Os dois, o policial e o capitão, com riso desdenhoso e irônico, me olhavam a mim; em pé, frente a eles, sem saber de novo o que fazer de minhas mãos, de meu corpo todo.

        Uma coisa eu sabia – naquela vez não havia furtado nenhum mamão.

        Já não me lembro do que me terão "ensinado" na escola, no dia daquela manhã em que fui flagrado com o mamão do vizinho na mão. O que sei é que, se foi difícil resolver, na escola, certos problemas de aritmética, nenhuma dificuldade tive em aprender a calcular o tempo necessário para que as bananas amadurecessem em função do momento de maturação em que se encontravam quando as "agasalhávamos" em nossos secretos esconderijos.

        A nossa geografia imediata era, sem dúvida, para nós, não só uma geografia demasiado concreta, se posso falar assim, mas tinha um sentido especial. Nela se interpenetravam dois mundos, que vivíamos intensamente. O mundo do brinquedo em que, meninos, jogávamos futebol, nadávamos em rio, empinávamos papagaio e o mundo em que, enquanto meninos, éramos, porém, homens antecipados, às voltas com a nossa fome e a fome dos nossos.

        Tivemos companheiros em ambos esses mundos, entre os quais, porém, alguns jamais souberam, existencialmente, o que significava passar todo um dia a um pedaço de pão, a uma xícara de café, a um pouco de feijão com arroz, ou buscar, pelos quintais alheios, uma fruta disponível. E mesmo quando, entre eles, alguns participavam conosco de arremetidas a quintais alheios, o faziam por diferentes razões: por solidariedade ou pelo gosto da aventura. Em nosso caso, havia algo mais vital – a fome a amainar. Isto não significava, todavia, que não houvesse em nós também, ao lado da necessidade que nos movia, o prazer da aventura. No fundo, vivíamos, como já salientei, uma radical ambiguidade: éramos meninos antecipados em gente grande. A nossa meninice ficava espremida entre o brinquedo e o "trabalho", entre a liberdade e a necessidade.

        Aos onze anos eu tinha ciência das precárias condições financeiras da família mas não tinha como acudi-la através de um trabalho qualquer. Assim como meu pai não podia prescindir da gravata, que, mais do que pura expressão da moda masculina, era representação de classe, não podia permitir que eu, por exemplo, trabalhasse na feira semanal, carregando pacotes ou fosse serviçal de alguma casa.

        Nas sociedades altamente desenvolvidas é que membros da classe média podem, sobretudo em momentos difíceis, realizar tarefas consideradas subalternas sem que isto signifique ameaça ou real perda de status.

Paulo Freire.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 158-162.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o propósito do autor ao revisitar sua infância remota na crônica?

      O autor revisita sua infância remota como um ato de curiosidade necessário, buscando aprender com as dificuldades enfrentadas e compreender como elas forjaram sua postura curiosa e esperançosa diante do mundo, além de entender a origem de suas opções radicais e sua relação com a realidade social.

02 – Como as dificuldades da infância e adolescência moldaram a visão de mundo do autor?

      As dificuldades, em vez de levarem a uma postura acomodada, forjaram no autor uma abertura curiosa e esperançosa diante do mundo. Ele jamais aceitou que a vida "era assim mesmo" e, desde cedo, pensou que o mundo "teria de ser mudado", desenvolvendo um otimismo crítico e uma esperança que só existe no embate.

03 – O que o autor destaca como "positividades da negatividade" de seu contexto familiar e social?

      Ele destaca duas positividades: primeiro, não ter caído no fatalismo apesar de experimentar a carência; segundo, apesar de uma formação cristã, não ter aceitado a situação como vontade de Deus, mas sim ter entendido que havia algo errado no mundo que precisava de reparo.

04 – Qual foi o "problema real" que afligiu a família do autor durante grande parte de sua infância e adolescência?

      O problema real que afligiu a família do autor foi a fome, descrita como "real, concreta, sem data marcada para partir", que se instalava e permanecia, afetando fisicamente as pessoas.

05 – Como a fome afetava o desempenho escolar do jovem Paulo Freire?

      A fome o vencia "sem condições de resistir", fazendo-o dormir debruçado sobre os deveres escolares como se estivesse narcotizado. Mesmo quando conseguia ler, as palavras eram como "pedaços de comida", e ele tinha dificuldades em entender o significado dos textos, sentindo-se "rude" por não conseguir decorar mecanicamente.

06 – Qual é a principal crítica de Paulo Freire à escola "autoritária e elitista" em relação às crianças das classes populares?

      Sua principal crítica é que essa escola não leva em consideração os saberes que se geram na cotidianidade dramática das classes sociais submetidas e exploradas. Ela desconsidera a cultura, a linguagem e a forma de pensar dessas crianças, que são essenciais para sua sobrevivência e que deveriam ser a base para transitar para o saber mais sistematizado.

07 – O que representa o episódio em que o autor foi flagrado tentando furtar um mamão e como ele o compara a uma experiência posterior?

      O episódio do mamão representa a humilhação e a sensação de impotência diante da fome. O sermão moralista do dono do quintal, que ignorava sua real necessidade, o fez sentir-se "sumido, diminuído, achatado". Ele compara essa sensação àquela vivida anos depois, ao ser preso após o golpe de 1964, onde novamente se viu sem saber o que fazer do corpo, mas com a consciência de que, desta vez, "não havia furtado nenhum mamão", ou seja, não havia uma "justificativa" tão visceral para sua situação.

 

domingo, 10 de março de 2019

TEXTO: O ATO DE ESTUDAR - PAULO FREIRE - COM QUESTÕES GABARITADAS

Texto: O ato de estudar
         Paulo Freire

        Tinha chovido muito toda noite. Havia enormes poças de água molhada nas partes baixas do terreno. Em certos lugares, a terra, de tão molhada, tinha virado lama. Às vezes, os pés apenas escorregavam nela. Às vezes, mais do que escorregar, os pés se atolavam na lama até acima dos tornozelos. Era difícil andar. Pedro e Antônio estavam transportando numa caminhoneta cestos cheios de cacau para o sitio onde deveriam secar. Em certa altura, perceberam que a caminhoneta não atravessaria o atoleiro que tinha pela frente. Passaram. Desceram da caminhoneta. Olharam o atoleiro, que era um problema para eles. Atravessaram os dois metros de lama, defendidos por suas botas de cano longo. Sentiram a espessura do lamaçal. Pensaram. Discutiram como resolver o problema. Depois, com a ajuda de algumas pedras e de galhos secos de árvores deram ao terreno a consistência mínima para que as rodas da caminhoneta passassem sem atolar. Pedro e Antônio estudaram. Procuraram resolver e, em seguida, encontraram uma resposta precisa.
        Não se estuda apenas na escola.
        Pedro e Antônio estudaram enquanto trabalhavam.
        Estudar é assumir uma atitude séria e curiosa diante de um problema.
        Esta atitude séria e curiosa na procura de compreender as coisas e os fatos caracteriza o ato de estudar. Não importa que o estudo seja feito no momento e no lugar do nosso trabalho, como no caso de Pedro e Antônio, que acabamos de ver. Não importa que o estudo seja feito noutro local e noutro momento, como o estudo que fazemos no Círculo de Cultura. Em qualquer caso, o estudo exige sempre esta atitude séria e curiosa na procura de compreender as coisas e os fatos que observamos. Um texto para ser lido é um texto para ser estudado. Um texto para ser estudado é um texto para ser interpretado. Não podemos interpretar um texto se o lemos sem atenção, sem curiosidade; se desistimos da leitura quando encontramos a primeira dificuldade. Que seria da produção de cacau naquela roça se Pedro e Antônio tivessem desistido de prosseguir o trabalho por causa do lamaçal?
        Se um texto às vezes é difícil, insiste em compreendê-lo. Trabalha sobre ele como Antônio e Pedro trabalharam em relação ao problema do lamaçal. Estudar exige disciplina. Estudar não é fácil porque estudar é criar e recriar e não repetir o que os outros dizem. Estudar é um dever revolucionário!

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler.  São Paulo: Cortez, 2001. p.57-58.
Entendendo o texto:

01 – Identifique a finalidade do texto lido:
      O texto de Paulo Freire trata da importância do ato de estudar, tomando como ponto de partida uma situação de trabalho. Ele ressalta que o referido ato é desafiador, visto que pressupõe a disciplina e o olhar diferenciado. Em outras palavras, é criar e recriar.  

02 – Registra-se uma opinião na passagem:
a) “Tinha chovido muito toda noite.”
b) “Era difícil andar.”
c) “Procuraram resolver e, em seguida, encontraram uma resposta precisa.”
d) “Estudar é assumir uma atitude séria e curiosa diante de um problema.”

03 – “Se um texto às vezes é difícil, insiste em compreendê-lo. Trabalha sobre ele como Antônio e Pedro trabalharam em relação ao problema do lamaçal.”. Nesse segmento, os verbos sublinhados expressam:
a) uma ordem
b) um desejo
c) uma orientação
d) uma advertência

04 – “Havia enormes poças de água molhada nas partes baixas do terreno.”. Por que o verbo “havia” foi empregado no singular nesse trecho?
      Porque o verbo “haver”, quando sinônimo de “existir” (como é o caso dessa oração) ou “acontecer” é impessoal, isto é, não tem sujeito e, por isso, sempre se flexiona no singular.

05 – Em “Estudar não é fácil porque estudar é criar e recriar e não repetir o que os outros dizem.”, o termo destacado introduz:
a) uma comparação
b) uma explicação
c) uma oposição
d) uma conclusão

06 – Em todas as alternativas, os termos grifados indicam a ideia de tempo, exceto em:
a) “Às vezes, os pés apenas escorregavam nela.”.
b) “Depois, com a ajuda de algumas pedras e de galhos secos de árvores deram ao terreno […]”
c) “Pedro e Antônio estudaram enquanto
d) “Esta atitude séria e curiosa na procura de compreender as coisas e os fatos caracteriza […]”


domingo, 19 de agosto de 2018

POESIA: A ESCOLA - PAULO FREIRE - COM GABARITO

Poesia: A Escola
          Paulo Freire


Escola é     
... o lugar que se faz amigos.
Não se trata só de prédios, salas, quadros,
Programas, horários, conceitos...
Escola é sobretudo, gente.
Gente que trabalha, que estuda
Que alegra, se conhece, se estima.

O Diretor é gente,
O coordenador é gente,
O professor é gente,
O aluno é gente,
Cada funcionário é gente.

E a escola será cada vez melhor
Na medida em que cada um se comporte
Como colega, amigo, irmão.
Nada de “ilha cercada de gente por todos os lados”
Nada de conviver com as pessoas e depois,
Descobrir que não tem amizade a ninguém.
Nada de ser como tijolo que forma a parede, Indiferente, frio, só.

Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar,
É também criar laços de amizade, É criar ambiente de camaradagem,
É conviver, é se “amarrar nela”!

Ora é lógico...
Numa escola assim vai ser fácil! Estudar, trabalhar, crescer,
Fazer amigos, educar-se, ser feliz.
É por aqui que podemos começar a melhorar o mundo.

                                               Paulo Freire. Poesia do educador.

Entendendo a poesia:
01 – O que é a escola para você?
      Resposta pessoal do aluno.

02 – De acordo com a poesia, o que é a escola?
      Escola é o lugar onde se faz amigos.

03 – Quem o autor da poesia diz que é gente na escola?
      O diretor, o coordenador, o educador, o aluno e cada um dos funcionários da escola.

04 – Paulo Freire, autor da poesia, diz que a escola poderá ser melhor. Qual é a condição necessária para isso, na opinião dele?
      O comportamento de cada um como colega, amigo ou irmão.

05 – O autor da poesia diz também que o importante não é só estudar. O que ele quis dizer com isso?
      Que é preciso, além de estudar, criar laços de amizade, um ambiente de camaradagem, uma boa convivência para que todos “se amarrem” na escola.

06 – De acordo com a poesia, o que fica mais fácil fazer na escola?
      Estudar, trabalhar, crescer, fazer amigos, educar-se, ser feliz.

07 – Você concorda com o que Paulo Freire diz em sua poesia? Justifique sua resposta.
      Resposta pessoal do aluno.

08 – O que você está fazendo para ser feliz na escola?
      Resposta pessoal do aluno.
        

segunda-feira, 30 de abril de 2018

RELATO DE MEMÓRIA: EM ALGUM LUGAR DO PASSADO(QUE SAUDADE DA PROFESSORINHA)- PAULO FREIRE - COM GABARITO


RELATO: EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

          Um olhar, um carinho, uma palavra amiga... Às vezes, pequenos gestos podem marcar vidas, provocar descobertas, selar destinos. Em algum lugar do passado, está um pouco de nós, está aquilo que deu origem ao ser que somos hoje. Que pessoas teriam iluminado nossos caminhos? Que palavras nos teriam despertado e desafiado para a viagem que se iniciava?

        QUE SAUDADE DA PROFESSORINHA

         A primeira presença em meu aprendizado escolar que me causou impacto, e causa até hoje, foi uma jovem professorinha. É claro que eu uso esse termo, professorinha, com muito afeto. Chamava-se Eunice Vasconcelos, e foi com ela que eu aprendi a fazer o que ela chamava de “sentenças”.
         Eu já sabia ler e escrever quando cheguei à escolinha particular de Eunice, aos 6 anos. Era, portanto, a década de 20. Eu havia sido alfabetizado em casa, por minha mãe e meu pai, durante uma infância marcada por dificuldades financeiras, mas também por muita harmonia familiar. Minha alfabetização não me foi nada enfadonha, porque partiu de palavras e frases ligadas à minha experiência, escritas com gravetos no chão de terra do quintal.
         Não houve ruptura alguma entre o novo mundo que era a escolinha de Eunice e o mundo das minhas primeiras experiências – o de minha velha casa do Recife, onde nasci, com suas salas, seu terraço, seu quintal cheio de árvores frondosas. A minha alegria de viver, que me marca até hoje, se transferia de casa para a escola, ainda que cada uma tivesse suas características especiais. Isso porque a escola de Eunice não me amedrontava, não tolhia minha curiosidade.
         Quando Eunice me ensinou era uma meninota, uma jovenzinha de seus 16, 17 anos. Sem que eu ainda percebesse, ela me fez o primeiro chamamento com relação a uma indiscutível amorosidade que eu tenho até hoje, e desde há muito tempo, pelos problemas da linguagem e particularmente os da linguagem brasileira, a chamada língua portuguesa no Brasil. Ela com certeza não me disse, mas é como se tivesse dito a mim, ainda criança pequena: “Paulo, repara bem como é bonita a maneira que a gente tem de falar! ...” É como se ela me tivesse chamado.
         Eu me entregava com prazer à tarefa de “Formar sentenças”. Era assim que ela costumava dizer. Eunice me pedia que colocasse numa folha de papel tantas palavras quantas eu conhecesse. Eu ia dando forma às sentenças com essas palavras que eu escolhia e escrevia.
         Fui criando naturalmente uma intimidade e um gosto com as ocorrências da língua – os verbos, seus modos, seus tempos... A professorinha só intervinha quando eu me via em dificuldade, mas nunca teve a preocupação de me fazer decorar regras gramaticais.
         Mais tarde ficamos amigos. Mantive um contato próximo com ela, sua família, sua irmã Débora, até o golpe de 1964. Eu fui para o exílio e, de lá, me correspondia com Eunice. Tenho impressão de que durante dois anos ou três mandei cartas para ela. Eunice ficava muito contente.
        Não se casou talvez isso tenha alguma relação com a abnegação, a amorosidade que a gente tem pela docência. E talvez ela tenha agido um pouco como eu: ao fazer a docência o meio da minha vida, eu termino transformando a docência no fim da minha vida.
        Eunice foi professora do Estado, se aposentou, levou uma vida bem normal. Depois morreu, em 1977, eu ainda no exílio. Hoje, a presença dela são saudades, são lembranças vivas. Me faz até lembrar daquela música antiga, do Ataulfo Alves: “Ai, que saudade da professorinha, que me ensinou o bê-á-bá”.

                                                              Paulo Freire. Nova Escola, n° 81.

 Entendendo o texto:
01 – No texto lido, o autor, Paulo Freire, relata um episódio marcante de sua vida. Qual foi esse episódio?
       O momento em que foi para a escola e teve contato com sua professora.

02 – Um momento difícil para muitas crianças é a passagem da casa para a escola.
     a) Como foi esse momento para o menino Paulo Freire?
      Foi tranquilo sem ruptura; a escola era uma espécie de continuidade da asa.

     b)  Por que esse processo aconteceu desse modo?
      Porque a escola não tolhia a curiosidade dele. Além disso, o fato de ele já saber ler pode ter ajudado a tornar esse processo natural.

03 – Quando Paulo Freire entrou na escola, com 6 anos, já sabia ler e escrever. Apesar disso, nunca esqueceu as lições que teve com sua primeira professora.
     a) O que ele aprendeu com ela? Como era feito esse trabalho?
      Aprendeu a formar sentenças. Ele escrevia no papel as palavras que conhecia e depois, com elas, formava sentenças.

     b) Que curiosidade a professora despertou no menino?
      Despertou a curiosidade sobre a língua portuguesa.

     c) Como ela agia em relação a conteúdos gramaticais?
      Ela não ensinava regras; interferia apenas quando o menino precisava de auxílio.

04 – A professora Eunice não se casou. Para Paulo Freire, isso provavelmente se deveu à dedicação ao magistério. Ele diz: “E talvez ela tenha agido um pouco como eu: ao fazer a docência o meio da minha vida, eu termino transformando a docência no fim da minha vida”.
     a) O que significa, no contexto, a docência como meio de vida?
      Dar aulas para viver; ter um emprego, um salário, etc.

     b)  E como fim?
      A finalidade, o motivo principal de viver.

05 – Ao relatarmos fatos do passado, é natural que aflorem alguns sentimentos. Que sentimentos afloram no relato de Paulo Freire? Comprove sua resposta com um trecho do texto.
       Saudades, conforme o trecho “a presença dela são saudades”.

06 – Paulo Freire ficou conhecido internacionalmente pelo método de alfabetização que inventou. Diferentemente de criadores de outros métodos, que às vezes tratam de assuntos que nada têm a ver com o educando, Paulo Freire propõe, em um de seus livros: Essa proposta de alfabetização está relacionada com as primeiras experiências de Paulo Freire no mundo da leitura e da escrita? Justifique sua resposta.
       Sim, pois as sentenças que escrevia eram criadas por ele, a partir das palavras que ele próprio registrava no papel. Professor: comente com os alunos que, ao alfabetizar adultos, Paulo Freire propunha que as palavras e frases usadas na alfabetização nascessem da própria experiência deles. Assim, palavras como tijolo, construção, lavoura, milho, entre outras, eram as ferramentas de trabalho dos professores.