Conto: O coração comido – parte II
Gilles Massardier
Levei vários minutos para entender e
forçar o engenhoso mecanismo da passagem secreta. Finalmente ela se abriu, com
muitos rangidos e estalos, revelando uma escada de pedra em caracol, que
mergulhava nas trevas; Escutei atentamente: reinava um silêncio mortal. Acendi
uma tocha no braseiro e enveredei, todos os meus sentidos alertas, pela
passagem, fechando a porta atrás de mim. Tinha a impressão de entrar num
túmulo.
Após uma descida que me pareceu
interminável, desemboquei numa estreita tripa de pedra cujas paredes suavam de
umidade e fediam a mofo. Eu devia estar nas entranhas do castelo. Uma corrente
de ar glacial atravessou o tecido rústico do meu hábito. Arrepiei-me todo.
Avancei lentamente rente as paredes, tendo como única luz a da minha tocha,
tomando cuidado para não cair em algum alçapão.
Meus nervos estavam no auge da tensão;
o sangue palpitava em minhas têmporas.
O arrastar das minhas sandálias nas
lajotas repercutia de parede em parede, enchendo a passagem de ecos. Eu fazia
mais barulho do que vinte homens juntos.
Aquilo me tranquilizava e, ao mesmo
tempo, me inquietava.
O corredor bifurcou à direita, depois à
esquerda, depois novamente à direita, antes de dar numa sala fechada por três
portinhas. Abri a que estava à minha frente e passei por ela: dava num
corredor, pelo qual segui. Ao fim de uma centena de metros, cheguei a uma
segunda sala, também ela com várias portas. As passagens e os entroncamentos se
multiplicavam infinitamente: eu estava num labirinto! Não tinha a menor
intenção de abandonar minhas investigações, mas o risco de me perder naqueles
subterrâneos não me entusiasmava nem um pouco. Eu tinha de tomar certas
precauções, antes de aventurar-me mais profundamente por ali.
Minhas mãos remexeram nervosamente as
dobras do meu hábito e tiraram dele um tinteiro de chifre, que por sorte
esquecera de guardar na biblioteca. Ele ia ser utilíssimo.
Animado com a descoberta, continuei meu
caminho naquele dédalo de túneis e corredores, desenhando com os dedos uma cruz
nas paredes, a fim de marcar minha passagem. Mas a reserva de tinta não demorou
a acabar. Furioso, pensei em voltar, quando o corredor que eu tomara terminou
num beco. No fundo, percebi uma forma encostada na parede, sentada, imóvel,
silenciosa. Após um momento de hesitação, aproximei-me. Um corpo banhava numa
poça de sangue coagulado. A julgar pela rigidez cadavérica e pelo estado de
decomposição, a morte devia remontar a mais de um dia, talvez dois. Tinha sido
espancado brutalmente: estava coberto de ferimentos. O mais horrível, porém,
era o enorme buraco no lado esquerdo do peito. Tinham arrancado seu coração! Diante de tamanha abominação, meus cabelos
ficaram em pé.
Uma viela despedaçada, bem como as
páginas ensanguentadas e rasgadas de um pequeno manuscrito, estavam espalhadas
ao lado do cadáver. Peguei uma das folhas de pergaminho e decifrei seu
conteúdo: o fragmento de um conto cortês que não pude identificar. A verdade
revelou-se, terrível: eu havia encontrado o namorado de Béatrice!
Subi o mais depressa que minhas pernas e
o meandros do labirinto permitiam. Emergi enfim nos aposentos do barão. Nesse
instante, uma voz sonora me fez estremecer:
“Ora, vejam só, frei Adalbert!
Visitando o castelo, irmão?”
Giraud de Valgaillard me encarava. Medi
então toda a minha imprudência. Fiquei petrificado, incapaz de um só movimento,
a língua colada ao céu da boca, as pernas trêmulas. Larguei as folhas
sangrentas que trouxera da masmorra.
Passado o primeiro instante de estupor,
recobrando o controle, sustentei seu olhar e acusei-o:
“Eu sei de TUDO, senhor Giraud! O
senhor é um ASSASSINO!”
“Bravo! Bela réplica, frei Adalbert! Está
ensaiando para um mistério?”, ele me interrompeu ironicamente.
Sua boca contraiu-se num riso cruel.
“Chegou na hora certa, frei Adalbert.
Eu queria mesmo me confessar...”
Fingi não entender.
“Frei Adalbert, confesse-me!”, disse
ele com uma voz sibilante, apontando para um banco.
A cólera contida arroxeava os arranhões
que marcavam sua bochecha esquerda. Sus olhos giravam loucamente nas órbitas.
De repente sua fisionomia se aplacou;
sua voz tornou-se suplicante:
“Frei Adalbert, o senhor não pode
recusar...”
Impotente, sentei-me diante dele,
pronto para ouvir a longa lista dos seus pecados.
“O senhor certamente sabe que um
fazedor de versos seduziu sua aluna, minha querida filha. Calarei as
circunstâncias do encontro dos dois para entrar logo no assunto. O amor é cego,
cego e imprudente... Ah, que tolos! Será que acreditavam mesmo que sua paixão
nunca seria descoberta? Que eu permitiria uma aliança descabido como aquela?
Anteontem, peguei em flagrante os dois pombinhos, que Agnès mimava. Com meus
homens, agarrei o amante da minha filha e prometi a ela que o baniria de minhas
terras sem fazer-lhe nenhum mal. Na verdade, mandei leva-lo para os
subterrâneos do castelo, matei-o e, com minhas próprias mãos, arranquei-lhe o
coração.”
Ontem, fui ver minha filha em seu
quarto.
“Minha criança, eu lhe perdoo esse
namorico. Como prova da minha sinceridade, você e esse... rapaz serão meus
convidados de honra, esta noite mesmo.”
“Deixei-a entregue a sua alegria
recobrada, inconsciente da minha perfídia, e desci quatro a quatro os degraus
que levam às dependências de serviço do castelo.”
“Preparem a sala principal! Ponham a
mesa com uma toalha branca bordada e a baixela de prata! Andem! Criados,
cozinheiros, ao trabalho!”.
“Enquanto os preparativos do banquete
iam de vento em popa, chamei à parte meu cozinheiro e entreguei-lhe o coração
do moço:
“Tome! Prepare-o a seu modo. Conto com
você para fazer com ele um prato saboroso, digno de uma rainha. Vai servi-lo
esta noite à minha meiga filha”.
“Chegada a hora, um serviçal anunciou o
jantar com um toque de trompa. Lavamos as mãos antes de nos sentarmos à mesa. Béatrice,
é claro, espantou-se ao não ver o amado.”
“Pai, onde está ele? Por que ainda não
está aqui?”
“Calma, querida! Ele já vem. Em
carne... Mandou dizer que chegará atrasado.”
“Eu não estava com o menor apetite
naquela noite, em compensação não parei de esvaziar minha taça e logo me
embriaguei.”
“De ótimo humor, minha filha provou um
pouco de cada prato. Adora o coração ensopado, que repete até acabar o prato.
Esquecendo-se das boas maneiras, lambe os dedos úmidos de molho.”
“Pai, que delícia estava essa carne!!”
“Não me espanta que tenha apreciado
esse prato. Você não podia deixar de saborear, guisado e temperado, o que você
adorava vivo e palpitante.”
“Desculpe, não estou entendendo. O que
o senhor me deu para comer?”
“Minha filha, esta carne que tanto lhe
agradou, outra coisa não era que o coração do seu namorado. O lindo coração lhe
serviu de alimento. Aqui está a prova do que digo: o anel que tirei do cadáver
do seu trovador. Ó delícias do amor!”
“A náusea se apodera da minha filha,
que se curvou para o chão e vomita. Depois, enfurecida, precipita-se sobre mim,
unhas à mostra. Uma saraivada de socos e arranhões se abate sobre meu rosto e
meu peito, mas continuei a zombar:”
“Ele não queria lhe dar o coração? O
desejo dele foi satisfeito! Melhor ele não podia esperar. Agora vocês estão
reunidos. Você consumiu o seu amor. Devorou-o com apetite!”
“De repente, ela se acalma; seus punhos
pararam de me bater. Seu rosto perde a expressão. Suas mãos põem-se a rodopiar
como se tocassem um instrumento imaginário, enquanto ela entoa uma cantilena
obsessiva. Sua razão fraqueja. Ela promete ir ao encontro do amado... Presa do
delírio, foge da sala. Corre para as galerias superiores e atira-se no vazio.
Morreu louca e amaldiçoada.”
“Pronto! O senhor agora sabe de toda a
história, frei Adalbert. Mas para que servirá saber, se não pode contar nada a
ninguém? O segredo da confissão condena o senhor ao silêncio. Quem irá cobrar
por meus atos?”
Nenhuma palavra de arrependimento,
nenhum remorso saiu dos lábios do senhor Giraud. Ele até se orgulhava do seu
feito! Apavorado, fugi do castelo, deixando o castelão impune.
Dez anos se passaram desde esses
terríveis acontecimentos. Soube recentemente que o Senhor Giraud de Valgaillard
multiplicara suas peregrinações, antes de morrer combatendo na oitava cruzada.
Sua morte foi heroica, dizem. Ele teria entrado no sangrento corpo a corpo
berrando como um possesso: “Béatrice! Deus! Perdão!” Não era um grito de
guerra.
Eu, Adalbert, frade, sei da falta da
qual ele tentava redimir-se, em vão. Que Deus, Nosso Senhor Onipotente, tenha
piedade da sua alma!
Adaptado de Gilles
MASSARDIER. Contos e lendas da Europa Medieval. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
Fonte: Língua
Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula
Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P. 22-7.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Dédalo: labirinto.
·
Impune: sem punição.
·
Mistério: peça de teatro com tema religioso.
·
Pasto: comida, alimento.
·
Perfídia: ação traiçoeira, desleal.
02 – O tom do mistério
caracteriza grande parte do conto, graças a alguns recursos usados. Entre os
elementos do gênero conto dados abaixo, quais contribuem para a criação do
clima de mistério em “O coração comido”?
a)
A narração em primeira pessoa.
b)
A caracterização do espaço.
c)
A narração em tempo cronológico.
d)
A narração em tempo psicológico.
e)
A época em que se deram os
acontecimentos.
f)
As características das personagens.
g)
O enredo.
03 – Uma fórmula narrativa é
uma espécie de modelo que muitos autores usam para contar uma história. Pode-se
afirmar que “O coração comido” segue
uma fórmula? Dê exemplos que justifiquem sua resposta.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: A caracterização dos espaços sempre escuros ou sombrios, o
início com um acontecimento trágico e inexplicável são elementos comuns a
qualquer conto de mistério.
04 – A descrição é
fundamental na construção de um conto de mistério; é por meio dela que o leitor
tem a possibilidade de imaginar as personagens e os lugres descritos. Se a
descrição for eficiente, poderá garantir a tensão necessária ao desenvolvimento
do enredo, até o momento do desfecho. Releia os parágrafos de 2 a 5 e indique
no caderno os elementos do ambiente responsáveis por manter o leitor em
expectativa.
O fato de a
escada estar totalmente escura, sendo iluminada apenas pela tocha que o frei
carrega; as várias bifurcações do corredor; as salas com mais de uma porta; os
corredores imensos; as passagens e os entroncamentos.
05 – A partir do momento em
que frei Adalbert adentra as entranhas do castelo, uma sequência de situações
aumenta a tensão criada no conto. Observe que para criar essa tensão o narrador
destaca a ausência de controle da personagem sobre os acontecimentos e, além
disso, provoca no leitor uma expectativa em relação às soluções adotadas.
Entretanto, para garantir a tensão, todas as expectativas deverão ser
frustradas. Observe:
“Minhas
mãos remexeram nervosamente as dobras do meu hábito e tiraram dele um tinteiro
de chifre, que por sorte esquecera de guardar na biblioteca. Ele ia ser
utilíssimo.
Animado com a descoberta, continuei meu
caminho naquele dédalo de túneis e corredores, desenhando com os dedos uma cruz
nas paredes, a fim de marcar minha passagem.”
·
Expectativa
criada no leitor: O leitor imagina que o narrador-personagem,
com esse recurso, vai poder percorrer o labirinto em segurança, sem o perigo de
perder-se.
·
O
que acontece: A tinta acaba, e o narrador-personagem,
furioso, pensa em voltar antes de concluir a investigação.
Agora complete no caderno:
a) Furioso, pensei em voltar, quando o
corredor que eu tomara terminou num beco.
·
Expectativa
criada no leitor: O leitor imagina que
talvez frei Adalbert volte para o quarto do barão e deixe para depois as
investigações.
·
O
que acontece: Frei Adalbert depara
com uma forma encostada na parede, sentada, imóvel, silenciosa.
b) Subi o mais depressa que minhas pernas e
os meandros do labirinto permitiam. Emergi enfim nos aposentos do barão.
·
Expectativa criada no leitor: O leitor é levado a acreditar que o frei, agora com as provas
do crime, denunciará o barão pela atrocidade que cometeu ou que o barão matará
o frei.
·
O
que acontece: O barão estava em
seus aposentos e aguardava o frei.
06 – A reação do frei
Adalbert ao encontrar o barão a sua espera reforça a tensão narrativa:
“Medi
então toda a minha imprudência. Fiquei petrificado, incapaz de um só movimento,
a língua colada ao céu da boca, as pernas trêmulas. Larguei as folhas
sangrentas que trouxera da masmorra.”
a)
Frei Adalbert tinha motivos para sentir medo
do barão?
Sim, pois vira do que o barão era capaz. Além disso, sabendo que o
frei tomara conhecimento do assassinato do trovador, o senhor de Valgaillard
poderia tentar mata-lo para não ser denunciado.
b)
O barão, no entanto, quebra a expectativa do
narrador-personagem e a do leitor. Explique a estratégia adotada pelo barão
para se livrar da acusação de frei Adalbert.
O barão resolve confessar tudo o que fizera, assim teria a garantia
do silêncio do frei. “Pronto! O senhor agora sabe de toda a história, frei
Adalbert. Mas para que servirá saber, se não pode contar nada a ninguém? O
segredo da confissão condena o senhor ao silêncio.”
07 – O relato do barão
revela mais do que sua personalidade assassina. Explique essa afirmação
apresentando informações do texto.
O barão, além de assassino, era frio e
sádico, pois fora capaz não só de assassinar o namorado da filha, mas de
agredi-la e humilhá-la fazendo-a comer o coração do amado.
08 – Ao final da confissão
do castelão, o que mais surpreende o frei?
O fato de o barão
não parecer sentir remorso, não se mostrar arrependido do que fez. Ao
contrário, até se orgulhava do que fizera.
09 – O desfecho do texto
(penúltimo parágrafo) faz referência a um comportamento surpreendente do barão.
Ao relatá-lo, o narrador sugere ter havido uma grande mudança no comportamento
do pai de Béatrice.
a)
Que mudança foi essa?
O barão arrependeu-se do que fez.
b)
O que o barão resolveu fazer para aplacar
esse novo sentimento?
Lutar nas cruzadas.