Romance: A moreninha – capítulo 23 (fragmento)
Joaquim Manuel de Macedo
[...]
-- Então... pede-me para sua esposa?...
-- A senhora o ouviu há pouco.
-- Pois bem, Sr. Augusto, veja como
verificou-se o prognóstico que fiz do seu futuro! Não se lembra que aqui mesmo
lhe disse “que não longe estava o dia em que o Sr. havia de esquecer sua
mulher”?
-- Mas eu nunca fui casado... murmurou
o estudante!...
-- Oh! isso é uma recomendação contra a
sua constância!...
-- E quem tem culpa de tudo, senhora?
-- Muito a tempo ainda me lança em
rosto a parte que tenho na sua infidelidade, pois, eu emendarei a mão agora. O
senhor há de cumprir a palavra que deu há sete anos!
Augusto recuou dois passos.
-- O senhor é um moço honrado,
continuou a cruel Moreninha, e, portanto, cumprirá a palavra que deu, e só
casará com sua desposada antiga.
[...]
D. Carolina deixou cair uma lágrima e
falou ainda, mas já com voz fraca e trêmula:
-- Sim, deve partir... vá... Talvez
encontre aquela a quem jurou amor eterno... Ah! senhor! nunca lhe seja perjuro.
-- Se eu encontrasse!...
-- Então?... que faria?...
-- Atirar-me-ia a seus pés,
abraçar-me-ia com eles e lhe diria: “Perdoai-me, perdoai-me, senhora, eu já não
posso ser vosso esposo! tomai a prenda que me deste...”
E o infeliz amante arrancou debaixo da
camisa um breve, que convulsivamente apertou na mão.
-- O breve verde!... exclamou D.
Carolina, o breve que contém a esmeralda!...
-- Eu lhe diria, continuou Augusto:
“recebei este breve que já não devo conservar, porque eu amo outra que não sois
vós, que é mais bela e mais cruel do que vós!...”
A cena se estava tornando patética;
ambos choravam e só passados alguns instantes a inexplicável Moreninha pôde
falar e responder ao triste estudante.
-- Oh! pois bem, disse; vá ter com sua
desposada, repita-lhe o que acaba de dizer, e se ela ceder, se perdoar, volte
que eu serei sua... esposa.
-- Sim... eu corro... Mas, meu Deus,
onde poderei achar essa moça a quem não tornei a ver, nem poderei conhecer?...
onde meu Deus?... onde?...
E tornou a deixar correr o pranto, por
um momento suspendido.
-- Espere, tornou D. Carolina, escute,
senhor. Houve um dia, quando a minha mãe era viva, em que eu também socorri um
velho moribundo. Como o senhor e sua camarada, matei a fome de sua família e
cobri a nudez de seus filhos; em sinal de reconhecimento também este velho me
fez um presente: deu-me uma relíquia milagrosa que, asseverou-me ele, tem o
poder uma vez na vida de quem a possui, de dar o que se deseja; eu cosi essa
relíquia dentro de um breve; ainda não lhe pedi coisa alguma, mas trago-a
sempre comigo; eu lha cedo... tome o breve, descosa-o, tire a relíquia e à
mercê dela encontre sua antiga amada. Obtenha o seu perdão e me terá por
esposa.
-- Isto tudo me parece um sonho, respondeu
Augusto, porém, dê-me, dê-me esse breve!
A menina, com efeito, entregou o breve
ao estudante, que começou a descosê-lo precipitadamente. Aquela relíquia, que
se dizia milagrosa, era sua última esperança; e, semelhante ao náufrago que no
derradeiro extremo se agarra à mais leve tábua, ele se abraçava com ela. Só
falta a derradeira capa do breve... ei-la que cede e se descose... salta uma
pedra... e Augusto, entusiasmado e como delirante, cai aos pés de D. Carolina,
exclamando:
-- O meu camafeu!... o meu camafeu!...
A senhora D. Ana e o pai de Augusto
entram nesse instante na gruta e encontram o feliz e fervoroso amante de
joelhos e a dar mil beijos nos pés da linda menina, que também por sua parte
chorava de prazer.
-- Que loucura é esta? perguntou a
senhora D. Ana.
--
Achei minha mulher!... bradava Augusto; encontrei minha mulher!
-- Que quer dizer isto, Carolina?...
-- Ah! minha boa avó!... respondeu a
travessa Moreninha ingenuamente: nós éramos conhecidos antigos.
[...].
MACEDO, Joaquim
Manuel de. A moreninha. São Paulo: Ática, 1993. p. 132-5.
Fonte: Língua
portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição –
Curitiba – 2010. p. 98-9.
Entendendo o romance:
01 – Por que Carolina
recusa, inicialmente, a proposta de casamento de Augusto?
Porque ela deseja
que ele cumpra a promessa que havia feito no passado: casar-se com a menina com
quem trocou objetos simbólicos do amor de ambos: uma esmeralda e um camafeu.
02 – Carolina rebate a
argumentação de Augusto, que afirma não ter sido casado de fato afirmando “Oh!
Isso é uma recomendação contra a sua constância!...”. Explique o sentido dessa
frase e a importância dela no contexto romântico
Para a jovem, o fato de Augusto se dispor
a quebrar uma promessa para ficar com ela prova que ele não seria constante em
seu amor, o que seria inconcebível no contexto amoroso romântico, em que os
amores deveriam ser eternos. A inconstância de Augusto leva a jovem a
questionar se deveria unir-se a ele.
03 – Como o autor resolve o
impasse dos amantes?
Carolina conta
que também ela recebera uma relíquia de um velho moribundo e a entrega a
Augusto. Ocorre então o reconhecimento dos amantes – eles eram as crianças que
haviam prometido se casar no futuro, ou seja, não há impedimento algum quanto à
união do casal, pelo contrário, ao ficarem juntos eles estão cumprindo a
promessa que fizeram no passado.
04 – Considerando as falas
dos personagens de Augusto e Carolina no trecho lido, é possível
caracterizá-los como típicos heróis românticos? Comprove seu ponto de vista com
elementos retirados do texto.
Sim, eles são
tipicamente românticos. Carolina está disposta a abrir mão de seu amor em nome
da honra, dispõe-se a esperar por Augusto o tempo necessário, banha-se em
lágrimas quando descobre que Augusto é o seu amado de infância, etc. Augusto,
por sua vez, também age de forma sentimental, curvando-se ao desejo da amada,
caindo aos seus pés quando a reconhece como a amada da infância, deixando-se
levar pelo sentimentos, não pela razão.
05 – Uma das emoções
possíveis para o conceito de verossimilhança é o de que a obra literária deve
trabalhar coerentemente a partir do que é provável e possível em comparação com
o mundo real. Levando em conta essa definição, você diria que o trecho lido é
verossímil? Justifique sua resposta.
Trata-se de uma
situação bastante inverossímil, já que seriam pequenas as chances de duas
crianças que se encontraram fortuitamente na infância se reencontram na idade
adulta e se apaixonarem, tendo como obstáculo ao amor uma promessa feita na
infância.