Conto: Algumas
palavras
Quando o sol se põe, as luzes se apagam
e nossos olhos se fecham, somos lançados num outro mundo, o mundo dos sonhos,
um reino de absurdos povoados por seres que não conhecemos, onde se passam
acontecimentos incontroláveis, alguns líricos, outros bárbaros, hediondos ou
depravados, um pouco parecido com o mundo da arte, em que amamos sem amar,
matamos sem matar, morremos sem morrer. A nossa percepção nos comprova, nesse
momento, que há outros mundos diferentes de nossa “realidade”, poderosos,
capazes de mudar nosso comportamento e nos levar a gestos que não
compreendemos. A mente humana, mesmo a daquelas pessoas que não se dão conta
disso, é uma trama de mundos que se influenciam, numa obsessiva continuidade.
Ao raiar da manhã saímos desse lugar obscuro, inconsciente, deixamos que fique
adormecido, passamos a ter controle sobre ele, e habitamos um mundo exterior
legível, porém inexorável. Assim vivemos um pouco cegos, distantes da inquietação
da loucura. Mas quando a noite retorna, somos novamente tragados pelos mundos
irreais, parecidos com a morte e com a infância.
Aprendemos muito cedo a conviver com a
angustia noturna. A noite é traiçoeira. Os livros infantis e as babás contam
histórias atemorizantes, vivemos entre perpétuas e invisíveis ameaças. Quando
pequena, eu tinha receio de ficar acordada, porém sentia ainda mais medo dos
sonhos. Guardava na minha lembrança o horror de meu primeiro pesadelo, aos
seis, ou sete anos de idade, em que uma sósia caminhava por uma estrada
deserta, na minha direção. Tive tanto medo da aproximação da múmia que acordei
suada e com o coração palpitante. Eu usava erradamente a palavra sósia, sem
saber o significado, pensava que era múmia. Já tinha pavores secretos de
encontrar a mim mesma.
No entanto, logo ao entrar na
adolescência, passei a observar os sonhos com interesse literário, e a
anotá-los. Não lembro como isso começou, nem os motivos que me levaram a
escrevê-los. Talvez precisasse de ajuda, talvez quisesse me livrar de minha
assustadora personalidade noturna. Havia alguém no meu interior diferente de
quem eu acreditava ser, do que eu conhecia de mim. Sei que foi uma decisão
intuitiva, porém mais tarde descobri que essa era uma antiga prática literária,
há escritores de sonhos, como o norte-americano Van Dusen; ou o próprio Freud,
que anotou e interpretou clássicos da literatura onírica, sonhos seus, como o
da garganta de Irma, e sonhos de seus pacientes, como o dos lobos na árvore;
ou, ainda, Jung, que tinha um sonho recorrente de portas que davam num
laboratório zoológico onde ficava, atrás de uma cortina, a cama de sua mãe,
vazia. A literatura é repleta de menções a sonhos, quando não por eles
constituída. Há obras literárias escritas por visionários sonhadores, como
William Blake, ou Goethe, que, com o Romantismo, rejeitaram o pensamento
racionalista em favor do poder criativo da imaginação. Assim, à medida que eu
me interessava pela literatura, me interessava pelos sonhos, e quanto mais me
envolvia com os sonhos, mais era absorvida pela literatura.
O sonho é uma espécie de experiência
literária. Quando ele acontece, sabemos que nosso corpo está dormindo mas a
mente fica acordada. Sentimo-nos imóveis, tomados de uma sensação de
impotência, massacrados por questões pequenas que parecem imensas. Os sentidos
também estão adormecidos, não temos tato, não ouvimos o que se passa em torno,
não percebemos cheiros, nem sabores, e não vemos com os olhos que estão
fechados. Mas, incrivelmente, mesmo com os olhos fechados, vemos. Vemos a
imaginação, uma ficção alucinada cheia de significados ocultos, que nos
desperta sentimentos e lembranças dos sentidos.
Como não podemos reagir aos sinais do
cérebro, usamos a imaginação. Parece simples, mas é um dos mais antigos,
subjetivos e profundos mistérios da mente. E como na literatura, a linguagem
dos sonhos é o que mais importa.
O ser humano sempre teve a ânsia de
compreender os sonhos, uma proeza que nem a ciência nem a arte conseguem
realizar. Soam um pouco pueris as tentativas dos cientistas, com fios e
eletrodos medindo as intensidades das ondas do cérebro ou dos rápidos
movimentos dos olhos, tentando relacioná-las com os sonhos de uma maneira
racional. Parecem um tanto fantásticas as associações feitas por Freud entre os
sonhos e os danos emocionais causados, na infância, pelas repressões e
distorções do instinto da vida, especialmente o instinto sexual. A
interpretação de Artemidoro, em sua fabulosa compilação, Oneirocrítica, que
tanta influência teve nas interpretações posteriores, serve mais como um
retrato da mentalidade de sua época. E embora Borges costume nos surpreender
com a revelação dos significados, suas observações acerca dos sonhos os tornam
ainda mais enigmáticos. O sonho é um mundo imperioso. As palavras parecem
inadequadas para explica-lo. Talvez fosse preciso se inventar um outro sistema,
tão fabuloso quanto o alfabeto o é para a transmissão de pensamento; um sistema
mais próximo do ideograma. Tentamos entrar no mundo dos sonhos, relatando-os, e
assim percebemos que as palavras não são uma linguagem adequada nem mesmo à
anotação onírica, assim como não são adequadas à poesia. Além disso, não é
possível escrevermos enquanto dormimos, embora possamos sonhar que estamos
escrevendo. Porém o exercício de escrever os sonhos na flagrância, um ato quase
irracional, permite se revelar um pouco desse mundo secreto, mesmo sabendo-se
que a memória do sonho é apenas uma recriação desse lugar intransponível, o
qual não se pode penetrar a não ser pelos valores das metáforas, pela aceitação
do absurdo, ou seja, uma libertação da mente.
Escrevi diversos Cadernos de Sonhos.
Eram cadernos, mesmo, de folhas pautadas, presas por um espiral metálico, nas
quais eu fazia anotações noturnas, ou matinais, em algumas vezes longos
relatos, noutras apenas frases rascunhadas ou simplesmente palavras soltas,
telegráficas, que serviam de senha para que, ao despertar, eu pudesse me lembrar
do episódio sonhado. Em alguns casos eu desenhava os seres oníricos: pequenos e
estranhos animais peludos, felinos com asas, pássaros de fogo, homens com rabo
e chifres, mulheres de dentes vermelhos. Com as anotações nos cadernos passei
aos poucos a lembrar de sonhos mais distantes, e mais imaginativos. Às vezes de
manhã me recordava não de um, mas de uma série deles. Conseguia capturar
alguns, por palavras, outros escapuliam. E quanto mais profundos os sonhos,
mais misteriosos eram os seres e os acontecimentos.
Os Cadernos de Sonhos se perderam. Este
foi o único que restou. Escrevi-o quando estava grávida de meu filho, durante
seu nascimento, e seus primeiros tempos de vida. Eu tinha vinte e um anos.
Caderno
de Sonhos. Rio de Janeiro: Dantes, 2000.
Entendendo o conto:
01 – Ao caracterizar os
acontecimentos que podem fazer parte de nossos sonhos, a autora lança mão de
algumas palavras que nos fazem imaginar muitas coisas.
a)
No caderno, relacione essas palavras aos seus
significados:
1 – Líricos.
2 – Bárbaros.
3 – Hediondos.
4 – Depravados.
(1) Sentimentais, sonhadores,
apaixonados.
(3) Devassos, corrompidos,
pervertidos.
(4) Selvagens, rudes, incultos.
(2) Horrendos, imundos, repulsivos.
b)
Como você imagina que poderiam ser, nos
sonhos, acontecimentos “líricos”; “bárbaros”; “hediondos” e “depravados”? Se
quiser, parta de seus próprios sonhos para imaginar esses acontecimentos.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O que se quer aqui é que os
alunos percebam o alcance das imagens sugeridas pelas palavras trabalhadas.
02 – Leia as frases que
aparecem no prefácio do Caderno de Sonhos:
I – “... ou o próprio Freud,
que anotou e interpretou clássicos da literatura onírica, sonhos seus, como o
da garganta de Irma, e sonhos de seus pacientes, como o dos lobos na árvore
[...]”;
II – “Tentamos entrar no
mundo dos sonhos, relatando-os, e assim percebemos que as palavras não são uma
linguagem adequada nem mesmo à anotação onírica, assim como não são adequadas à
poesia.”
III – “Em alguns casos eu
desenhava os seres oníricos: pequenos e estranhos animais peludos, felinos com
asas, pássaros de fogo, homens com rabo e chifres, mulheres de dentes
vermelhos.”
a)
Anote no caderno o que você entende por:
I –
Literatura onírica.
Literatura que descreve os sonhos.
II –
Anotação onírica.
Anotações dos sonhos.
III
– Seres oníricos.
Seres que aparecem nos sonhos.
b)
Escreva um possível significado para
“Oneirocrítica”, título do livro escrito pelo autor grego Artemidoro.
Crítica, julgamento ou interpretação dos sonhos.
03 – Para a autora, o mundo
dos sonhos tem algo de irrealidade, assim como a arte, a morte e a infância.
Você concorda com essa opinião? Explique.
Resposta pessoal
do aluno.
04 – Tomando como base a
visão que tinha do mundo dos sonhos, a autor conta episódios da infância e da
adolescência.
a)
Que relação a autora tinha com seus sonhos
durante a infância?
Tinha muito medo de seus próprios sonhos.
b)
E na adolescência?
Superou o medo e passou a anotar o que sonhava.
c)
Pode-se dizer que, quanto aos sonhos, a visão
da criança e da adolescente é a mesma? Justifique sua resposta com base no
texto.
Não. A autora deixa claro que, quando criança, tinha medo dos
próprios sonhos. Ao se tornar adolescente, porém, esse medo se transformou em
interesse, tanto que ela começou a anotar seus sonhos, talvez até buscando
compreender sua personalidade noturna.
05 – No 3° parágrafo, a
autora afirma:
“Assim,
à medida que eu me interessava pela literatura, me interessava pelos sonhos, e
quanto mais me envolvia com os sonhos, mais era absorvida pela literatura.”
a)
Transcreva para o caderno, do 3° e do 4°
parágrafos, três frases que relacionem diretamente os sonhos com a literatura.
“Sei que foi uma intuitiva, porém mais tarde descobri que essa era
uma antiga prática literária, há escritores de sonhos, como o norte-americano
Van Dusen...” / “A literatura é repleta de menções a sonhos, quando não por
eles constituída.” / “O sonho é uma espécie de experiência literária. São as
frases que relacionam diretamente o mundo onírico ao universo literário.”
b)
A partir do que você compreendeu dessas
colocações da autora, explique qual seria, para ela, o principal ponto em comum
quando se fala de sonhos e de literatura.
Resposta pessoal do aluno.
06 – No 6° parágrafo, a
autora afirma: “O sonho é um mundo
imperioso”.
a)
Explique o que você entende por essa frase.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O sonho tem um grande poder e
domina a mente durante o sono, coo se fosse um imperador, de tal modo que não
temos controle sobre ele.
b)
Dos trechos a seguir, copie aqueles em que se
mostra a ciência tentando desvendar o mundo dos sonhos.
I – “Soam um pouco pueris as tentativas dos cientistas, com fios e
eletrodos medindo as intensidades das ondas do cérebro ou dos rápidos
movimentos dos olhos, tentando relacioná-las com os sonhos de uma maneira
racional.”
II – “Parecem um tanto fantásticas as associações feitas por Freud
entre os sonhos e os danos emocionais causados, na infância, pelas repressões e
distorções do instinto da vida, especialmente o instinto sexual.”
III
– “Há obras literárias escritas por visionários sonhadores, como William Blake,
ou Goethe, que, com o Romantismo, rejeitaram o pensamento racionalista em favor
do poder criativo da imaginação.”
07 – A autora declara que
costumava anotar seus sonhos utilizando a linguagem verbal.
a)
Para ela, essa linguagem consegue recuperar o
universo completo que é um sonho? Explique, justificando a resposta com uma
passagem do texto.
Não. Tanto que ela sugere que seria preciso criar um outro sistema
para anotar os sonhos, algo que misturasse palavra e imagem, como um ideograma.
b)
Apesar dessa opinião, a autora continuou
anotando aquilo que sonhava. De que outra linguagem, além da verbal, ela lançou
mão para representar as imagens de seus sonhos?
Do deserto.
08 – No caderno, indique a
alternativa que deixa claro por que o texto de Ana Miranda pode ser chamado de
“prefácio”:
a)
É uma narrativa na qual a autora recorda seus
sonhos de infância, de adolescência e os analisa.
b)
É um texto expositivo no qual a autora
explica seus sonhos e pesadelos, fazendo análise sobre eles.
c)
É um texto poético no qual aparecem belas
imagens oníricas e descrições criativas de sonhos.
d)
É um texto em que a autora
justifica, com o auxilia dos seus conhecimentos oníricos e da narração de
alguns de seus sonhos, a publicação do livro.