terça-feira, 16 de janeiro de 2024

CRÔNICA: O PATA-CHOCA - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: O Pata-choca

              Viriato Corrêa

        O Hilário bradou em pleno silêncio do exercício de escrita: — Professor, o Pata- choca está comendo terra! João Ricardo pousou nas pernas o jornal que estava lendo, ergueu os óculos para a testa e chamou: — Evaristo, venha cá!

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiBd5_sPAz5fOPRb91tSd__ay2Xq8OK7bQY2a0AhdXP59YEe7Zqm_0JeeSVwZnyNP7FYwVBHGU655EumsyniJYbSjwo4cSzrSSipZJxXw6ZDio2T5WNDPNRhpfDtvJlEf_NvAQijy7xSWavKJfITp-NZD62MJwxT1K-yKTc-Ujhl3dq32B0-9p02lIOpGI/s1600/PATA.jpg


        Vagaroso, mole, pesadão, o Pata-choca arrastou-se até a grande mesa próxima à parede.

        — Abre essa boca!

        Ele não fez um movimento. O professor segurou a régua.

        — Abre essa boca, estou mandando. O pequeno obedeceu. Era verdade: a língua, as gengivas, os dentes estavam cheios de terra.

        Os "bolos" começaram a ressoar. De repente, João Ricardo parou, atirando à palmatória para cima da mesa.

        — Não lhe dou mais, disse. É a décima ou vigésima vez que o castigo porque come terra. Se eu for castigá-lo como merece, rebento-lhe as mãos. O melhor é entregar você a seu pai.

        E para o Caetano, que se sentava no banco atrás do meu:

        — Dê um pulo, ali, à casa do Chico Lopes e peça que ele venha aqui.

        O Pata-choca era o aluno mais atrasado da escola. Havia bastante tempo que lá estava e não conhecia, sequer, as letras do alfabeto.

        Talvez já tivesse dez anos, mas, pela inteligência, não parecia ter mais de cinco.

        O povoado inteiro o considerava o modelo do menino que não dá para nada.

        — Se não abrires os olhos, diziam as mães aos filhos que não sabiam as lições, se não abrires os olhos, tu acabas como o Pata-choca.

        Era um pequeno amarelo, feio, desmazelado, carne balofa, olhos mortos, barriga muito grande e pernas muito finas. Vivia silencioso, boca aberta, cochilando nos bancos, com um eterno ar de cansaço, como se a vida lhe fosse um grande sacrifício.

        Começou a comer terra quando ainda engatinhava.

        O pai (ele não tinha mãe) dava-lhe surras tremendas, de lhe deixar o corpo moído e de levá-lo à cama.

        Mas nada o corrigia. Ao apanhar distraídas as pessoas de casa, atirava-se aos torrões de terra, comendo-os gulosamente.

        Vivia machucado de pancadas, doentinho, o ar de fadiga, o ar estúpido, malquerido da gente grande e desprezado pelas próprias crianças.

        Não havia nada que o acordasse daquela moleza. Se ralhavam com ele, parecia que o ralho lhe entrava por um ouvido e lhe saía pelo outro. Se lhe davam bordoada, chorava um instante, enquanto as pancadas doíam, mas voltava imediatamente à expressão de indiferença e de embrutecimento.

        Ao ver o pai entrar na sala, não se mexeu. Estava encostado à parede e encostado ficou, como se lhe não interessasse nada daquilo.

        O Chico Lopes veio até à mesa do professor, pálido, chapéu na mão, ar constrangido.

        — Já sei, disse depois de encarar o filho, foi ele que fez alguma. É a minha vergonha, professor, este menino é a minha vergonha!

        — É mesmo! afirmou João Ricardo. Não é mais possível aturá-lo. Leve-o, leve-o de uma vez. O senhor é pai, pode fazer o que quiser. Eu é que não posso mais fazer nada. São três anos. Durante três anos castiguei-o, dei-lhe bordoada, fiz tudo que estava nas minhas forças e nada, absolutamente nada consegui. Leve-o, leve-o, que eu perdi completamente a paciência!

        O Chico Lopes machucou nervosamente o chapéu nos dedos e rebateu energicamente:

        — Não, professor! O senhor vai ficar com ele! O senhor vai dar-lhe ensino! Por que não? Porque tem medo de esbofeteá-lo demais? Não tenha medo nenhum! Dê-lhe a bordoada que quiser! Está autorizado por mim.

        E com a voz tocada de emoção:

        — Eu, como pai, lhe peço: fique, fique com o menino! O que eu não quero é que, amanhã, ele seja um animal como eu!

        O mestre-escola abrandou. Cedeu.

        — Está bem! Está bem! Vou tentar, vou fazer o possível. No dia seguinte o Pata-choca entrou na escola cheio de machucões nos braços e no rosto. Havia apanhado brutalmente em casa.

        João Ricardo preveniu-lhe:

        — Hoje, ou você dá a lição certinha ou eu lhe ponho a orelha de burro".

        À tarde, o pequeno deu a lição pior do que nos outros dias. O professor terminou as aulas mais cedo que de costume.

        — Podem ir embora, disse-nos. Quero que vejam o "burro" passar.

        Eu estava em casa, mudando a roupa, quando ouvi uma gritaria na rua. Corri ao peitoril da varanda.

        O Pata-choca vinha caminhando pesadamente. No lugar das orelhas trazia duas grandes, duas enormes orelhas de asno talhadas em papelão. Atrás, um bando de garotos, vaiando-o:

        — Olhe o burro! Olhe o burro!

        Achei uma infinita graça em tudo aquilo e tive a tentação de ir para o meio dos que gritavam, gritar também.

        Passei a perna por cima do peitoril para pular na rua. Minha mãe segurou-me fortemente pelo braço, dizendo-me com energia:

        — Não faças isso! Não vês que ele é um infeliz?

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o comportamento peculiar do Pata-choca que chama a atenção do Hilário durante o exercício de escrita?

      O Pata-choca está comendo terra.

02 – Como o professor João Ricardo reage ao saber que o Pata-choca está comendo terra?

      João Ricardo chama o Pata-choca e exige que ele abra a boca para verificar que sua língua, gengivas e dentes estão cheios de terra.

03 – Como o Pata-choca é descrito fisicamente e emocionalmente pelos habitantes do povoado?

      O Pata-choca é descrito como pequeno, amarelo, feio, desmazelado, com carne balofa, olhos mortos, barriga grande e pernas finas. Ele vive silencioso, com um ar de cansaço constante, como se a vida fosse um grande sacrifício.

04 – Por que o Pata-choca é considerado o modelo do menino que "não dá para nada" pelo povoado?

      O Pata-choca é considerado incapaz e inútil devido ao seu atraso escolar, falta de inteligência aparente e ao hábito de comer terra.

05 – Qual é a reação do professor João Ricardo ao comportamento repetitivo do Pata-choca de comer terra?

      João Ricardo expressa frustração e decide não castigar mais o Pata-choca, afirmando que o melhor é entregá-lo ao seu pai.

06 – Como o pai do Pata-choca, Chico Lopes, reage ao ser chamado à escola pelo professor?

      Chico Lopes pede desculpas pelo comportamento do filho e sugere que o professor continue educando o Pata-choca, mesmo que isso envolva castigos físicos, para evitar que ele se torne um "animal" como o pai.

07 – Como a crônica termina e qual é a reação do narrador ao ver o Pata-choca com orelhas de burro?

      O professor João Ricardo concorda em ficar com o Pata-choca, que entra na escola no dia seguinte com machucados. Ao final, o Pata-choca é visto com grandes orelhas de burro de papelão, e o narrador sente a tentação de rir, mas sua mãe o impede, lembrando-o de que o Pata-choca é um infeliz.

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