Crônica: O Pata-choca
Viriato Corrêa
O Hilário bradou em pleno silêncio do
exercício de escrita: — Professor, o Pata- choca está comendo terra! João
Ricardo pousou nas pernas o jornal que estava lendo, ergueu os óculos para a
testa e chamou: — Evaristo, venha cá!
Vagaroso, mole, pesadão, o Pata-choca
arrastou-se até a grande mesa próxima à parede.
— Abre essa boca!
Ele não fez um movimento. O professor
segurou a régua.
— Abre essa boca, estou mandando. O
pequeno obedeceu. Era verdade: a língua, as gengivas, os dentes estavam cheios
de terra.
Os "bolos" começaram a
ressoar. De repente, João Ricardo parou, atirando à palmatória para cima da
mesa.
— Não lhe dou mais, disse. É a décima
ou vigésima vez que o castigo porque come terra. Se eu for castigá-lo como merece,
rebento-lhe as mãos. O melhor é entregar você a seu pai.
E para o Caetano, que se sentava no
banco atrás do meu:
— Dê um pulo, ali, à casa do Chico
Lopes e peça que ele venha aqui.
O Pata-choca era o aluno mais atrasado
da escola. Havia bastante tempo que lá estava e não conhecia, sequer, as letras
do alfabeto.
Talvez já tivesse dez anos, mas, pela
inteligência, não parecia ter mais de cinco.
O povoado inteiro o considerava o
modelo do menino que não dá para nada.
— Se não abrires os olhos, diziam as
mães aos filhos que não sabiam as lições, se não abrires os olhos, tu acabas
como o Pata-choca.
Era um pequeno amarelo, feio,
desmazelado, carne balofa, olhos mortos, barriga muito grande e pernas muito
finas. Vivia silencioso, boca aberta, cochilando nos bancos, com um eterno ar
de cansaço, como se a vida lhe fosse um grande sacrifício.
Começou a comer terra quando ainda
engatinhava.
O pai (ele não tinha mãe) dava-lhe
surras tremendas, de lhe deixar o corpo moído e de levá-lo à cama.
Mas nada o corrigia. Ao apanhar
distraídas as pessoas de casa, atirava-se aos torrões de terra, comendo-os
gulosamente.
Vivia machucado de pancadas, doentinho,
o ar de fadiga, o ar estúpido, malquerido da gente grande e desprezado pelas
próprias crianças.
Não havia nada que o acordasse daquela
moleza. Se ralhavam com ele, parecia que o ralho lhe entrava por um ouvido e
lhe saía pelo outro. Se lhe davam bordoada, chorava um instante, enquanto as
pancadas doíam, mas voltava imediatamente à expressão de indiferença e de
embrutecimento.
Ao ver o pai entrar na sala, não se
mexeu. Estava encostado à parede e encostado ficou, como se lhe não
interessasse nada daquilo.
O
Chico Lopes veio até à mesa do professor, pálido, chapéu na mão, ar
constrangido.
— Já sei, disse depois de encarar o
filho, foi ele que fez alguma. É a minha vergonha, professor, este menino é a
minha vergonha!
— É mesmo! afirmou João Ricardo. Não é
mais possível aturá-lo. Leve-o, leve-o de uma vez. O senhor é pai, pode fazer o
que quiser. Eu é que não posso mais fazer nada. São três anos. Durante três
anos castiguei-o, dei-lhe bordoada, fiz tudo que estava nas minhas forças e
nada, absolutamente nada consegui. Leve-o, leve-o, que eu perdi completamente a
paciência!
O Chico Lopes machucou nervosamente o
chapéu nos dedos e rebateu energicamente:
— Não, professor! O senhor vai ficar
com ele! O senhor vai dar-lhe ensino! Por que não? Porque tem medo de
esbofeteá-lo demais? Não tenha medo nenhum! Dê-lhe a bordoada que quiser! Está
autorizado por mim.
E com a voz tocada de emoção:
— Eu, como pai, lhe peço: fique, fique
com o menino! O que eu não quero é que, amanhã, ele seja um animal como eu!
O mestre-escola abrandou. Cedeu.
— Está bem! Está bem! Vou tentar, vou
fazer o possível. No dia seguinte o Pata-choca entrou na escola cheio de
machucões nos braços e no rosto. Havia apanhado brutalmente em casa.
João Ricardo preveniu-lhe:
— Hoje, ou você dá a lição certinha ou
eu lhe ponho a orelha de burro".
À tarde, o pequeno deu a lição pior do
que nos outros dias. O professor terminou as aulas mais cedo que de costume.
— Podem ir embora, disse-nos. Quero que
vejam o "burro" passar.
Eu estava em casa, mudando a roupa,
quando ouvi uma gritaria na rua. Corri ao peitoril da varanda.
O Pata-choca vinha caminhando
pesadamente. No lugar das orelhas trazia duas grandes, duas enormes orelhas de
asno talhadas em papelão. Atrás, um bando de garotos, vaiando-o:
— Olhe o burro! Olhe o burro!
Achei uma infinita graça em tudo aquilo
e tive a tentação de ir para o meio dos que gritavam, gritar também.
Passei a perna por cima do peitoril
para pular na rua. Minha mãe segurou-me fortemente pelo braço, dizendo-me com
energia:
— Não faças isso! Não vês que ele é um
infeliz?
Viriato
Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.
Entendendo a crônica:
01 – Qual é o comportamento
peculiar do Pata-choca que chama a atenção do Hilário durante o exercício de
escrita?
O Pata-choca está comendo terra.
02 – Como o professor João
Ricardo reage ao saber que o Pata-choca está comendo terra?
João Ricardo
chama o Pata-choca e exige que ele abra a boca para verificar que sua língua,
gengivas e dentes estão cheios de terra.
03 – Como o Pata-choca é
descrito fisicamente e emocionalmente pelos habitantes do povoado?
O Pata-choca é
descrito como pequeno, amarelo, feio, desmazelado, com carne balofa, olhos
mortos, barriga grande e pernas finas. Ele vive silencioso, com um ar de
cansaço constante, como se a vida fosse um grande sacrifício.
04 – Por que o Pata-choca é
considerado o modelo do menino que "não dá para nada" pelo povoado?
O Pata-choca é
considerado incapaz e inútil devido ao seu atraso escolar, falta de
inteligência aparente e ao hábito de comer terra.
05 – Qual é a reação do
professor João Ricardo ao comportamento repetitivo do Pata-choca de comer
terra?
João Ricardo expressa frustração e decide
não castigar mais o Pata-choca, afirmando que o melhor é entregá-lo ao seu pai.
06 – Como o pai do Pata-choca,
Chico Lopes, reage ao ser chamado à escola pelo professor?
Chico Lopes pede
desculpas pelo comportamento do filho e sugere que o professor continue
educando o Pata-choca, mesmo que isso envolva castigos físicos, para evitar que
ele se torne um "animal" como o pai.
07 – Como a crônica termina e
qual é a reação do narrador ao ver o Pata-choca com orelhas de burro?
O professor João Ricardo concorda em
ficar com o Pata-choca, que entra na escola no dia seguinte com machucados. Ao
final, o Pata-choca é visto com grandes orelhas de burro de papelão, e o
narrador sente a tentação de rir, mas sua mãe o impede, lembrando-o de que o
Pata-choca é um infeliz.
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