Crônica: Palavras emprestadas
Ivan Ângelo
A leitora Mafalda, sob o título
“Sugestão de crônica”, mandou-me um e-mail protestando contra a
invasão de expressões estrangeiras no dia a dia do brasileiro. Enviou até fotos
de vitrines dos arredores de sua casa, na região da Rua Oscar Freire. Nas
imagens leem-se “Spring/Summer Collection 2011”, “Adidas is all in”
e, numa vitrine ainda tapada, “See you soon”.
Visionária, a leitora sonhava que eu
pudesse contribuir para “mudar o uso do inglês nas ruas”, motivar algum
político “a comprar essa briga”, lembrava o fracasso recente de Aldo Rebelo e
dizia ser aquela uma questão de patriotismo. “Não acha?”
Não acho, leitora, leitores. Com jeito,
vou tentar explicar.
Quando me alfabetizei, em 1943, havia
cerca de 40 000 palavras dicionarizadas no português, segundo Domício Proença
Filho, da Academia Brasileira de Letras. Hoje, são mais de 400 000; alguns
filólogos estimam em 600 000. Ora, leitora, de onde brotaram tantas palavras?
Dos novos hábitos da população, das inovações tecnológicas, das migrações, das
gírias, dos estrangeirismos.
Já vê, cara Mafalda, que a consequência
dos estrangeirismos não é o empobrecimento da língua, e sim o enriquecimento.
Nós nos irritamos com os abusos, sim, como acontece com qualquer abuso.
A questão do estrangeirismo se aclara
com a pergunta: com quem a pessoa quer se comunicar? Se usa palavras que muitas
pessoas não entendem, não vai se comunicar com elas. Mesmo usando só o
português. No caso das frases em inglês na Rua Oscar Freire, aqueles comerciantes
não estão querendo se comunicar com quem não as entende. Fazendo um paralelo
meio absurdo: aqueles rabiscos dos pichadores, quem entende? Eles. É coisa
deles para eles.
Há quem use a expressão estrangeira por
pedantismo, quando há termo equivalente brasileiro. Mas por que tentar impedir
alguém de ser pedante? É um direito dele. Há quem use por ser um modismo,
mas por que ir contra a moda? Ela passa.
Na maioria dos casos, usa-se o
estrangeirismo por necessidade. Há palavras estrangeiras inevitáveis, porque
designam coisas novas com mais exatidão e rapidez: air bag, shopping center,
e-mail, flash, paparazzi, smoking, slide, outdoor, jazz, rock, funk, marketing,
stand-by, chip, overdose, replay, videogame, piercing, rush, checkup, blush,
fashion – e milhares de outras.
Havia inevitáveis que acabaram se
adaptando. Já tivemos goal-keeper (goleiro), goal (gol; o
Estadão escrevia “goal” até os anos 1960), offside (impedimento,
impedido), corner (escanteio), volleybol (voleibol, vôlei), basketball
(basquete), surf (surfe) – e tantas outras.
Centenas delas ficaram bem à vontade
quando aportuguesadas: uísque, gol, futebol, lanchonete, drinque, iogurte,
chique, conhaque, cachê, omelete, bife, toalete, clube, gangue, ringue, garçom,
lorde, picles, filme, time, sanduíche, cachorro-quente, lanche, avião,
televisão – e por aí vai.
Muitas ficaram bem bacaninhas no nosso
dia a dia, mesmo usadas do jeito que chegaram: gay, jeans, pizza, show,
shopping, tour, ciao, topless, manicure, vitrine...
Um grande número delas é dispensável,
entra na conta dos pedantes, pois para dizer o que elas querem dizer temos boas
palavras nossas de uso corrente: sale, off, hair
dresser, suv, personal trainer, laundry, pet shop, fast-food, ice, freezer, prêt-à-porter, on-line, mailing
list, bullying...
A leitora lembra o deputado Aldo Rebelo
e sua tentativa fracassada de botar o assunto dentro de uma lei. Não dá certo,
amiga. Já houve outros. O mais ridicularizado foi o latinista e filólogo
carioca Antônio de Castro Lopes, figura da passagem do século XIX para o XX. Na
época dele, era da França que vinham os modos, as modas e as palavras que
copiávamos. Machado de Assis foi um dos que o ironizaram, numa crônica de 1889.
Caiu no ridículo sua tentativa de transformar football em
balipodo, abat-jour em lucivelo, piquenique em
convescote, chauffeur em cinesíforo... – palavras que acabaram
aportuguesadas pelo som, felizmente.
O povo falante há de peneirar o que
merecer permanência.
ÂNGELO, Ivan.
Revista Veja. São Paulo: Abril, 25 maio 2011. Disponível em: http://vejasp.abril.com.br/matéria/palavras-emprestadas. Acesso
em: 30 nov. 2015.
Fonte: Livro Língua Portuguesa –
Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 227-8.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Visionário: aquele que tem sonhos, utopias.
·
Aldo
Rebelo: político que, como deputado
federal, apresentou em 1999 um projeto de lei que proibiria o uso de palavras
estrangeiras em diversas situações.
·
Pedante: pessoa que se expressa exibindo conhecimentos que realmente
não possui; vaidosa, pretensiosa, afetada.
·
Estadão: como é conhecido, popularmente, o jornal O
Estado de S. Paulo.
02 – Você sabe o que é
estrangeirismo? E neologismo?
Resposta pessoal do aluno.
03 – Como e por que motivo
os neologismos se formam ou são criados? Você conhece algum? Qual?
Resposta pessoal
do aluno.
04 – É possível que uma
língua se forme sem a incorporação de termos estrangeiros?
Resposta pessoal
do aluno.
05 – O uso de palavras
estrangeiras é positivo ou negativo para o nosso idioma?
Positivo, porque
enriqueci a língua.
06 – Responda:
a) Qual é o tema dessa crônica?
O uso de termos estrangeiros em nossa língua: pontos positivos e
negativos.
b) O que motivou a escrita da crônica?
Uma carta em que uma leitora (Mafalda) solicita que o cronista se
posicione a respeito do uso de estrangeirismos em nossa língua.
07 – Releia:
Visionária, a leitora sonhava que eu
pudesse contribuir para “mudar o uso do inglês nas ruas”, motivar algum
político “a comprar essa briga” [...].
a) Nesse trecho, qual é o sentido da palavra visionária?
No trecho, visionária tem
o sentido de sonhadora, devaneadora, utópica.
b) Baseando-se naquilo que você já aprendeu a respeito o processo de evolução da língua, explique por que o cronista pode ter caracterizado a leitora dessa forma.
O cronista considera a leitora visionária porque sabe que é
impossível impedir a evolução da língua. A incorporação de palavras de outro
idioma à língua acontece de forma natural e não pode ser regulada por meio de
leis, de decretos ou mesmo da emissão de opiniões de especialistas sobre o
assunto.
08 – Segundo o cronista, que
relação se pode estabelecer entre os comerciantes da Rua Oscar Freire e os
grafiteiros?
Ambos buscam
atingir determinado grupo social (público-alvo) por meio de uma linguagem bem
específica.
09 – O cronista expõe seu
posicionamento e apresenta argumentos para sustentá-lo.
a) Qual
é a posição do cronista em relação ao uso de estrangeirismos? Que argumentos
ele usa para defender sua posição?
O cronista aceita o uso de
estrangeirismos com maturidade. Segundo ele, os estrangeirismos são usados por
necessidade, quando não há um vocábulo equivalente na língua, ou por modismo ou
pedantismo, nos casos em que há vocábulo equivalente.
b) O
cronista condena o uso de estrangeirismos em alguma situação? Justifique.
Não. Ele respeita até quem os usa
por pedantismo ou modismo. Em casos em que são necessários, os estrangeirismos
contribuem para o enriquecimento da língua.
10 – Em 1943, época
em que o cronista se alfabetizou, havia cerca de 40 mil palavras na
língua portuguesa, segundo Domício Proença Filho. Hoje, são mais de 400
mil palavras dicionarizadas. A que o autor da crônica atribui o aumento de
vocábulos em nossa língua?
Segundo o
cronista, as palavras surgem com os novos hábitos da população, as inovações
tecnológicas, as migrações, as gírias, os estrangeirismos.
11 – Releia o trecho a
seguir e explique-o no caderno:
“Havia inevitáveis que acabaram se
adaptando. Já tivemos goal-keeper (goleiro), goal (gol; o
Estadão escrevia “goal” até os anos 1960), offside (impedimento,
impedido), corner (escanteio), volleybol (voleibol, vôlei), basketball
(basquete), surf (surfe) – e tantas outras.”
As palavras
estrangeiras são incorporadas à língua e acabam sendo aportuguesadas.
12 – A crítica ao uso de
estrangeirismos é recente? Justifique sua resposta.
Não. O cronista
cita o latinista e filólogo carioca Antônio de Castro Lopes, figura da passagem
do século XIX, que propôs a substituição de palavras estrangeiras por palavras
da língua portuguesa. Cita também o projeto do político Aldo Rebelo (SP), que
quando deputado tinha o mesmo objetivo e fracassou em seus intentos.
13 – De acordo com a
crônica, o que determina a permanência ou não de estrangeirismos na língua?
É o seu uso ou não pelos falantes da
língua: o povo. “O povo falante há de peneirar o que merecer permanência.”