Conto: O peru
de natal
Mário de Andrade
Publicado na revista da Academia
Paulista de Letras em 1942 e, posteriormente, na obra póstuma Contos
Novos, de 1947, o protagonista Juca está cansado de cultivar o luto pelo pai,
morto meses antes. Está cansado, na verdade, das regras antes impostas pela
figura patriarcal e agora pelas convenções religiosas. Um cansaço que
se concretiza nas ceias natalinas que ele havia desde sempre desfrutado,
preparadas de acordo com a “natureza cinzenta” do pai. “Meu pai fora de um bom
errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.”
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiNWeGQnkuJVpUq6oHFRP3GneGgHiM6ReU21wctaiNiO2vhXR4mYpATssb-WRYd__Xn4X51_RVlO24XQ6DaCXdOTrjNvtd9ZFQLWMG8PM1Cm6tiZrn3u6RKojCaHIfgdb4WnVi2p7j6Vb9q1XvAKBOvWOUqVOxPcqy6TX9mcF1FgmXjI6xdRIZ-yHRdRZM/s1600/PERU.jpg
“Era costume sempre, na família, a ceia
de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos,
passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto
discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes…), empanturrados de
castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama.”
Considerado algo como a ovelha-negra
da família, sempre inventando moda e avesso às regras, Juca decidiu assim
finalizar o luto e o pesar pelo pai morto:
— Bom, no Natal, quero comer peru.
Houve um desses espantos que ninguém
não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu
que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.
— Mas quem falou de convidar ninguém!
essa mania… Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em
casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo…
— Meu filho, não fale assim…
— Pois falo, pronto!
E descarreguei minha gelada indiferença
pela nossa parentagem infinita, diz que vinda de bandeirantes, que bem me
importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado,
não perdi a ocasião. Me deu de supetão uma ternura imensa por mamãe e titia,
minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a
vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam
peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já
preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e
dos doces. […]
Não, não se convidava ninguém, era um
peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os
miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só
com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa-preta, nozes e um cálice
de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro
que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo
naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar
receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo
que com meus “gostos”, já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num
vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe
adorava cerveja.
Juca queria um peru de Natal para cinco
pessoas, com duas farofas, uma gorda de miúdos, outra seca, com bastante
manteiga. A receita de Rose, sua namorada, como se revela depois, levava ainda
os adocicados típicos dessa época e trazidos da Europa: nozes, vinho jerez. O
melhor acompanhamento para uma receita tão elegante seria, naturalmente, “um
vinho bom, completamente francês”. Mas ele teve de ceder à cerveja, bebida
popular apreciada pela mãe, o que não seria nenhuma heresia. O ritual, afinal,
seria de desamarração geral: do luto e da figura do pai cinzento.
E foi feito o peru do “mais maravilhoso
Natal” da família de Juca. E foi cortado em fatias fartas, como nunca havia
acontecido antes. Em vez de a mãe cumprir a então somente-feminina tarefa de
servir as pessoas, foi o filho feliz que se encarregou dos serviços e de
deixar a parte mais nobre do peito da ave para ela – que, de surpresa e
satisfação, chorou. E o choro remeteu ao pai morto, que voltava a se fazer vivo
e a disputar espaço com o peru.
Principiou uma luta baixa entre o peru
e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está
claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios
visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de
papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.
— Só falta seu pai…
Eu nem comia, nem podia mais gostar
daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois
mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me
tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da
nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:
— É mesmo… Mas papai, que queria tanto
bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar
contente… (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós
todos reunidos em família.
E todos principiaram muito calmos,
falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma
estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque
papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que
“vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo.
Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do
céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O
único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.
E o peru/pai foi consumido ali:
havia um prazer que não se podia esconder de ver o primeiro sumir do prato
e o segundo sair de casa direto para seu devido lugar, o céu distante. A
vivacidade de Juca venceu o ultrapassado defunto, mas, ironicamente, toda a
história do peru só serviu para que a posição antes ocupada pelo pai não
sumisse, mas trocasse de dono: agora era ele, o filho mais velho, o
“patriarca” da família, quem daria as ordens, ainda que elas fossem, para ele,
mais livres e prazerosas.
“Minha mãe, minha tia, nós, todos
alagados de felicidade. Ia escrever ‘felicidade gustativa’, mas não era só
isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de
outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi
aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo,
reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso
de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou
exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é
impossível conceber.”
O conto de Juca talvez tenha sido
apenas um conto, talvez tenha sido uma peça da autobiografia que Mário de
Andrade foi escrevendo por meio de seus personagens. De qualquer
maneira, o protagonista e o cenário descrito em O Peru de
Natal têm mais semelhanças do que discrepâncias em relação à vida e ao
ambiente em que seu criador estava inserido. Assim como Juca, Mário perdeu
ainda na juventude o pai – o primeiro, aos 19 anos, o segundo, aos 24. Tinha
também “três mães” – que, na vida do escritor, eram sua mãe Mariquinha (Maria
Luísa Almeida Leite Moraes Andrade), sua irmã Maria de Lourdes e sua
tia Nhanhã (Ana Francisca de Almeida Leite Moraes).
A filósofa e crítica literária Gilda de
Mello e Souza (1919-2005), prima de Mário, conviveu com ele e suas três
mães na famosa casa da Rua Lopes Chaves, na Barra Funda, em São Paulo. Em
depoimento concedido no Centro Cultural São Paulo, em 1992, Gilda
conta que, durante a velhice de dona Mariquita, “ele passou a servir a
mesa”, tal qual Juca o fez naquela noite. Para a prima, aliás, o conto em
questão seria um eco da cozinha da família. “O Peru de Natal, de uma certa
maneira, devolve ao leitor o que era uma festa ou um jantar elaborado na casa
de Mário”, lembra ela.
As receitas
açucaradas eram especialidades da mãe do escritor, que era tida,
inclusive, como uma grande doceira da cidade. Seus afamados bom bocados de
queijo mais os bolos e biscoitos como os amanteigados – os prediletos de Mário,
“uma maravilha de apresentação, uma delícia sem fim” – começavam a ser
preparados nas vésperas dos dias festivos. Na manhã antes do evento, a
trabalheira continuava porque aí vinham as coxinhas, as empadinhas e o peru,
que tinha de ter as duas farofas, exatamente como descrito “O Peru de Natal”,
recorda-se Gilda.
O peru recheado não era, assim,
restrito ao Natal. Estava mais para uma daquelas receitas especiais que cabem
em qualquer ocasião especial do ano. Ao contar a história de Juca e do
pai/peru, Mário de Andrade inseriu dados interessantes sobre o cotidiano que
ele próprio vivenciava, em casa, gostando ou não da parentada que, segundo a
prima, aparecia mesmo nos aniversários para se fartar dos quitutes.
Esqueceu-se, no entanto, de passar a receita que lhe trouxe mais do que
“felicidade gustativa”. O Lembraria foi procurar em dois livros de culinária,
um dos anos 1930, outro dos 1940, os segredos do peru recheado. E descobriu que
estes eram, na verdade, um só: embebedar o bicho!
Mário de Andrade.
Entendendo o conto:
01 – Por que o
narrador-protagonista trouxe um peru para o Natal?
Trouxe um peru
para o Natal como parte de uma tradição familiar e para surpreender sua mãe,
dona Isabel.
02 – Que sentimento o conto
transmite?
Transmite uma
atmosfera de carinho familiar e nostalgia.
03 – Que ruptura esse fato
marca na vida da família?
A chegada do peru
de Natal simboliza uma ruptura com a tristeza e a falta de esperança que
acompanham a perda do pai, trazendo uma luz de otimismo e lembranças felizes
para a família em um momento significativo do ano.
04 – Como eram as ceias de
Natal à época do pai do nosso narrador?
As ceias de Natal eram momentos especiais
e tradicionais para a família, cheios de alegria, união e afeto, que
transcendem as dificuldades da vida cotidiana.