Crônica: Passem todos para o “bolo”!
Viriato Corrêa
Em meados de fevereiro a frequência à
escola começou a diminuir. E quando março entrou, com as suas imensas cargas d’água,
não passavam de doze ou quinze os meninos que compareciam às aulas.
O velho João Ricardo cada vez ficava
mais mal-humorado. E, ao lançar os olhos para os bancos vazios, resmungava
ameaçadoramente:
— Que luxo é esse? Porque chove mais um
pouquinho ninguém sai de casa! Eu acabo tomando medidas rigorosas.
Depois, com dois ou três pigarros de
asmático, se sentava, repetindo:
— Escola é escola! Não é pilhéria, não
é brincadeira!
Não era por brincadeira que os alunos
não iam às aulas, mas pelos obstáculos das enchentes naquela aguda quadra das
chuvas.
No Norte, a estação das águas, que o
povo chama de inverno, apresenta aspectos que vão da alegria ao desespero.
É em dezembro que começa a chover.
Antes disso o que existe é o inferno do
calor que arruína os homens e as coisas.
Os campos estão secos; os morros,
tristes; não há viço no arvoredo e as fontes têm um ar de pobreza e de velhice.
Parece que a natureza está cansada de
viver. A alegria desaparece de toda a parte. Há lugares em que não se encontra,
sequer, uma folha verde.
As primeiras chuvas caem quando
novembro vai terminando. E imediatamente se produz o milagre da ressurreição.
Em três semanas tudo fica verde e fica novo.
É a primavera matuta.
A terra, como que atingida pela varinha
de condão de alguma fada, floresce maravilhosamente. Ê flor em tapete nos
campos; flor em ramalhete nas árvores; flor em grinaldas nos cipós. Tem-se a
impressão surpreendente de que as plantas que vão nascendo já nascem floridas.
Mas as chuvas continuam a desabar.
Em janeiro, não se vê a cara do sol. Em
meados de fevereiro, os riachos e os rios começam a transbordar arruinadoramente.
Todo aquele esplendor de natureza, que
dava a ideia de milagre, desaparece em poucos dias.
Em março os campos estão alagados.
Basta que chova três dias seguidos para que ninguém possa atravessar os
caminhos. É a inundação inquietadora que vem ameaçando com o seu cortejo de
desgraças.
Naquele ano, março entrou mais rigoroso
que nos anteriores. Chovia semanas inteiras, de manhã à noite.
Os caminhos estavam debaixo d’água.
A escola, dia a dia, tornava-se
deserta.
A maioria dos alunos era dos arredores,
alguns de dois, três, até quatro quilômetros distantes. Se saíssem de casa, com
os caminhos inundados, corriam até perigo de vida.
Só nós, ali da povoação, podíamos
comparecer às aulas e, assim mesmo, molhadinhos e com as chinelas ou os sapatos
encharcados.
O professor tornava-se cada vez mais
áspero, mais azedo, mais ameaçador. E dizia repentinamente, no meio da sala
quase deserta:
— Eu não me canso de prevenir. Escola é
coisa séria. Eu acabo tomando medidas rigorosas.
Um dia, a chuva começou a cair de
madrugada. Chuva brutal, dessas que paralisam o trabalho e impedem a gente de
sair de casa.
Quase ninguém pôde ir à escola. Éramos
seis meninos apenas.
O Adão, que chegou por último, entrou
assustado, descalço, as chinelas metidas nos dedos. O Doca troçou:
— Xi! O Adão está com uma cara! O outro
sentou-se.
— A minha cara, a minha cara! Cara traz
o professor, que não tarda aí. Passei por ele.
Minutos depois, o velho João Ricardo
entrava debaixo de um grande guarda-chuva. Não se sentou como de costume. Em
pé, junto à grande mesa, lançou os olhos pela sala, contando:
— Um, dois, três, quatro, cinco, seis.
Só seis? Então porque chove, ninguém vem à escola?
E empunhando a palmatória:
— Passem todos para o "bolo"!
Viriato
Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.
Entendendo a crônica:
01 – Por que a frequência à
escola começou a diminuir em meados de fevereiro?
A frequência à
escola diminuiu devido aos obstáculos das enchentes durante a quadra das
chuvas.
02 – Como o velho João Ricardo
reagia diante da baixa presença dos alunos?
O velho João
Ricardo ficava mal-humorado e resmungava ameaçadoramente. Ele ameaçava tomar
medidas rigorosas e enfatizava a seriedade da escola.
03 – O que caracteriza a
estação das águas, também conhecida como inverno, no Norte?
A estação das
águas, que o povo chama de inverno, no Norte apresenta aspectos que vão da
alegria ao desespero, começando em dezembro com chuvas intensas.
04 – Como a natureza reage ao
início das chuvas em novembro na região descrita na crônica?
A natureza reage com um milagre da ressurreição,
transformando-se em poucas semanas, com campos verdes, árvores florescendo e um
novo vigor.
05 – Como é descrito o período
de janeiro na região afetada pelas chuvas?
Em janeiro, não
se vê a cara do sol, indicando um período chuvoso persistente.
06 – Quais eram os desafios
enfrentados pelos alunos que moravam nos arredores durante as chuvas em março?
Os caminhos
estavam alagados, tornando perigoso para os alunos que moravam a alguns
quilômetros de distância comparecerem às aulas.
07 – O que aconteceu quando a
chuva foi particularmente intensa, deixando apenas seis alunos na escola?
Diante da baixa
presença, o velho João Ricardo, empunhando a palmatória, ordenou: "Passem
todos para o 'bolo'!", indicando uma ação disciplinar a ser tomada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário