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sexta-feira, 6 de setembro de 2024

CONTO: O ALIENISTA - CAPÍTULO IV: UMA TEORIA NOVA - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 Conto: O alienistaCapítulo IV: Uma teoria nova

            Machado de Assis

        Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos.

        Um dia de manhã,— eram passadas três semanas,— estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhavx78bPi3-PQaw-iUDd1c_iuBffptd4HzTeL0Sze-dc0cgjIpFUqvtjfdf3866agFzuSZG0HM_Ge8Bx2LMZCb-ZAjGOldFj8XNSSiQr2H4ePzvpfRZBgOB7dQmJE91fj2OP4YNSNEf223s24_LE6q3ZCjl4-jBxwLrLLJTaIsss-CU4eNEN7TyEsD788/s320/CRISPIM.jpg


        — Trata-se de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador.

        Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser, se não alguma notícia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um só dia. Assim se explicam os monólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita vez: — "Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes amem a tudo, não é? aí tens o lucro, biltre!" — E muitos outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas e voou à Casa Verde.

        Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspeção até o pescoço.

        — Estou muito contente, disse ele.

        — Notícias do nosso povo? perguntou o boticário com a voz trêmula.

        O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:

        — Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha ideia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da Terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.

        Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou sentenciosamente:

        — A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.

        — Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares levantando as mãos ao céu.

        Quanto à ideia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era "caso de matraca". Esta expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí que como as demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia; ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz; — ou por meio de matraca.

        Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão.

        De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, — um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores, — aquele justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde, — desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século.

        — Há melhor do que anunciar a minha ideia, é praticá-la, respondeu o alienista à insinuação do boticário.

        E o boticário, não divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor começar pela execução.

        — Sempre haverá tempo de a dar à matraca, concluiu ele.

        Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:

        — Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.

        O Vigário Lopes a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que não chegava a entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não merecia princípio de execução.

        — Com a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?

        Sobre o lábio fino e discreto do alienista rogou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas.

        A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, — com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução.

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: L&PM Editores, 1998.

Fonte: Linguagens em Interação – Língua Portuguesa – Ensino Médio – Volume Único – Juliana Vegas Chinaglia – 1ª edição, São Paulo, 2020 – IBEP – p. 212-214.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Fâmulo: servo, criado, empregado.

·        Fracalhão: muito fraco, medroso, covarde.

·        Biltre: cafajeste, canalha.

·        Circunspeção: cautela, cuidado, sensatez.

·        Sezão: febre intermitente.

·        Regímen: forma antiga de regime.

·        Egrégio: distinto, notável, ilustre.

02 – Qual é a ideia "arrojada e nova" que Simão Bacamarte estava desenvolvendo?

      Simão Bacamarte estava desenvolvendo a ideia de que a loucura, até então vista como uma "ilha perdida no oceano da razão", na verdade poderia ser um "continente", ou seja, algo muito mais comum e abrangente do que se pensava.

03 – Qual foi a reação inicial de Crispim Soares ao ser chamado por Simão Bacamarte?

      Crispim Soares ficou extremamente nervoso e preocupado, pensando que o chamado estava relacionado à viagem de sua esposa, D. Evarista, da qual estava muito apreensivo.

04 – Como Simão Bacamarte explica a relação entre loucura e razão para Crispim Soares?

      Simão Bacamarte explica que a razão é o "perfeito equilíbrio de todas as faculdades" e qualquer coisa fora desse equilíbrio é insânia, ou seja, loucura.

05 – Quais exemplos históricos Simão Bacamarte utiliza para sustentar sua teoria sobre a loucura?

      Simão Bacamarte cita Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, e outras figuras históricas como Maomé, Caracala, Domiciano e Calígula, entre outros.

06 – Qual foi a reação do Vigário Lopes à nova teoria de Simão Bacamarte?

      O Vigário Lopes declarou que não entendia a teoria e a considerou absurda ou colossal demais para ser praticada. Ele acreditava que a definição de loucura e razão já estava bem delimitada e que não havia necessidade de novas teorias.

07 – O que significa a expressão "caso de matraca" usada por Crispim Soares?

      "Caso de matraca" se refere à prática de anunciar algo publicamente por meio de um homem que andava pelas ruas tocando uma matraca e fazendo anúncios, uma forma antiga de divulgar informações importantes em Itaguaí.

08 – Qual é o objetivo final de Simão Bacamarte com sua nova teoria?

      O objetivo final de Simão Bacamarte é "demarcar definitivamente os limites da razão e da loucura" e extrair a "pérola" da razão, separando claramente o que é insânia do que é sanidade.

09 – Como Simão Bacamarte reage às críticas do Vigário Lopes?

      Simão Bacamarte reage com uma vaga sombra de riso, combinando desdém com comiseração, mas não verbaliza nenhuma crítica direta, apenas mantém sua confiança na ciência.

10 – Por que Crispim Soares não discorda abertamente da teoria de Simão Bacamarte?

      Crispim Soares não discorda abertamente por conta de sua modéstia e respeito por Bacamarte. Embora ache a ideia extravagante, ele prefere não contestar e expressa entusiasmo pela teoria.

11 – Como Machado de Assis utiliza a figura do alienista para explorar temas de ciência e razão?

      Machado de Assis utiliza Simão Bacamarte, o alienista, para explorar as fronteiras entre ciência e razão, questionando a definição de loucura e a autoridade dos cientistas sobre a mente humana, e também como a ciência pode ser usada para justificar ações extremas.

 

 

 

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

CONTO: SUJE-SE, GORDO! MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 Conto: SUJE-SE, GORDO!

            Machado de Assis

        UMA NOITE, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgb6nUbxAlbsuIGZ2u2FtD0QF2j2_xLDHnv388KfszhQPromsxuIqwVv86wTubsQ4D7EgaRfH2_Kel84A4oEO6TxrxFEvozo5dYCE8THFLJPOzrnBLNRIG7iSmbmskti2TnXuMyIIHSzE7rD8_ZiXMB0XQC9FgulqFnegCpZGVLuQ_s8y_V76hzC7-BVgs/s1600/OURIVES.jpg


        -- Fui sempre contrário ao júri,-- disse-me aquele amigo, não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho; "Não queirais julgar para que não sejais julgados". Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição.

        Tal era o meu escrúpulo que, salvo dois, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dois processos eram mal feitos. O primeiro réu que condenei, era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda. os olhos mortos, com tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.

        Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estreia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dois anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que era eu.

        Não digo o que se passou na sala secreta; além de ser secreta   o que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Contarei depressa; o terceiro ato não tarda.

        Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que que ninguém convencido do delito e do delinquente. O processo foi examinado, os quesitos lidos' e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim' como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara pela negativa,-- proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo,-- chamava-se Lopes,-- replicou com aborrecimento:

        -- Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.

        -- Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.

        -- Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!

        "Suje-se gordo!" Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário, nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.

        Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entendê-la. "Suje-se gordo!" era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de São Pedro; vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele, não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos.

        Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.

        Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus. Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci, pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.

        -- Como se chama? perguntou o presidente.

        -- Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.

        Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas cousas me escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca.

        Seguiu-se a leitura do processo. Era uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionou muito, o inquérito, os documentos, a tentativa de fuga do caixa e uma série de circunstancias agravantes, por fim o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros.

        Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.

        Enquanto os dois oradores falavam, vim pensando na fatalidade de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico: “Não queirais julgar, para que não sejais julgados". Confesso-lhe que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de dinheiro, mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora julgado também.

        Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo Lopes: "Suje-se gordo!" Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: "Suje-se gordo!" Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. "Suje-se gordo!" Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!

        Ideias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer-lhe aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença da votação era tamanha que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém... Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.

     Texto extraído do livro “Antologia do Humorismo e Sátira”, Editora Civilização Brasileira – Rio de Janeiro, 1957, p. 98, uma seleção de R. Magalhães Júnior.

Entendendo o conto:

01 – Onde se passa a cena inicial do conto?

      A cena inicial do conto se passa no terraço do Teatro de S. Pedro de Alcântara, entre o segundo e o terceiro ato de uma peça.

02 – Por que o amigo do narrador serviu duas vezes no júri, apesar de ser contrário à instituição?

      O amigo do narrador serviu no júri duas vezes porque, embora fosse contrário à instituição em si, sentiu a obrigação de fazê-lo como um serviço gratuito ao seu país.

03 – Qual foi a primeira condenação que o narrador relembra no conto?

      A primeira condenação que o narrador relembra no conto foi a de um moço acusado de furto com falsificação de um papel.

04 – Qual frase proferida por um dos jurados, chamado Lopes, chama a atenção do narrador durante o julgamento?

      A frase que chama a atenção do narrador é "Suje-se gordo!" proferida por Lopes, um dos jurados.

05 – O que a frase "Suje-se gordo!" significa no contexto do conto?

      A frase "Suje-se gordo!" parece indicar que o réu é um criminoso de grande importância ou que só deveria se envolver em crimes de grande valor.

06 – Como o narrador se sentiu ao reconhecer o caixa do Banco do Trabalho Honrado como o mesmo jurado Lopes de um julgamento anterior?

      O narrador se sentiu perturbado e desconfortável ao reconhecer o caixa como o mesmo jurado Lopes do julgamento anterior, refletindo sobre o julgamento passado.

07 – O que fez o narrador pensar sobre a frase "Não queirais julgar, para que não sejais julgados" no contexto do conto?

      O narrador pensou que a frase bíblica "Não queirais julgar, para que não sejais julgados" ganhou um novo significado ao ver o jurado Lopes sendo julgado, pois ele próprio já havia julgado alguém anteriormente.

08 – Qual foi a votação no julgamento do caixa acusado do desvio de dinheiro?

      A votação no julgamento do caixa acusado do desvio de dinheiro foi de nove votos pela absolvição e três votos pela condenação.

09 – Como o narrador encerra o conto, refletindo sobre o ato de julgar?

      O narrador encerra o conto refletindo sobre a incerteza do ato de julgar e afirmando que o melhor é não julgar ninguém para evitar ser julgado, fazendo referência à frase "Suje-se gordo!" como um lembrete das complexidades morais envolvidas no julgamento.

 

domingo, 5 de novembro de 2023

CONTO: NOITE DE ALMIRANTE - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 Conto: NOITE DE ALMIRANTE

            Machado de Assis

        Deolindo Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu do arsenal de marinha e enfiou pela rua de Bragança. Batiam três horas da tarde. Era a fina flor dos marujos e, de mais, levava um grande ar de felicidade nos olhos. A corveta dele voltou de uma longa viagem de instrução, e Deolindo veio à terra tão depressa alcançou licença. Os companheiros disseram-lhe, rindo:

        — Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhNlDQslb0YM83h1HMTJ3QWGmmuHgWP-8A1Kdn5JDs9sAdbfNF_kjwAuKDZCFSMXC1HBXqtgEfoE1OgMfW0KTjVsnjbInhItPep4b8ks8Amgz-OpfM8y54y5DUuKniuX0zfQ7L75y6SioyO3p96T6WdhPtAAe17pJQUt_a0ex4sy6kPFhrQM9xPwd18Lus/s320/ALMIRANTE.jpg


        Deolindo sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante, como eles dizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra. Começara a paixão três meses antes de sair a corveta. Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido. Encontraram-se em casa de terceiro e ficaram morrendo um pelo outro, a tal ponto que estiveram prestes a dar uma cabeçada, ele deixaria o serviço e ela o acompanharia para a vila mais recôndita do interior.

        A velha Inácia, que morava com ela, dissuadiu-os disso; Deolindo não teve remédio senão seguir em viagem de instrução. Eram oito ou dez meses de ausência. Como fiança recíproca, entenderam dever fazer um juramento de fidelidade.

        — Juro por Deus que está no céu. E você?

        — Eu também.

        — Diz direito.

        — Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte.

        Estava celebrado o contrato. Não havia descrer da sinceridade de ambos; ela chorava doidamente, ele mordia o beiço para dissimular. Afinal separaram-se, Genoveva foi ver sair a corveta e voltou para casa com um tal aperto no coração que parecia que "lhe ia dar uma coisa". Não lhe deu nada, felizmente; os dias foram passando, as semanas, os meses, dez meses, ao cabo dos quais, a corveta tornou e Deolindo com ela.

        Lá vai ele agora, pela rua de Bragança, Prainha e Saúde, até ao princípio da Gamboa, onde mora Genoveva. A casa é uma rotulazinha escura, portal rachado do sol, passando o cemitério dos Ingleses; lá deve estar Genoveva, debruçada à janela, esperando por ele. Deolindo prepara uma palavra que lhe diga. Já formulou esta: "Jurei e cumpri", mas procura outra melhor. Ao mesmo tempo lembra as mulheres que viu por esse mundo de Cristo, italianas, marselhesas ou turcas, muitas delas bonitas, ou que lhe pareciam tais. Concorda que nem todas seriam para os beiços dele, mas algumas eram, e nem por isso fez caso de nenhuma. Só pensava em Genoveva. A mesma casinha dela, tão pequenina, e a mobília de pé quebrado, tudo velho e pouco, isso mesmo lhe lembrava diante dos palácios de outras terras. Foi à custa de muita economia que comprou em Trieste um par de brincos, que leva agora no bolso com algumas bugigangas. E ela que lhe guardaria? Pode ser que um lenço marcado com o nome dele e uma âncora na ponta, porque ela sabia marcar muito bem. Nisto chegou à Gamboa, passou o cemitério e deu com a casa fechada. Bateu, falou-lhe uma voz conhecida, a da velha Inácia, que veio abrir-lhe a porta com grandes exclamações de prazer. Deolindo, impaciente, perguntou por Genoveva.

        — Não me fale nessa maluca, arremeteu a velha. Estou bem satisfeita com o conselho que lhe dei. Olhe lá se fugisse. Estava agora como o lindo amor.

        — Mas que foi? que foi?

        A velha disse-lhe que descansasse, que não era nada, uma dessas coisas que aparecem na vida; não valia a pena zangar-se. Genoveva andava com a cabeça virada...

        — Mas virada por quê?

        — Está com um mascate, José Diogo. Conheceu José Diogo, mascate de fazendas? Está com ele. Não imagina a paixão que eles têm um pelo outro. Ela então anda maluca. Foi o motivo da nossa briga. José Diogo não me saía da porta; eram conversas e mais conversas, até que eu um dia disse que não queria a minha casa difamada. Ah! meu pai do céu! foi um dia de juízo. Genoveva investiu para mim com uns olhos deste tamanho, dizendo que nunca difamou ninguém e não precisava de esmolas. Que esmolas, Genoveva? O que digo é que não quero esses cochichos à porta, desde as Aves-Marias... Dois dias depois estava mudada e brigada comigo.

        — Onde mora ela?

        — Na praia Formosa, antes de chegar à pedreira, uma rótula pintada de novo.

        Deolindo não quis ouvir mais nada. A velha Inácia, um tanto arrependida, ainda lhe deu avisos de prudência, mas ele não os escutou e foi andando. Deixo de notar o que pensou em todo o caminho; não pensou nada. As ideias marinhavam-lhe no cérebro, como em hora de temporal, no meio de uma confusão de ventos e apitos. Entre elas rutilou a faca de bordo, ensanguentada e vingadora. Tinha passado a Gamboa, o Saco do Alferes, entrara na praia Formosa. Não sabia o número de casa, mas era perto da pedreira, pintada de novo, e com auxílio da vizinhança poderia achá-la. Não contou com o acaso que pegou de Genoveva e fê-la sentar à janela, cosendo, no momento em que Deolindo ia passando. Ele conheceu-a e parou; ela, vendo o vulto de um homem, levantou os olhos e deu com o marujo.

        — Que é isso? exclamou espantada. Quando chegou? Entre, seu Deolindo.

        E, levantando-se, abriu a rótula e fê-lo entrar. Qualquer outro homem ficaria alvoroçado de esperanças, tão francas eram as maneiras da rapariga; podia ser que a velha se enganasse ou mentisse; podia ser mesmo que a cantiga do mascate estivesse acabada. Tudo isso lhe passou pela cabeça, sem a forma precisa do raciocínio ou da reflexão, mas em tumulto e rápido. Genoveva deixou a porta aberta, fê-lo sentar-se, pediu-lhe notícias da viagem e achou-o mais gordo; nenhuma comoção nem intimidade. Deolindo perdeu a última esperança. Em falta de faca, bastavam-lhe as mãos para estrangular Genoveva, que era um pedacinho de gente, e durante os primeiros minutos não pensou em outra coisa.

        — Sei tudo, disse ele.

        — Quem lhe contou?

        Deolindo levantou os ombros.

        — Fosse quem fosse, tornou ela, disseram-lhe que eu gostava muito de um moço?

        — Disseram.

        — Disseram a verdade.

        Deolindo chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a ação dos olhos. Em seguida disse que, se lhe abrira a porta, é porque contava que era homem de juízo. Contou-lhe então tudo, as saudades que curtira, as propostas do mascate, as suas recusas, até que um dia, sem saber como, amanhecera gostando dele.

        — Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isto, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo.

         Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral das ações. O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se bem com a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo. Que vos parece? O pobre marujo citava o juramento de despedida, como uma obrigação eterna, diante da qual consentira em não fugir e embarcar: "Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte". Se embarcou, foi porque ela lhe jurou isso. Com essas palavras é que andou, viajou, esperou e tornou; foram elas que lhe deram a força de viver. Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte...

        — Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade que eu queria fugir com você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! Mas vieram outras coisas... Veio este moço e eu comecei a gostar dele...

        — Mas a gente jura é para isso mesmo; é para não gostar de mais ninguém...

        — Deixa disso, Deolindo. Então você só se lembrou de mim? Deixa de partes...

        — A que horas volta José Diogo?

        — Não volta hoje.

        — Não?

        — Não volta; está lá para os lados de Guaratiba com a caixa; deve voltar sexta-feira ou sábado... E por que é que você quer saber? Que mal lhe fez ele?

        Pode ser que qualquer outra mulher tivesse igual palavra; poucas lhe dariam uma expressão tão cândida, não de propósito, mas involuntariamente. Vede que estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez ele? Que mal lhe fez esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das pedras. Deolindo declarou, com um gesto de desespero, que queria matá-lo. Genoveva olhou para ele com desprezo, sorriu de leve e deu um muxoxo; e, como ele lhe falasse de ingratidão e perjúrio, não pôde disfarçar o pasmo. Que perjúrio? que ingratidão? Já lhe tinha dito e repetia que quando jurou era verdade. Nossa Senhora, que ali estava, em cima da cômoda, sabia se era verdade ou não. Era assim que lhe pagava o que padeceu? E ele que tanto enchia a boca de fidelidade, tinha-se lembrado dela por onde andou?

        A resposta dele foi meter a mão no bolso e tirar o pacote que lhe trazia. Ela abriu-o, aventou as bugigangas, uma por uma, e por fim deu com os brincos. Não eram nem poderiam ser ricos; eram mesmo de mau gosto, mas faziam uma vista de todos os diabos. Genoveva pegou deles, contente, deslumbrada, mirou-os por um lado e outro, perto e longe dos olhos, e afinal enfiou-os nas orelhas; depois foi ao espelho de pataca, suspenso na parede, entre a janela e a rótula, para ver o efeito que lhe faziam. Recuou, aproximou-se, voltou a cabeça da direita para a esquerda e da esquerda para a direita.

        — Sim, senhor, muito bonitos, disse ela, fazendo uma grande mesura de agradecimento. Onde é que comprou?

        Creio que ele não respondeu nada, não teria tempo para isso, porque ela disparou mais duas ou três perguntas, uma atrás da outra, tão confusa estava de receber um mimo a troco de um esquecimento. Confusão de cinco ou quatro minutos; pode ser que dois. Não tardou que tirasse os brincos, e os contemplasse e pusesse na caixinha em cima da mesa redonda que estava no meio da sala. Ele pela sua parte começou a crer que, assim como a perdeu, estando ausente, assim o outro, ausente, podia também perdê-la; e, provavelmente, ela não lhe jurara nada.

        — Brincando, brincando, é noite, disse Genoveva.

        Com efeito, a noite ia caindo rapidamente. Já não podiam ver o hospital dos Lázaros e mal distinguiam a ilha dos Melões; as mesmas lanchas e canoas, postas em seco, defronte da casa, confundiam-se com a terra e o lodo da praia. Genoveva acendeu uma vela. Depois foi sentar-se na soleira da porta e pediu-lhe que contasse alguma coisa das terras por onde andara. Deolindo recusou a princípio; disse que se ia embora, levantou-se e deu alguns passos na sala. Mas o demônio da esperança mordia e babujava o coração do pobre diabo, e ele voltou a sentar-se, para dizer duas ou três anedotas de bordo. Genoveva escutava com atenção. Interrompidos por uma mulher da vizinhança, que ali veio, Genoveva fê-la sentar-se também para ouvir "as bonitas histórias que o Sr. Deolindo estava contando". Não houve outra apresentação. A grande dama que prolonga a vigília para concluir a leitura de um livro ou de um capítulo, não vive mais intimamente a vida dos personagens do que a antiga amante do marujo vivia as cenas que ele ia contando, tão livremente interessada e presa, como se entre ambos não houvesse mais que uma narração de episódios. Que importa à grande dama o autor do livro? Que importava a esta rapariga o contador dos episódios?

        A esperança, entretanto, começava a desampará-lo e ele levantou-se definitivamente para sair. Genoveva não quis deixá-lo sair antes que a amiga visse os brincos, e foi mostrar-lhes com grandes encarecimentos. A outra ficou encantada, elogiou-os muito, perguntou se os comprara em França e pediu a Genoveva que os pusesse.

        — Realmente, são muito bonitos.

        Quero crer que o próprio marujo concordou com essa opinião. Gostou de os ver, achou que pareciam feitos para ela e, durante alguns segundos, saboreou o prazer exclusivo e superfino de haver dado um bom presente; mas foram só alguns segundos.

        Como ele se despedisse, Genoveva acompanhou-o até à porta para lhe agradecer ainda uma vez o mimo, e provavelmente dizer-lhe algumas coisas meigas e inúteis. A amiga, que deixara ficar na sala, apenas lhe ouviu esta palavra: "Deixa disso, Deolindo"; e esta outra do marinheiro: "Você verá." Não pôde ouvir o resto, que não passou de um sussurro.

        Deolindo seguiu, praia fora, cabisbaixo e lento, não já o rapaz impetuoso da tarde, mas com um ar velho e triste, ou, para usar outra metáfora de marujo, como um homem "que vai do meio caminho para terra". Genoveva entrou logo depois, alegre e barulhenta. Contou à outra a anedota dos seus amores marítimos, gabou muito o gênio do Deolindo e os seus bonitos modos; a amiga declarou achá-lo grandemente simpático.

        — Muito bom rapaz, insistiu Genoveva. Sabe o que ele me disse agora?

        — Que foi?

        — Que vai matar-se.

        — Jesus!

        — Qual o quê! Não se mata, não. Deolindo é assim mesmo; diz as coisas, mas não faz. Você verá que não se mata. Coitado, são ciúmes. Mas os brincos são muito engraçados.

        — Eu aqui ainda não vi destes.

        — Nem eu, concordou Genoveva, examinando-os à luz. Depois guardou-os e convidou a outra a coser. — Vamos coser um bocadinho, quero acabar o meu corpinho azul...

        A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte, alguns dos companheiros bateram-lhe no ombro, cumprimentando-o pela noite de almirante, e pediram-lhe notícias de Genoveva, se estava mais bonita, se chorara muito na ausência, etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir.

Fonte: ASSIS, Machado de. Volume de contos. Rio de Janeiro: Garnier, 1884

Entendendo o conto:

01 – Quem é Deolindo Venta-Grande e qual é o seu estado de espírito no início do conto?

      Deolindo Venta-Grande é um marujo que retorna de uma viagem de instrução e está feliz por estar de volta à terra.

02 – Qual é o nome da mulher por quem Deolindo está apaixonado?

      A mulher por quem Deolindo está apaixonado chama-se Genoveva.

03 – O que Genoveva promete a Deolindo antes de sua partida?

      Genoveva promete a Deolindo fidelidade e juram um ao outro que não se envolverão com mais ninguém durante a ausência de Deolindo.

04 – O que acontece quando Deolindo volta à casa de Genoveva após sua viagem?

      Ele descobre que Genoveva está envolvida com um mascate chamado José Diogo.

05 – O que Deolindo planeja fazer ao descobrir o relacionamento de Genoveva com José Diogo?

      Deolindo planeja matar José Diogo.

06 – Como Genoveva justifica sua mudança de sentimento em relação a Deolindo?

      Genoveva justifica sua mudança de sentimentos dizendo que, quando jurou fidelidade a Deolindo, era sincera, mas seu coração mudou durante a ausência dele.

07 – O que Deolindo presenteia Genoveva quando retorna?

      Deolindo presenteia Genoveva com um par de brincos.

08 – Como Genoveva reage ao presente de Deolindo?

      Genoveva fica encantada com o presente e expressa sua gratidão.

09 – O que Deolindo e Genoveva discutem na casa dela?

      Eles discutem a mudança nos sentimentos de Genoveva e o relacionamento dela com José Diogo.

10 – Como o conto termina?

      O conto termina com Deolindo saindo da casa de Genoveva, e Genoveva afirma que ele não se matará, enquanto a amiga elogia o comportamento de Deolindo na história.

 

 

domingo, 29 de outubro de 2023

CONTO: A DESEJADA DAS GENTES - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 Conto: A Desejada das Gentes

            Machado de Assis

        — Ah! Conselheiro, aí começa a falar em verso.

        — Todos os homens devem ter uma lira no coração, — ou não sejam homens. Que a lira ressoe a toda a hora, nem por qualquer motivo, não o digo eu, mas de longe em longe, e por algumas reminiscências particulares... Sabe por que é que lhe pareço poeta, apesar das Ordenações do Reino e dos cabelos grisalhos? é porque vamos por esta Glória adiante, costeando aqui a Secretaria de Estrangeiros... Lá está o outeiro célebre... Adiante há uma casa.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhU5wvzVJbDV-Uf80sWlGtqZZXT8fiqnJy_Pmu4ya6_uUndB7H5cXwLX2pLJXoiZdyDoG7IREs0RNUtSmUa-U5JYCnMV6n4NUOGaufehyEsMqO40YUrveA7wbF8c4yhvKigkNjho28MrJF45YhNO1vVzbZOwQ9NCiEFEaT5CPmp5Vm-rY3IfqcC2KJXxbI/s1600/DESEJADA.jpg


        — Vamos andando.

        — Vamos... Divina Quintília! Todas essas caras que aí passam são outras, mas falam-me daquele tempo, como se fossem as mesmas de outrora; é a lira que ressoa, e a imaginação faz o resto. Divina Quintília!

        — Chamava-se Quintília? Conheci de vista, quando andava na Escola de Medicina, uma linda moça com esse nome. Diziam que era a mais bela da cidade.

        — Há de ser a mesma, porque tinha essa fama. Magra e alta?

        — Isso. Que fim levou?

        — Morreu em 1859. Vinte de abril. Nunca me há de esquecer esse dia. Vou contar-lhe um caso interessante para mim, e creio que também para o senhor. Olhe, a casa era aquela... Morava com um tio, chefe de esquadra reformado, tinha outra casa no Cosme Velho. Quando conheci Quintília... Que idade pensa que teria, quando a conheci?

        — Se foi em 1855...

        — Em 1855.

        — Devia ter vinte anos.

        — Tinha trinta.

        — Trinta?

        — Trinta anos. Não os parecia, nem era nenhuma inimiga que lhe dava essa idade. Ela própria a confessava e até com afetação. Ao contrário, uma de suas amigas afirmava que Quintília não passava dos vinte e sete; mas como ambas tinham nascido no mesmo dia, dizia isso para diminuir-se a si própria.

        — Mau, nada de ironias; olhe que a ironia não faz boa cama com a saudade.

        — Que é a saudade senão uma ironia do tempo e da fortuna? Veja lá; começo a ficar sentencioso. Trinta anos; mas em verdade, não os parecia. Lembra-se bem que era magra e alta; tinha os olhos como eu então dizia, que pareciam cortados da capa da última noite, mas apesar de noturnos, sem mistérios nem abismos. A voz era brandíssima, um tanto apaulistada, a boca larga, e os dentes, quando ela simplesmente falava, davam-lhe à boca um ar de riso. Ria também, e foram os risos dela, de parceria com os olhos, que me doeram muito durante certo tempo.

        — Mas se os olhos não tinham mistérios...

        — Tanto não os tinham que cheguei ao ponto de supor que eram as portas abertas do castelo, e o riso o clarim que chamava os cavaleiros. Já a conhecíamos, eu e o meu companheiro de escritório, o João Nóbrega, ambos principiantes na advocacia, e íntimos como ninguém mais; mas nunca nos lembrou namorá-la. Ela andava então no galarim; era bela, rica, elegante, e da primeira roda. Mas um dia, no antigo Teatro Provisório entre dois atos dos Puritanos, estando eu num corredor, ouvi um grupo de moços que falavam dela, como de uma fortaleza inexpugnável. Dois confessaram haver tentado alguma cousa, mas sem fruto; e todos pasmavam do celibato da moça que lhes parecia sem explicação. E chalaceavam: um dizia que era promessa até ver se engordava primeiro; outro que estava esperando a segunda mocidade do tio para casar com ele; outro que provavelmente encomendara algum anjo ao porteiro do céu; trivialidades que me aborreceram muito, e da parte dos que confessavam tê-la cortejado ou amado, achei que era uma grosseria sem nome. No que eles estavam todos de acordo é que ela era extraordinariamente bela; aí foram entusiastas e sinceros.

        — Oh! ainda me lembro!... era muito bonita.

        — No dia seguinte, ao chegar ao escritório, entre duas causas que não vinham, contei ao Nóbrega a conversação da véspera. Nóbrega riu-se do caso, refletiu, e depois de dar alguns passos, parou diante de mim, olhando, calado. — Aposto que a namoras? perguntei-lhe. — Não, disse ele; nem tu? Pois lembrou-me uma cousa: vamos tentar o assalto à fortaleza? Que perdemos com isso? Nada, ou ela nos põe na rua, e já podemos esperá-lo, ou aceita um de nós, e tanto melhor para o outro que verá o seu amigo feliz. — Estás falando sério? — Muito sério. — Nóbrega acrescentou que não era só a beleza dela que a fazia atraente. Note que ele tinha a presunção de ser espírito prático, mas era principalmente um sonhador que vivia lendo e construindo aparelhos sociais e políticos. Segundo ele, os tais rapazes do teatro evitavam falar dos bens da moça, que eram um dos feitiços dela, e uma das causas prováveis da desconsolação de uns e dos sarcasmos de todos. E dizia-me: — Escuta, nem divinizar o dinheiro, nem também bani-lo; não vamos crer que ele dá tudo, mas reconheçamos que dá alguma cousa e até muita cousa, — este relógio, por exemplo. Combatamos pela nossa Quintília, minha ou tua, mas provavelmente minha, porque sou mais bonito que tu.

        — Conselheiro, a confissão é grave, foi assim brincando...?

        — Foi assim brincando, cheirando ainda aos bancos da academia, que nos metemos em negócio de tanta ponderação, que podia acabar em nada, mas deu muito de si. Era um começo estouvado, quase um passatempo de crianças, sem a nota da sinceridade; mas o homem põe e a espécie dispõe. Conhecíamo-la, posto não tivéssemos encontros frequentes; uma vez que nos dispusemos a uma ação comum, entrou um elemento novo na nossa vida, e dentro de um mês estávamos brigados.

        — Brigados?

        — Ou quase. Não tínhamos contado com ela, que nos enfeitiçou a ambos, violentamente. Em algumas semanas já pouco falávamos de Quintília, e com indiferença; tratávamos de enganar um ao outro e dissimular o que sentíamos. Foi assim que as nossas relações se dissolveram, no fim de seis meses, sem ódio, nem luta, nem demonstração externa, porque ainda nos falávamos, onde o acaso nos reunia; mas já então tínhamos banca separada.

        — Começo a ver uma pontinha do drama...

        — Tragédia, diga tragédia; porque daí a pouco tempo, ou por desengano verbal que ela lhe desse, ou por desespero de vencer, Nóbrega deixou-me só em campo. Arranjou uma nomeação de juiz municipal lá para os sertões da Bahia, onde definhou e morreu antes de acabar o quatriênio. E juro-lhe que não foi o inculcado espírito prático de Nóbrega que o separou de mim; ele, que tanto falara das vantagens do dinheiro, morreu apaixonado como um simples Werther.

        — Menos a pistola.

        —Também o veneno mata; e o amor de Quintília podia dizer-se alguma cousa parecido com isso, foi o que o matou, e o que ainda hoje me dói... Mas, vejo pelo seu dito que o estou aborrecendo...

        — Pelo amor de Deus. Juro-lhe que não; foi uma graçola que me escapou. Vamos adiante, conselheiro; ficou só em campo.

        — Quintília não deixava ninguém estar só em campo, — não digo por ela, mas pelos outros. Muitos vinham ali tomar um cálix de esperanças, e iam cear a outra parte. Ela não favorecia a um mais que a outro, mas era lhana, graciosa e tinha essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para homens ciumentos. Tive ciúmes amargos e, às vezes, terríveis. Todo argueiro me parecia um cavaleiro, e todo cavaleiro um diabo. Afinal acostumei-me a ver que eram passageiros de um dia. Outros me metiam mais medo, eram os que vinham dentro da luva das amigas. Creio que houve duas ou três negociações dessas, mas sem resultado. Quintília declarou que nada faria sem consultar o tio, e o tio aconselhou a recusa, — cousa que ela sabia de antemão. O bom velho não gostava nunca da visita de homens, com receio de que a sobrinha escolhesse algum e casasse. Estava tão acostumado a trazê-la ao pé de si, como uma muleta da velha alma aleijada, que temia perdê-la inteiramente.

        — Não seria essa a causa da isenção sistemática da moça?

        — Vai ver que não.

        — O que noto é que o senhor era mais teimoso que os outros...

        — ... Iludido, a princípio, porque no meio de tantas candidaturas malogradas, Quintília preferia-me a todos os outros homens, e conversava comigo mais largamente e mais intimamente, a tal ponto que chegou a correr que nos casávamos.

        — Mas conversavam de quê?

        — De tudo o que ela não conversava com os outros; e era de fazer pasmar que uma pessoa tão amiga de bailes e passeios, de valsar e rir, fosse comigo tão severa e grave, tão diferente do que costumava ou parecia ser.

        — A razão é clara: achava a sua conversação menos insossa que a dos outros homens.

        — Obrigado; era mais profunda a causa da diferença, e a diferença ia-se acentuando com os tempos. Quando a vida cá embaixo a aborrecia muito, ia para o Cosme Velho, e ali as nossas conversações eram mais frequentes e compridas. Não lhe posso dizer, nem o senhor compreenderia nada, o que foram as horas que ali passei, incorporando na minha vida toda a vida que jorrava dela. Muitas vezes quis dizer-lhe o que sentia, mas as palavras tinham medo e ficavam no coração. Escrevi cartas sobre cartas; todas me pareciam frias, difusas, ou inchadas de estilo. Demais, ela não dava ensejo a nada, tinha um ar de velha amiga. No princípio de 1857 adoeceu meu pai em Itaboraí; corri a vê-lo, achei-o moribundo. Este fato reteve-me fora da Corte uns quatro meses. Voltei pelos fins de maio. Quintília recebeu-me triste da minha tristeza, e vi claramente que o meu luto passara aos olhos dela...

        — Mas que era isso senão amor?

        — Assim o cri, e dispus a minha vida para desposá-la. Nisto, adoeceu o tio gravemente. Quintília não ficava só, se ele morresse, porque, além dos muitos parentes espalhados que tinha, morava com ela agora, na casa da Rua do Catete, uma prima, D. Ana, viúva; mas, é certo que a afeição principal ia-se embora e nessa transição da vida presente à vida ulterior podia eu alcançar o que desejava. A moléstia do tio foi breve; ajudada da velhice, levou-o em duas semanas. Digo-lhe aqui que a morte dele lembrou-me a de meu pai, e a dor que então senti foi quase a mesma. Quintília viu-me padecer, compreendeu o duplo motivo, e, segundo me disse depois, estimou a coincidência do golpe, uma vez que tínhamos de o receber sem falta e tão breve. A palavra pareceu-me um convite matrimonial; dois meses depois cuidei de pedi-la em casamento. D. Ana ficara morando com ela e estavam no Cosme Velho. Fui ali, achei-as juntas no terraço, que ficava perto da montanha. Eram quatro horas da tarde de um domingo. D. Ana, que nos presumia namorados, deixou-nos o campo livre.

        — Enfim!

        — No terraço, lugar solitário, e posso dizer agreste, proferi a primeira palavra. O meu plano era justamente precipitar tudo, com medo de que, cinco minutos de conversa me tirassem as forças. Ainda assim, não sabe o que me custou; custaria menos uma batalha, e juro-lhe que não nasci para guerras. Mas aquela mulher magrinha e delicada impunha-se-me, como nenhuma outra, antes e depois...

        — E então?

        — Quintília adivinhara, pelo transtorno do meu rosto, o que lhe ia pedir, e deixou-me falar para preparar a resposta. A resposta foi interrogativa e negativa. Casar para quê? Era melhor que ficássemos amigos como dantes. Respondi-lhe que a amizade era, em mim, desde muito, a simples sentinela do amor; não podendo mais contê-lo, deixou que ele saísse. Quintília sorriu da metáfora, o que me doeu, e sem razão; ela, vendo o efeito, fez-se outra vez séria e tratou de persuadir-me de que era melhor não casar. — Estou velha, disse ela; vou em trinta e três anos. — Mas se eu a amo assim mesmo, repliquei, e disse-lhe uma porção de cousas, que não poderia repetir agora. Quintília refletiu um instante; depois insistiu nas relações de amizade; disse que, posto que mais moço que ela, tinha a gravidade de um homem mais velho e inspirava-lhe confiança como nenhum outro. Desesperançado, dei algumas passadas, depois sentei-me outra vez e narrei-lhe tudo. Ao saber da minha briga com o amigo e companheiro da academia, e a separação em que ficamos, sentiu-se, não sei se diga, magoada ou irritada. Censurou-nos a ambos, não valia a pena que chegássemos a tal ponto. — A senhora diz isso porque não sente a mesma cousa. — Mas então é um delírio? — Creio que sim; o que lhe afianço é que ainda agora, se fosse necessário, separar-me-ia dele uma e cem vezes; e creio poder afirmar-lhe que ele faria a mesma cousa. Aqui olhou ela espantada para mim, como se olha para uma pessoa cujas faculdades parecem transtornadas; depois abanou a cabeça, e repetiu que fora um erro; não valia a pena. — Fiquemos amigos, disse-me, estendendo a mão. — É impossível; pede-me cousa superior às minhas forças, nunca poderei ver na senhora uma simples amiga; não desejo impor-lhe nada; dir-lhe-ei até que nem mais insisto, porque não aceitaria outra resposta agora. Trocamos ainda algumas palavras, e retirei-me... Veja a minha mão.

        — Treme-lhe ainda...

        — E não lhe contei tudo. Não lhe digo aqui os aborrecimentos que tive, nem a dor e o despeito que me ficaram. Estava arrependido, zangado, devia ter provocado aquele desengano desde as primeiras semanas, mas a culpa foi da esperança, que é uma planta daninha, que me comeu o lugar de outras plantas melhores. No fim de cinco dias saí para Itaboraí, onde me chamaram alguns interesses do inventário de meu pai. Quando voltei, três semanas depois, achei em casa uma carta de Quintília.

        — Oh!

        — Abri-a alvoroçadamente: datava de quatro dias. Era longa; aludia aos últimos sucessos, e dizia cousas meigas e graves. Quintília afirmava ter esperado por mim todos os dias, não cuidando que eu levasse o egoísmo até não voltar lá mais, por isso escrevia-me, pedindo que fizesse dos meus sentimentos pessoais e sem eco uma página de história acabada; que ficasse só o amigo, e lá fosse ver a sua amiga. E concluía com estas singulares palavras: "Quer uma garantia? Juro-lhe que não casarei nunca." Compreendi que um vínculo de simpatia moral nos ligava um ao outro; com a diferença que o que era em mim paixão específica, era nela uma simples eleição de caráter. Éramos dois sócios, que entravam no comércio da vida com diferente capital: eu, tudo o que possuía; ela, quase um óbolo. Respondi à carta dela nesse sentido; e declarei que era tal a minha obediência e o meu amor, que cedia, mas de má vontade, porque, depois do que se passara entre nós, ia sentir-me humilhado. Risquei a palavra ridículo, já escrita, para poder ir vê-la sem este vexame; bastava o outro.

        — Aposto que seguiu atrás da carta? É o que eu faria, porque essa moça, ou eu me engano ou estava morta por casar com o senhor.

        — Deixe a sua fisiologia usual; este caso é particularíssimo.

        — Deixe-me adivinhar o resto; o juramento era um anzol místico; depois, o senhor, que o recebera, podia desobrigá-la dele, uma vez que aproveitasse com a absolvição. Mas, enfim, correr à casa dele.

        — Não corri; fui dois dias depois. No intervalo, respondeu ela à minha carta com um bilhete carinhoso, que rematava com esta ideia: "não fale de humilhação, onde não houve público." Fui, voltei uma e mais vezes e restabeleceram-se as nossas relações. Não se falou em nada; ao princípio, custou-me muito parecer o que era dantes; depois, o demônio da esperança veio pousar outra vez no meu coração; e, sem nada exprimir, cuidei que um dia, um dia tarde, ela viesse a casar comigo. E foi essa esperança que me retificou aos meus próprios olhos, na situação em que me achava. Os boatos de nosso casamento correram mundo. Chegaram aos nossos ouvidos; eu negava formalmente e sério; ela dava de ombros e ria. Foi essa fase da nossa vida a mais serena para mim, salvo um incidente curto, um diplomata austríaco ou não sei que, rapagão, elegante, ruivo, olhos grandes e atrativos, e fidalgo ainda por cima. Quintília mostrou-se-lhe tão graciosa, que ele cuidou estar aceito, e tratou de ir adiante. Creio que algum gesto meu, inconsciente, ou então um pouco da percepção fina que o céu lhe dera, levou depressa o desengano à legação austríaca. Pouco depois ela adoeceu; e foi então que a nossa intimidade cresceu de vulto. Ela, enquanto se tratava, resolveu não sair, e isso mesmo lhe disseram os médicos. Lá passava eu muitas horas diariamente. Ou elas tocavam, ou jogávamos os três, ou então lia-se alguma cousa; a maior parte das vezes conversávamos somente. Foi então que a estudei muito; escutando as suas leituras vi que os livros puramente amorosos achava-os incompreensíveis, e, se as paixões aí eram violentas, largava-os com tédio. Não falava assim por ignorante; tinha notícia vaga das paixões, e assistira a algumas alheias.

        — De que moléstia padecia?

        — Da espinha. Os médicos diziam que a moléstia não era talvez recente, e ia tocando o ponto melindroso. Chegamos assim a 1859. Desde março desse ano a moléstia agravou-se muito; teve uma pequena parada, mas para os fins do mês chegou ao estado desesperador. Nunca vi depois criatura mais enérgica diante da iminente catástrofe; estava então de uma magreza transparente, quase fluida; ria, ou antes, sorria apenas, e vendo que eu escondia as minhas lágrimas, apertava-me as mãos agradecida. Um dia, estando só com o médico, perguntou-lhe a verdade; ele ia mentir, ela disse-lhe que era inútil, que estava perdida. — Perdida, não, murmurou o médico. — Jura que não estou perdida? — Ele hesitou, ela agradeceu-lhe. Uma vez certa que morria, ordenou o que prometera a si mesma.

        — Casou com o senhor, aposto?

        — Não me relembre essa triste cerimônia; ou antes, deixe-me relembrá-la, porque me traz algum alento do passado. Não aceitou recusas nem pedidos meus; casou comigo à beira da morte. Foi no dia 18 de abril de 1859. Passei os últimos dois dias, até 20 de abril ao pé da minha noiva moribunda, e abracei-a pela primeira vez feita cadáver.

        — Tudo isso é bem esquisito.

        — Não sei o que dirá a sua fisiologia. A minha, que é de profano, crê que aquela moça tinha ao casamento uma aversão puramente física. Casou meio defunta, às portas do nada. Chame-lhe monstro, se quer, mas acrescente divino.

Fonte: Contos Consagrados – Machado de Assis – Coleção Prestígio – Ediouro – s/d.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o cenário em que a conversa entre os personagens ocorre no início do conto?

      A conversa entre os personagens começa enquanto eles estão caminhando pela Glória, próximo à Secretaria de Estrangeiros.

02 – Qual é a primeira impressão do narrador sobre Quintília?

      O narrador descreve Quintília como magra e alta, com olhos que ele compara a "cortados da capa da última noite", mas sem mistérios nem abismos.

03 – Qual foi a reação dos outros rapazes em relação a Quintília no Teatro Provisório?

      Os outros rapazes expressaram surpresa com o fato de Quintília não se casar e fizeram piadas sobre possíveis razões, como ela estar esperando engordar ou esperando a segunda mocidade de seu tio.

04 – Por que o narrador e seu amigo Nóbrega decidiram tentar conquistar Quintília?

      O narrador e Nóbrega decidiram tentar conquistar Quintília após ouvirem os rapazes no Teatro Provisório falando sobre como ela era uma "fortaleza inexpugnável" e como eles haviam falhado em conquistá-la.

05 – O que levou à separação do narrador e de Nóbrega na busca de conquistar Quintília?

      A separação entre o narrador e Nóbrega ocorreu porque ambos se apaixonaram por Quintília, o que causou uma briga e uma separação em suas relações.

06 – Como o narrador descreve as conversas que tinha com Quintília?

      O narrador descreve as conversas com Quintília como sendo diferentes das conversas que ela tinha com os outros homens. Elas eram mais íntimas, graves e frequentes, especialmente quando se encontravam no Cosme Velho.

07 – Qual foi a resposta de Quintília quando o narrador a pediu em casamento?

      Quando o narrador pediu Quintília em casamento, ela respondeu negativamente e sugeriu que eles continuassem como amigos. Ela alegou que estava envelhecendo e que era melhor que eles permanecessem amigos.

08 – Por que o narrador aceitou a proposta de Quintília de manter uma amizade e não insistiu no casamento?

      O narrador aceitou a proposta de Quintília de manter uma amizade e não insistiu no casamento devido à esperança de que, com o tempo, ela mudasse de ideia e concordasse em casar com ele.

09 – Qual evento finalmente levou Quintília a aceitar o casamento com o narrador?

      A grave doença de Quintília e a perspectiva de sua morte iminente a levaram a aceitar o casamento com o narrador. Eles se casaram pouco antes de sua morte, em 20 de abril de 1859.