DIÁRIO: MINHA VIDA DE MENINA
1893
Domingo, 26 de
novembro
Será que quando eu me
casar vou gostar tanto de meu marido como mamãe de meu pai? Deus o permita.
Mamãe só vive para ele e não pensa noutra coisa. Quando ele está em casa, os
dois passam juntinhos o dia inteiro numa conversa sem fim. Quando meu pai está
na Boa Vista, que é a semana toda, mamãe leva cantando umas cantigas muito
ternas que a gente vê que são saudades e só arranjando-lhe as roupas, juntando
ovos e engordando os frangos para os jantares de sábado e domingo. São dias de
se passar bem em casa.
Segunda-feira tio
Joãozinho levou meu pai para verem um serviço no Biribiri e voltarem no fim da
semana. Terça-feira cedo, quando chegamos à janela, estava na porta a besta nossa
conhecida, esperando a ração.
Admirei a energia de mamãe. Ela foi logo dizendo:
"Preparem-se para seguirmos amanhã de madrugada. Aconteceu alguma coisa a
Alexandre". E com os olhos cheios de lágrimas mandou Cesarina matar dois
frangos para a matalotagem.
De tarde pôs na
maleta um vestido para cada uma de nós, uma roupa para meus irmãos e mandou
chamar José Pedro para carregar a mala. O cesto da matalotagem Renato levava.
Deitamos cedo, com a roupa ao lado, para nos levantar de madrugada, vestir e
sairmos. Mamãe não se deitou dizendo que não podia dormir e passaria rezando.
Nós não tínhamos ainda tirado um bom sono quando mamãe nos acordou:
"Levantem que o galo já cantou duas vezes. Devem ser quatro horas. É bom
que o dia clareie conosco para lá da Pedra Grande". Levantamos, tomamos o
café e saímos, mamãe, meus irmãos e os dois crioulinhos, Cesarina e José Pedro.
Quando chegamos à rua
achei o céu muito estrelado e a noite muito escura para quatro horas. Fomos
andando, e nada do dia clarear. Quando já estávamos muito longe ouvimos o
relógio da igreja do Seminário bater duas horas. Aí caímos todos no riso mas
mamãe, a única responsável, não achou graça. Ela dizia: "O pior não é a
hora. Até é bom viajar com a noite. Mas é que estou achando o caminho
diferente. A estrada do Biribiri é bem mais larga". Fomos andando até não
sabermos mais onde estávamos. Aí mamãe disse: "Esse caminho está estúrdio
demais. É melhor sentarmos e esperarmos o dia clarear". Ela sentou-se numa
pedra, estendeu o xale no chão para meus irmãos deitarem, colocou minha cabeça
e a de Luisinha no colo, tirou o rosário e pôs-se a rezar enquanto dormíamos.
Quando o dia clareou,
que abismo! Tínhamos errado o caminho. Estávamos num lugar de onde parecia que
não seríamos capazes de sair. Era no alto da Serra dos Cristais e de lá de cima
avistamos a estrada lá embaixo. Estávamos num precipício! Nós sempre confiantes
em mamãe e suas orações; mas ela estava muda e só rezando. Perguntamos o que
havíamos de fazer. Ela disse: "Esperem. Estou rezando a Santa Maria Eterna
e só depois é que vou saber o que tenho de fazer". Esperamos. Pouco depois
ela disse: "Voltar para trás está difícil, porque não sabemos o caminho. O
que temos que fazer é seguir com fé em Deus, procurando sair daqui escorregando
pela serra abaixo".
Nós, que parecíamos
uns cabritos, escorregamos às vezes pedaços tão grandes, que só embaixo é que
vimos o absurdo do que fazíamos. Renato quis fazer uma estripulia pendurando-se
numa árvore pequena. Ela quebrou e ele caiu num buraco da serra e nós o
perdemos de vista. Nessa hora pusemo-nos a chorar e a gritar. Mamãe, com os
olhos cheios de lágrimas olhava para o céu e rezava: "Santa Maria Eterna,
Virgem das Virgens, valei-me nesta ocasião, livrai-me desta aflição".
Então o negrinho pediu o guarda-chuva, amarrou uma correia e deu a Renato para
segurar e subir. Essa tentativa falhou umas três vezes. Por fim mamãe lhe deu o
xale para segurar e ele subiu até em cima. Continuamos a rolar até cairmos na
estrada.
Esta descida calculo
que levou umas seis horas, pois o sol estava alto quando chegamos embaixo.
Quando reparamos em nossas figuras rimos horrorizados. Nossos vestidos
ensopados e em farrapos. Só nesta hora é que mamãe viu que Luisinha estava com o
rosto disforme com caxumba! Estávamos com fome e não havia mais nada que comer;
a matalotagem tinha acabado. Fomos para trás de uma moita, enquanto mamãe
vigiava a estrada e mudamos a roupa.
Nesse lugar, enquanto
descansávamos, passou um beija-flor-de-rabo-branco e aproximou-se de nós.
Renato deu com o chapéu no pobrezinho e atirou-o morto no chão. Mamãe lhe
disse: "Que malvado! Você vai ver o que te acontece. Afianço que você não
vai ganhar nem um presentinho no Biribiri!". Sempre que vamos ao Biribiri
voltamos carregados de presentes. Dona Mariana dá-nos das fazendas da fábrica;
meu tio, dinheiro e latas de doces.
Depois de descansar
seguimos para o Biribiri. Fomos recebidos com alegria e espanto. Quando mamãe
contou a história do aparecimento da besta e as aventuras da viagem, todos
riram à grande. Só então meu pai soube que a besta tinha fugido do pasto e
voltado para casa.
Passamos lá dois dias
e voltamos ontem para a cidade com um fardo dos presentes que todos nós ganhamos.
Menos Renato, que não ganhou nem um lenço. Depois há gente que não acredita em
castigo de quem mata beija-flor. Eu não poderei mais duvidar.
MORLEY, Helena. Minha vida
de menina. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 73-75.
Fonte: Livro: Língua Portuguesa: linguagem e interação/ Faraco, Moura, Maruxo Jr. – 3.ed. São Paulo: Ática, 2016. p. 193-6.
afiançar: garantir.
à grande: demasiadamente; em excesso.
besta: animal irracional, quadrúpede, em geral doméstico.
fazenda: tecido.
matalotagem: provisão de mantimentos para ser consumida
durante uma viagem.
Entendendo o texto
1. A narrativa de
Helena Morley dá-se em uma fase em que a jovem transita da infância à
maturidade. Identifique e escreva no caderno uma passagem em que se observa a
"fala" de uma Helena mais madura.
Há três
passagens explícitas: 1ª) "Quando meu pai está na Boa Vista, que é a
semana toda, mamãe leva cantando umas cantigas muito ternas que a gente vê que
são saudades [...]"; 2ª) "Admirei a energia de mamãe."; 3ª)
"Esta descida calculo que levou umas seis horas, pois o sol estava alto
quando chegamos embaixo."
2.Observe: "Esse
caminho está estúrdio
demais". Mesmo sem consultar o dicionário, você certamente consegue
deduzir, pelo contexto, o sentido da palavra destacada. Qual é?
Estranho,
esquisito.
3. Releia este
trecho:
Será que quando eu me casar vou gostar tanto de meu
marido como mamãe de meu pai? Ao utilizar a expressão destacada, o enunciador
espera mesmo uma resposta? Explique.
Não. A
expressão indica incerteza, dúvida.
4. Releia este outro
trecho e responda no caderno:
[...] que a gente vê que são saudades
[...]
A expressão destacada
é mais comum na linguagem informal. Que palavra corresponde a essa expressão na
linguagem formal?
Nós.
5.Reescreva este
trecho, utilizando uma linguagem menos coloquial.
Fomos andando, e nada do dia clarear.
Sugestões
de resposta: Fomos andando, mas o dia não clareava.