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segunda-feira, 19 de agosto de 2024

CRÔNICA: BAILES E DIVERTIMENTOS SUBURBANOS - (FRAGMENTO) - LIMA BARRETO - COM GABARITO

 Crônica: Bailes e divertimentos suburbanos – Fragmento

              Lima Barreto

        Há dias, na minha vizinhança, quase em frente à minha casa, houve um baile. Como tinha passado um mês enfurnado na minha modesta residência, que para enfezar Copacabana denominei "Vila Quilombo", pude perceber todos os preparativos da festa doméstica: a matança de leitões, as entradas das caixas de doces, a ida dos assados para a padaria, etc.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhxm5j6FqUenOfUoiBCZUQq5rB9wE8wP4u3-Lk7SGq8iLVgY0WC7itUbCmWR69PNDBXfbvtOUhpe5UKoNF7x0ugVWw_SSUjZ7cxa0prmVxQhizPxL8Z8efbAJUdpJ1eX-Q656xZTH_0hK8xkJuXMuHtZZPnGJqJAMevopeIKlwHIzFUoNkY8V46_uCcB4o/s1600/bAILES.jpg


        Na noite do baile, fui deitar-me cedo, como sempre faço quando me resolvo a descansar a sério. Às 9 horas, por aí assim, estava dormindo a sono solto. O baile já havia começado e ainda com algumas polcas repinicadas ao piano. Às 2 e meia, interrompi o sono e estive acordado até às 4 da madrugada, quando acabou o sarau. A não ser umas barcarolas cantadas em italiano, não ouvi outra espécie de música, a não ser polcas adoidadas e violentamente sincopadas, durante todo esse tempo.

        O dia veio se fazer inteiramente. Levantei-me da cama e, dentro em breve, tomava o café matinal em companhia de meus irmãos.

        Perguntei a minha irmã, provocado pela monótona musicaria do baile da vizinhança, se nos dias presentes não se dançavam mais valsas, mazurcas, quadrilhas ou quadras, etc. Justifiquei-lhe o motivo da pergunta.

        — Qual! – disse-me ela. – Não se gosta mais disso... O que apreciam os dançarmos de hoje, são músicas apolcadas, tocadas "a la diable", que servem para dançar o tango, fox-trot, rang-time, e...

        — "Cake-walk"? – perguntei.

        — Ainda não se dança, ou já se dançou; mas agora, está aparecendo um tal de "shimmy".

        [...] O baile, não sei se é, era ou foi, uma instituição nacional, mas tenho certeza de que era profundamente carioca, especialmente suburbano.

        Na escolha da casa, presidia sempre a capacidade da sala de visitas para a comemoração coreográfica das datas festivas da família. Os construtores das casas já sabiam disso e sacrificavam o resto da habitação à sala nobre. Houve quem dissesse que nós fazíamos casa, ou as tínhamos para os outros, porque a melhor peça dela era destinada a estranhos.

        Hoje, porém, as casas minguam em geral, e especialmente, na capacidade dos seus aposentos e cômodos. [...] Isto acontece com as famílias remediadas; com as verdadeiramente pobres, a coisa piora. Ou moram em cômodos ou em casitas de avenidas, que são um pouco mais amplas do que a gaiola dos passarinhos.

        [...]

        Quando fui morar naquelas paragens não havia noite em que voltando tarde para casa, não topasse no caminho com um baile, com um chôro, como se dizia na gíria do tempo. Havia famílias que davam um por mês, fora os extraordinários, e havia também cavalheiros e damas que não faltavam a eles, além de irem a outros de famílias diferentes.

        Eram célebres nos subúrbios, certos rapazes e moças, como tipos de dançarinos domésticos. Conheci alguns, e ouvi muitos falar neles. Lembro-me bem, dentre eles, de uma moça que, às vezes, atualmente ainda encontro, [...]. Chamavam-na Santinha, e tinha uma notoriedade digna de um poeta de "Amor" ou de um gatimanhas de cinematógrafo. [...] A sua especialidade estava na valsa americana que dançava como ninguém. Não desdenhava as outras contradanças, mas a valsa era a sua especialidade. Dos trezentos e sessenta e cinco dias do ano, só nos dias de luto da semana santa e no de finados, não dançava. Em todos os mais, Santinha valsava até de madrugada. [...]

        [...]

        Nesses bailes suburbanos, o mártir era o dono da casa: Seu Nepomuceno começava por não conhecer mais da metade da gente que, transitoriamente, abrigava, porque Cacilda trazia Nenê e esta o irmão que era namorado daquela – a única cuja família tinha relações com a do Seu Nepomuceno; e, assim, a casa se enchia de desconhecidos. Além destes subconvidados, ainda existiam os penetras. Chamava-se assim certos rapazes que, sem nenhuma espécie de convite, usavam deste ou daquele truque, para entrar nos bailes – penetrar.

        Em geral, apesar da multidão dos convidados, essas festas domésticas tinham um grande cunho de honestidade e respeito. Eram raros os excessos e as danças, com o intervalo de um hora, para uma ceia modesta, se prolongavam até o clarear do dia sem que o mais arguto do sereno pudesse notar uma discrepância nas atitudes dos pares, dançando ou não. Sereno, era chamado o agrupamento de curiosos que ficavam na rua a espiar o baile. Quase sempre era formado de pessoas das vizinhanças e outras que não haviam sido convidadas e lá se postavam para ter assunto em que baseassem a sua despeitada crítica.

        [...]

        Sem receio de errar, entretanto, pode-se dizer que o baile familiar e burguês, democrático e efusivo, está fora da moda, nos subúrbios. A carestia da vida, a exiguidade das casas atuais e a imitação da alta burguesia desfiguraram-no muito e tendem a extingui-lo.

        [...]

        Uma outra diversão que, antigamente, os suburbanos apreciavam muito e hoje está quase morta, era a do teatrinho de amadores. Quase todas as estações tinham mantido um Clube. O do Riachuelo, teve a sua meia hora de celebridade; possuía um edifício de razoáveis proporções; mas desapareceu, e, atualmente, foi transformado em escola municipal. O que havia de característico na vida suburbana, em matéria de diversão, pouco ou quase nada existe mais. O cinema absorveu todas elas e, pondo de parte o Mafuá semi-eclesiástico, é o maior divertimento popular da gente suburbana.

        [...]

        O futebol flagela também aquelas paragens como faz ao Rio de Janeiro inteiro. Os clubes pululam e os há em cada terreno baldio de certa extensão.

        Nunca lhes vi uma partida, mas sei que as suas regras de bom-tom em nada ficam a dever às dos congêneres dos bairros elegantes.

        A única novidade que notei, e essa mesma não me parece ser grave, foi a de festejarem a vitória sobre um rival, cantando os vencedores pelas ruas, com gambitos nus, a sua proeza homérica com letra e música da escola dos cordões carnavalescos. Vi isto só uma vez e não garanto que essa hibridação do samba, mais ou menos africano com o futebol anglo-saxônio, se haja hoje generalizado nos subúrbios. Pode ser, mas não tenho documentos para tanto afiançar.

        Resta-nos o Carnaval; é ele, porém, tão igual por toda a parte, que foi impossível, segundo tudo faz crer, ao subúrbio dar-lhe alguma coisa de original. Lá, como na Avenida, como em Niterói, como em Maxambomba, como em todo este Brasil inteiro, são os mesmos cordões, blocos, grupos, os mesmos versos indignos de manicômio, as mesmas músicas indigestas [...].

        O subúrbio não se diverte mais. A vida é cara e as apreensões muitas, não permitindo prazeres simples e suaves, doces diversões familiares, equilibradas e plácidas. Precisa-se de ruído, de zambumba, de cansaço, para esquecer, para espançar as trevas que em torno da nossa vida, mais densas se fazem, dia para dia, acompanhando "pari-passu" as suntuosidades republicanas.

        [...] Para as dificuldades materiais de sua precária existência, criou esse seu paraíso artificial, em cujas delícias transitórias mergulha, inebria-se minutos, para esperar, durante horas, dias e meses, um aumentozinho de vencimentos...

Gazeta de Notícias, 7-2-1922.

BARRETO, Lima. Bailes e divertimentos suburbanos. In: BARRETO, Lima. Marginália. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000154.pdf. Acesso em: 20 abr. 2020.

Fonte: Linguagens em Interação – Língua Portuguesa – Ensino Médio – Volume Único – Juliana Vegas Chinaglia – 1ª edição, São Paulo, 2020 – IBEP – p. 42-45.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        À la diable: expressão em francês que significa “para o diabo”.

·        Arguto: aquele que tem a capacidade de perceber rapidamente as coisas mais sutis.

·        Mazurca: dança polonesa em compasso ternário; ritmo musical cuja composição instrumental tem as características dessa dança.

·        Fox-trot: dança de salão de origem norte-americana, cuja direção segue o sentido anti-horário, em andamento suave e progressivo.

·        Gatimanha: neologismo do autor.

·        Mafuá: baile popular.

02 – Qual é o cenário inicial da crônica?

      O cenário inicial é uma vizinhança onde há um baile, próximo à casa do narrador, que ele chama de "Vila Quilombo". O narrador descreve os preparativos para a festa e comenta sobre a música ouvida durante a noite.

03 – Por que o narrador pergunta à irmã sobre as danças da época?

      O narrador pergunta à irmã sobre as danças porque, durante o baile, percebeu que apenas polcas eram tocadas, o que o fez questionar se outros tipos de danças, como valsas e quadrilhas, ainda eram populares.

04 – Quais estilos de música e dança eram populares entre os dançarinos na época?

      Os dançarinos apreciavam músicas "apolcadas", tocadas de maneira acelerada, e dançavam principalmente o tango, fox-trot, ragtime e estavam começando a dançar o "shimmy".

05 – Como eram as casas suburbanas, segundo o narrador?

      As casas suburbanas eram construídas com uma grande sala de visitas, destinada a bailes e reuniões familiares, mesmo que o resto da casa fosse sacrificado em termos de espaço.

06 – O que o narrador comenta sobre a mudança no tamanho das casas suburbanas?

      O narrador observa que, com o tempo, as casas suburbanas ficaram menores, especialmente em relação ao tamanho dos cômodos, o que dificultava a realização de bailes e reuniões familiares.

07 – Como eram os bailes suburbanos mencionados na crônica?

      Os bailes suburbanos eram eventos frequentes, realizados em casas de família, com muitos convidados, incluindo pessoas que os anfitriões muitas vezes não conheciam bem. Esses eventos eram marcados por honestidade e respeito, e as danças duravam até o amanhecer.

08 – Quem eram os "penetras" mencionados na crônica?

      Os "penetras" eram rapazes que entravam nos bailes sem convite, usando truques para se infiltrar nas festas. Apesar disso, os bailes mantinham uma atmosfera de respeito.

09 – Como o narrador descreve a diversão suburbana no passado em comparação com o presente?

      O narrador lamenta que as diversões suburbanas tradicionais, como bailes e teatrinhos de amadores, estejam desaparecendo. Ele menciona que o cinema e o futebol substituíram essas atividades, e que a vida suburbana se tornou mais cara e preocupante, reduzindo os prazeres simples.

10 – Qual é a opinião do narrador sobre o Carnaval nos subúrbios?

      O narrador acredita que o Carnaval nos subúrbios é igual ao de outras partes do Brasil, sem originalidade, com os mesmos cordões, blocos e músicas repetitivas.

11 – Qual é o tom final do narrador em relação à vida suburbana?

      O narrador adota um tom melancólico e crítico, destacando que a vida suburbana perdeu suas antigas diversões simples e que os moradores agora buscam um alívio temporário em prazeres barulhentos e intensos para escapar das dificuldades da vida cotidiana.

 

 

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

TEXTO: TRÊS GÊNIOS DE SECRETÁRIA - LIMA BARRETO - COM GABARITO

 Texto: Três Gênios de Secretária

           Lima Barreto

        O meu amigo Augusto Machado, de quem acabo de publicar uma pequena brochura aliteratada — Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá — mandou-me algumas notas herdadas por ele desse seu amigo, que, como se sabe, foi oficial da Secretaria dos Cultos. Coordenadas por mim, sem nada pôr de meu, eu as dou aqui, para a meditação dos leitores:

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhC-DB_jTUWb3TBXNUEkWdRnjfem8KimbDuowdqCujIFdMZlu86pbRQvFBK0UgMhVMRmE7YgO_A9RXDXO3JcYiRNbtqwgvuorD-d3TVud6FKI1TYJgyBBVz8w90wRaWVJ6IO0cC6-QwOPFr0-v_whEQFs3Bo7CUqVwTL1KFaAz7BThDJDN84XKum_uqsUA/s320/BRAS.jpg


        "Estas minhas memórias que há dias tento começar, são deveras difíceis de executar, pois se imaginarem que a minha secretaria é de pequeno pessoal e pouco nela se passa de notável, bem avaliarão em que apuros me encontro para dar volume às minhas recordações de velho funcionário. Entretanto, sem recorrer a dificuldade, mas ladeando-a, irei sem preocupar-me com datas nem tampouco me incomodando com a ordem das cousas e fatos, narrando o que me acudir de importante, à proporção de escrevê-las. Ponho-me à obra.

        Logo no primeiro dia em que funcionei na secretaria, senti bem que todos nós nascemos para empregado público. Foi a reflexão que fiz, ao me Julgar tão em mim, quando, após a posse e o compromisso ou juramento, sentei-me perfeitamente à vontade na mesa que me determinaram. Nada houve que fosse surpresa, nem tive o mínimo acanhamento. Eu tinha vinte e um para vinte e dois anos; e nela me abanquei como se de há muito já o fizesse. Tão depressa foi a minha adaptação que me julguei nascido para ofício de auxiliar o Estado, com a minha reduzida gramática e o meu péssimo cursivo, na sua missão de regular a marcha e a atividade da nação.

        Com familiaridade e convicção, manuseava os livros – grandes montões de papel espesso e capas de couro, que estavam destinados a durar tanto quanto as pirâmides do Egito. Eu sentia muito menos aquele registro de decretos e portarias e eles pareciam olhar-me respeitosamente e pedir-me sempre a carícia das minhas mãos e a doce violência da minha escrita.

        Puseram-me também a copiar ofícios e a minha letra tão má e o meu desleixo tão meu, muito papel fizeram-me gastar, sem que isso redundasse em grande perturbação no desenrolar das cousas governamentais.

        Mas, como dizia, todos nós nascemos para funcionário publico. Aquela placidez do ofício, sem atritos, nem desconjuntamentos violentos; aquele deslizar macio durante cinco horas por dia; aquela mediania de posição e fortuna, garantindo inabalavelmente uma vida medíocre – tudo isso vai muito bem com as nossas vistas e os nossos temperamentos. Os dias no emprego do Estado nada têm de imprevisto, não pedem qualquer espécie de esforço a mais, para viver o dia seguinte. Tudo corre calma e suavemente, sem colisões, nem sobressaltos, escrevendo-se os mesmos papéis e avisos, os mesmos decretos e portarias, da mesma maneira, durante todo o ano, exceto os dias feriados, santificados e os de ponto facultativo, invenção das melhores da nossa República.

        De resto, tudo nele é sossego e quietude. O corpo fica em cômodo jeito; o espírito aquieta-se, não tem efervescência nem angústias; as praxes estão fixas e as fórmulas já sabidas. Pensei até em casar, não só para ter uns bate-bocas com a mulher mas, também, para ficar mais burro, ter preocupações de "pistolões", para ser promovido. Não o fiz; e agora, já que não digo a ente humano, mas ao discreto papel, posso confessar porque. Casar-me no meu nível social, seria abusar-me com a mulher, pela sua falta de instrução e cultura intelectual; casar-me acima, seria fazer-me lacaio dos figurões, para darem-me cargos, propinas, gratificações, que satisfizessem às exigências da esposa. Não queria uma nem outra cousa. Houve uma ocasião em que tentei solver a dificuldade, casando-me. ou cousa que o valha, abaixo da minha situação. É a tal história da criada... Aí foram a minha dignidade pessoal e o meu cavalheirismo que me impediram.

        Não podia, nem devia ocultar a ninguém e de nenhuma forma, a mulher com quem eu dormia e era mãe dos meus filhos. Eu ia citar Santo Agostinho, mas deixo de fazê-lo para continuar a minha narração...

        Quando, de manhã, novo ou velho no emprego, a gente se senta na sua mesa oficial, não há novidade de espécie alguma e, já da pena, escreve devagarinho: "Tenho a honra", etc., etc.; ou, republicanamente, "Declaro-vos. Para os fins convenientes", etc.

        Se há mudança, é pequena e o começo é já bem sabido: "Tenho em vistas"... – ou "Na forma do disposto"...

        Às vezes o papel oficial fica semelhante a um estranho mosaico de fórmulas e chapas; e são os mais difíceis, nos quais o doutor Xisto Rodrigues brilhava como mestre inigualável.

        O doutor Xisto já é conhecido dos senhores, mas não é dos outros gênios da Secretaria dos Cultos. Xisto é estilo antigo. Entrou honestamente, fazendo um concurso decente e sem padrinhos. Apesar da sua pulhice bacharelesca e a sua limitação intelectual, merece respeito pela honestidade que põe em todos os atos de sua vida, mesmo como funcionário. Sai à hora regulamentar e entra à hora regulamentar. Não bajula. Nem recebe gratificações.

        Os dois outros, porém, são mais modernizados. Um é "charadista", o homem que o diretor. consulta, que dá as informações confidenciais, para o presidente e o ministro promoverem os amanuenses. Este ninguém sabe como entrou para a secretaria; mas logo ganhou a confiança de todos, de todos se fez amigo e, em pouco, subiu três passos na hierarquia e arranjou quatro gratificações mensais ou extraordinárias. Não é má pessoa, ninguém se pode aborrecer com ele: é uma criação do ofício que só amofina os outros, assim mesmo sem nada estes saberem ao certo, quando se trata de promoções.

        Há casos muito interessantes; mas deixo as proezas dessa inferência burocrática, em que o seu amor primitivo a charadas, ao logogrifo e aos enigmas pitorescos pôs lhe sempre na alma uma caligem de mistério e uma necessidade de impor aos outros adivinhação sobre ele mesmo. Deixo-a, dizia, para tratar do "auxiliar de gabinete". É este a figura mais curiosa do funcionalismo moderno. É sempre doutor em qualquer cousa; pode ser mesmo engenheiro hidráulico ou eletricista. Veio de qualquer parte do Brasil, da Bahia ou de Santa Catarina, estudou no Rio qualquer cousa; mas não veio estudar, veio arranjar um emprego seguro que o levasse maciamente para o fundo da terra. donde deveria ter saído em planta, em animal e, se fosse possível, em mineral qualquer. É inútil, vadio, mau e pedante, ou antes, pernóstico.

        Instalado no Rio, com fumaças de estudante, sonhou logo arranjar um casamento, não para conseguir uma mulher, mas, para arranjar um sogro influente, que o empregasse em qualquer cousa, solidamente. Quem como ele faz de sua vida, tão-somente caminho para o cemitério, não quer muito: um lugar em uma secretaria qualquer serve. Há os que veem mais alto e se servem do mesmo meio; mas são a quintessência da espécie.

        Na Secretaria dos Cultos, o seu típico e célebre "auxiliar de gabinete", arranjou o sogro dos seus sonhos, num antigo professor do seminário, pessoa muito relacionada com padres, frades, sacristãos, irmãs de caridade, doutores em cânones, definidores, fabriqueiros, fornecedores e mais pessoal eclesiástico.

        O sogro ideal, o antigo professor, ensinava no seminário uma física muito própria aos fins do estabelecimento, mas que havia de horripilar o mais medíocre aluno de qualquer estabelecimento leigo.

        Tinha ele uma filha a casar e o "auxiliar de gabinete", logo viu no seu casamento com ela, o mais fácil caminho para arranjar uma barrigazinha estufadinha e uma bengala com castão de ouro.

        Houve exame na Secretaria dos Cultos, e o "sogro", sem escrúpulo algum, fez-se nomear examinador do concurso para o provimento do lugar e meter nele "o noivo".

        Que se havia de fazer? O rapaz precisava.

        O rapaz foi posto em primeiro lugar, nomeado e o velho sogro (já o era de fato) arranjou-lhe o lugar de "auxiliar de gabinete" do ministro. Nunca mais saiu dele e, certa vez, quando foi, pro formula se despedir do novo ministro, chegou a levantar o reposteiro para sair; mas, nisto, o ministro bateu na testa e gritou:

        — Quem é aí o doutor Mata-Borrão?

        O homenzinho voltou-se e respondeu, com algum tremor na voz e esperança nos olhos:

        — Sou eu, excelência.

        — O senhor fica. O seu "sogro" já me disse que o senhor precisa muito.

        É ele assim, no gabinete, entre os poderosos; mas, quando fala a seus iguais, é de uma prosápia de Napoleão, de quem se não conhecesse a Josefina.

        A todos em que ele vê um concorrente, traiçoeiramente desacredita: é bêbedo, joga, abandona a mulher, não sabe escrever "comissão", etc. Adquiriu títulos literários, publicando a Relação dos Padroeiros das Principais Cidades do Brasil; e sua mulher quando fala nele, não se esquece de dizer: "Como Rui Barbosa, o Chico..." ou "Como Machado de Assis, meu marido só bebe água."

        Gênio doméstico e burocrático, Mata-Borrão, não chegará, apesar da sua maledicência interesseira, a entrar nem no inferno. A vida não é unicamente um caminho para o cemitério; é mais alguma cousa e quem a enche assim, nem Belzebu o aceita. Seria desmoralizar o seu império; mas a burocracia quer desses amorfos, pois ela é das criações sociais aquela que mais atrozmente tende a anular a alma, a inteligência, e os influxos naturais e físicos ao indivíduo. É um expressivo documento de seleção inversa que caracteriza toda a nossa sociedade burguesa, permitindo no seu campo especial, com a anulação dos melhores da inteligência, de saber, de caráter e criação, o triunfo inexplicável de um Mata-Borrão por aí".

        Pela cópia, conforme.

Brás Cubas, Rio, 10-4-1919.

Entendendo o texto:

01 – Quem é o autor do texto?

      O autor do texto é Lima Barreto.

02 – O que o autor descreveu sobre sua experiência ao ingressar na Secretaria dos Cultos?

      O autor descreveu que se sentiu naturalmente à vontade e adaptado ao seu papel de funcionário público ao ingressar na Secretaria dos Cultos.

03 – Qual é a opinião do autor sobre a vida de funcionário público?

      O autor tem uma visão positiva da vida de funcionário público, descrevendo-a como calma, suave e sem sobressaltos, adequada às suas inclinações pessoais.

04 – Quais são os três personagens destacados na Secretaria dos Cultos?

      Os três personagens destacados na Secretaria dos Cultos são: Doutor Xisto Rodrigues, o "charadista" e o "auxiliar de gabinete".

05 – Como o autor descreve o Doutor Xisto Rodrigues?

      O autor descreve o Doutor Xisto Rodrigues como um funcionário honesto, que não faz bajulações nem recebe gratificações.

06 – Qual é a característica principal do "auxiliar de gabinete" na Secretaria dos Cultos?

      O "auxiliar de gabinete" é descrito como alguém que veio de fora do Rio, arranjou um casamento para obter um sogro influente, e busca um emprego seguro no governo.

07 – Como o "auxiliar de gabinete" conseguiu o emprego na Secretaria dos Cultos?

      O "auxiliar de gabinete" conseguiu o emprego na Secretaria dos Cultos através do seu sogro, que era examinador do concurso e o nomeou para o cargo.

08 – Qual é a atitude do "auxiliar de gabinete" em relação aos seus concorrentes?

      O "auxiliar de gabinete" desacredita traiçoeiramente seus concorrentes, espalhando informações negativas sobre eles.

09 – Como o autor descreve a burocracia?

      O autor descreve a burocracia como uma instituição que tende a anular a inteligência, o caráter e os influxos naturais e físicos do indivíduo, criando uma seleção inversa.

10 – O que o autor critica em relação à sociedade burguesa no texto?

      O autor critica a seleção inversa que ocorre na sociedade burguesa, permitindo o triunfo de indivíduos como o "auxiliar de gabinete" em detrimento dos mais talentosos em inteligência, saber e caráter.

 

sábado, 3 de outubro de 2020

CRÔNICA: A CARROÇA DOS CACHORROS - LIMA BARRETO - COM GABARITO

 Crônica: A carroça dos cachorros

                  Lima Barreto 

   Quando de manhã cedo, saio da minha casa, triste e saudoso da minha mocidade que se foi fecunda, na rua eu vejo o espetáculo mais engraçado desta vida.

     Amo os animais e todos eles me enchem do prazer natureza.

    Sozinho, mais ou menos esbodegado, eu, pela manhã desço a rua e vejo.

        O espetáculo mais curioso é o da carroça dos cachorros. Ela me lembra a antiga caleça dos ministros de Estado, tempo do império, quando eram seguidas por duas praças de cavalaria de polícia.

        Era no tempo da minha meninice e eu me lembro disso com as maiores saudades.

        -- Lá vem a carrocinha! - dizem.

        E todos os homens, mulheres e crianças se agitam e tratam de avisar os outros.

        Diz Dona Marocas a Dona Eugênia:

        -- Vizinha! Lá vem a carrocinha! Prenda o Jupi!

        E toda a “avenida" se agita e os cachorrinhos vão presos e escondidos.

        Esse espetáculo tão curioso e especial mostra bem de que forma profunda nós homens nos ligamos aos animais.

        Nada de útil, na verdade, o cão nos dá; entretanto, nós o amamos e nós o queremos.

        Quem os ama mais, não somos nós os homens; mas são as mulheres e as mulheres pobres, depositárias por excelência daquilo que faz a felicidade e infelicidade da humanidade – o Amor.

        São elas que defendem os cachorros dos praças de polícia e dos guardas municipais; são elas que amam os cães sem dono, os tristes e desgraçados cães que andam por aí à toa.

        Todas as manhãs, quando vejo semelhante espetáculo, eu bendigo a humanidade em nome daquelas pobres mulheres que se apiedam pelos cães.

        A lei, com a sua cavalaria e guardas municipais, está no seu direito em persegui-los; elas, porém, estão no seu dever em acoitá-los.

Lima Barreto

Entendendo a crônica:

01 – A partir a leitura da crônica, o adjetivo “pobres” caracteriza:

a)   As mulheres.

b)   Os policiais.

c)   Os sentimentos do cronista.

d)   Os cães.

02 – A crônica é narrada em 1ª ou em 3ª pessoa? Destaque do texto elementos que justifiquem o foco narrativo escolhido.

      É narrada em 1ª pessoa, conforme este trecho: “— Quando de manhã cedo, saio...”.

03 – O narrador participa da história ou apenas observa?

      Não, apenas observa.

04 – Onde e quando se passa a história?

      Na rua onde mora o narrador e o fato acontece de manhã, cedo.

05 – No trecho: “E toda a “avenida” se agita e os cachorrinhos vão presos e escondidos”, as aspas na palavra avenida foram utilizadas com propósito:

a)   Expressivo figurativo.

b)   Apenas de chamar a atenção para a passagem da carrocinha.

c)   De marcar ironia.

d)   De indicar que se trata de palavra de língua estrangeira.

06 – Transcreva do texto adjetivos e/ou locuções adjetivas que se referem:

a)   Aos sentimentos do cronista.

Triste, saudoso, solitário, esbodegado.

b)   Aos cachorros.

Tristes, desgraçados.

07 – No trecho: “São elas que defendem os cachorros dos praças de polícia e dos guardas municipais; são elas que amam os cães sem dono, os tristes e desgraçados cães que andam por aí à toa.”, as palavras destacadas se referem a:

a)   Vizinhas.

b)   Às mulheres.

c)   Dona Marocas e Dona Eugênia.

d)   Às mulheres e às mulheres pobres.

08 – Em:

        “E todos os homens, mulheres e crianças se agitam e tratam de avisar os outros.

        Diz Dona Marocas a Dona Eugênia:

        -- Vizinha! Lá vem a carrocinha! Prenda o Jupi!”.

        A transformação correta do trecho sublinhado no texto para o discurso indireto no pretérito está na alternativa:

a)   Dona Marocas disse à vizinha que está vindo a carrocinha e que ela prende o Jupi!

b)   Dona Marocas disse à vizinha que está vindo a carrocinha e que ela devesse prende o Jupi!

c)   Dona Marocas disse à vizinha que virá a carrocinha e que Dona Eugênia deve prender o Jupi.

d)   Dona Marocas dizia à vizinha que aqui viria a carrocinha e que Dona Marocas deverá prender o Jupi.

09 – São características da crônica:

I – A presença de heróis e seres sobrenaturais.

II – Explicar acontecimentos misteriosos e sobrenaturais nos quais a natureza tem papel marcante.

III – Gênero narrativo marcado pela brevidade, narra fatos históricos em ordem cronológica.

IV – Gênero narrativo publicado em jornal ou revista, destina-se à leitura diária ou semanal, pois trata de acontecimentos cotidianos.

V – Ausência de autor conhecido, em razão de sua origem muito antiga e oral.

        Após analisar as afirmativas acima, marque a única alternativa correta.

a)   I e II.

b)   I e III.

c)   IV e V.

d)   I e V.

e)   III e IV.

10 – O texto apresenta um fato que faz parte do cotidiano das pessoas de uma rua. Que fato é esse?

      O fato de uma vizinha ter avisado a outra que era para esconder seu cachorro que a carrocinha estava passando. Ser solidário com outro vizinho.

11 – Das alternativas a seguir, qual a que melhor sintetiza a crônica de Lima Barreto?

a)   O cronista está saudoso de sua mocidade, portanto escreve um texto sobre os cachorros.

b)   Em sua crônica, Lima Barreto faz uma crítica severa à carroça dos cachorros, que torna a vida das pessoas mais simples, um transtorno.

c)   Lima Barreto demonstra, em sua crônica, que as pessoas são mais solidárias com os cachorros que com outras pessoas.

d)   O olhar do cronista, quase ingênuo, observa um episódio corriqueiro, a passagem da carroça dos cachorros, e o transforma em um tributo à natureza humana.

e)   O episódio da passagem da carroça dos cachorros leva o cronista a refletir sobre questões cruciais para a realidade do Brasil, como a segurança, por exemplo.

 

 

CONTO: A MULHER DO ANACLETO - LIMA BARRETO - COM GABARITO

 Conto: A Mulher do Anacleto

                Lima Barreto

       Este caso se passou com um antigo colega meu de repartição.

  Ele, em começo, era um excelente amanuense, pontual, com magnífica letra e todos os seus atributos do ofício faziam-no muito estimado dos chefes.

      Casou-se bastante moço e tudo fazia crer que o seu casamento fosse dos mais felizes. Entretanto, assim não foi.

        No fim de dois ou três anos de matrimônio, Anacleto começou a desandar furiosamente. Além de se entregar à bebida. Deu-se também ao jogo.

        A mulher muito naturalmente começou a censurá-lo.

        A princípio, ele ouvia as observações da cara metade com resignação; mas, em breve, enfureceu-se com ela e deu em maltratar fisicamente a pobre rapariga.

        Ela estava no seu papel, ele, porém, é que não estava no dele.

        Motivos secretos e muito íntimos, talvez explicassem a sua transformação; a mulher, porém, é que não queria entrar em indagações psicológicas e reclamava. As respostas a estas acabaram por pancadaria grossa. Suportou-a durante algum tempo. Um dia, porém, não esteve mais pelos autos e abandonou o lar precário. Foi para a casa de um parente e de uma amiga, mas, não suportando a posição inferior de agregada, deixou-se cair na mais relaxada vagabundagem de mulher que se pode imaginar.

        Era uma verdadeira "catraia" que perambulava suja e rota pelas praças mais reles deste Rio de Janeiro.

        Quando se falava a Anacleto sobre a sorte da mulher, ele se enfurecia doidamente:

        — Deixe essa vagabunda morrer por aí! Qual minha mulher, qual nada!

        E dizia cousas piores e injuriosas que não se podem pôr aqui.

        Veio a mulher a morrer, na praça pública; e eu que suspeitei, pelas notícias dos jornais, fosse ela, apressei-me em recomendar a Anacleto que fosse reconhecer o cadáver. Ele gritou comigo:

        — Seja ou não seja! Que morra ou viva, para mim vale pouco!

        Não insisti, mas tudo me dizia que era a mulher do Anacleto que estava como um cadáver desconhecido no necrotério.

        Passam-se anos, o meu amigo Anacleto perde o emprego, devido à desordem de sua vida. Ao fim de algum tempo, graças à interferência de velhas amizades, arranja um outro, num Estado do Norte.

        Ao fim de um ano ou dois, recebo uma carta dele, pedindo-me arranjar na polícia certidão de que sua mulher havia morrido na via pública e fora enterrada pelas autoridades públicas, visto ter ele casamento contratado com uma viúva que tinha "alguma cousa", e precisar também provar o seu estado de viuvez.

        Dei todos os passos para tal, mas era completamente impossível. Ele não quisera reconhecer o cadáver de sua desgraçada mulher e para todos os efeitos continuava a ser casado.

        E foi assim que a esposa do Anacleto vingou-se postumamente. Não se casou rico, como não se casará nunca mais.

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Entendendo o conto:

01 – Identifique no texto:

a)   Título e autor:

A mulher de Anacleto, de Lima Barreto.

b)   Como inicia a história:

O autor apresenta o Anacleto.

c)   Tema ou acontecimento:

A separação do casal devido a comportamento agressivos de Anacleto.

d)   Tipo de linguagem:

Linguagem culta, norma padrão da língua.

e)   Fatos que formam a história (enredo):

Anacleto torna-se agressivo. A mulher vai embora de casa. Vai morar com amiga, mas não suporta a vida de agregada. Cai na “vida”. Morre em praça pública. O órgão de segurança pública a sepultada como indigente, pois o ex-marido não faz reconhecimento. Anacleto tenta casar novamente, mas não pode, porque não reconhece o matrimônio.

f)    Personagens:

Anacleto e sua esposa.

g)   Tempo:

Passado.

h)   Espaço:

Rio de Janeiro.

i)     Narrador:

O narrador, além de narrar, participa de alguns momentos da história. Identifica-se tanto a 3ª como a 1ª pessoa.

j)     Localize no texto lido trechos que representam a fala do narrador e a fala do(a) personagem(ns).

·        Fala do narrador:

“Este caso se passou com um antigo colega meu de repartição.

Ele, em começo, era um excelente amanuense, pontual, com magnífica letra e todos os seus atributos do ofício faziam-no muito estimado dos chefes.

Casou-se bastante moço e tudo fazia crer que o seu casamento fosse dos mais felizes. Entretanto, assim não foi.”

·        Fala da personagem:

Discurso direto: “— Seja ou não seja! Que morra ou viva, para mim vale pouco!”

k)   Que emoção o conto desperta?

O conto traz uma lição, um ensinamento: “o que faz aqui, paga-se aqui”.

l)     O final é inesperado?

O final é inesperado porque não se espera que Anacleto receba com a mesma moeda o favor que não fez.