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quinta-feira, 6 de junho de 2019

CONTO: ALGUMAS PALAVRAS - ANA MIRANDA - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: Algumas palavras
                 
                  Ana Miranda

        Quando o sol se põe, as luzes se apagam e nossos olhos se fecham, somos lançados num outro mundo, o mundo dos sonhos, um reino de absurdos povoados por seres que não conhecemos, onde se passam acontecimentos incontroláveis, alguns líricos, outros bárbaros, hediondos ou depravados, um pouco parecido com o mundo da arte, em que amamos sem amar, matamos sem matar, morremos sem morrer. A nossa percepção nos comprova, nesse momento, que há outros mundos diferentes de nossa “realidade”, poderosos, capazes de mudar nosso comportamento e nos levar a gestos que não compreendemos. A mente humana, mesmo a daquelas pessoas que não se dão conta disso, é uma trama de mundos que se influenciam, numa obsessiva continuidade. Ao raiar da manhã saímos desse lugar obscuro, inconsciente, deixamos que fique adormecido, passamos a ter controle sobre ele, e habitamos um mundo exterior legível, porém inexorável. Assim vivemos um pouco cegos, distantes da inquietação da loucura. Mas quando a noite retorna, somos novamente tragados pelos mundos irreais, parecidos com a morte e com a infância.
        Aprendemos muito cedo a conviver com a angustia noturna. A noite é traiçoeira. Os livros infantis e as babás contam histórias atemorizantes, vivemos entre perpétuas e invisíveis ameaças. Quando pequena, eu tinha receio de ficar acordada, porém sentia ainda mais medo dos sonhos. Guardava na minha lembrança o horror de meu primeiro pesadelo, aos seis, ou sete anos de idade, em que uma sósia caminhava por uma estrada deserta, na minha direção. Tive tanto medo da aproximação da múmia que acordei suada e com o coração palpitante. Eu usava erradamente a palavra sósia, sem saber o significado, pensava que era múmia. Já tinha pavores secretos de encontrar a mim mesma.
        No entanto, logo ao entrar na adolescência, passei a observar os sonhos com interesse literário, e a anotá-los. Não lembro como isso começou, nem os motivos que me levaram a escrevê-los. Talvez precisasse de ajuda, talvez quisesse me livrar de minha assustadora personalidade noturna. Havia alguém no meu interior diferente de quem eu acreditava ser, do que eu conhecia de mim. Sei que foi uma decisão intuitiva, porém mais tarde descobri que essa era uma antiga prática literária, há escritores de sonhos, como o norte-americano Van Dusen; ou o próprio Freud, que anotou e interpretou clássicos da literatura onírica, sonhos seus, como o da garganta de Irma, e sonhos de seus pacientes, como o dos lobos na árvore; ou, ainda, Jung, que tinha um sonho recorrente de portas que davam num laboratório zoológico onde ficava, atrás de uma cortina, a cama de sua mãe, vazia. A literatura é repleta de menções a sonhos, quando não por eles constituída. Há obras literárias escritas por visionários sonhadores, como William Blake, ou Goethe, que, com o Romantismo, rejeitaram o pensamento racionalista em favor do poder criativo da imaginação. Assim, à medida que eu me interessava pela literatura, me interessava pelos sonhos, e quanto mais me envolvia com os sonhos, mais era absorvida pela literatura.
        O sonho é uma espécie de experiência literária. Quando ele acontece, sabemos que nosso corpo está dormindo mas a mente fica acordada. Sentimo-nos imóveis, tomados de uma sensação de impotência, massacrados por questões pequenas que parecem imensas. Os sentidos também estão adormecidos, não temos tato, não ouvimos o que se passa em torno, não percebemos cheiros, nem sabores, e não vemos com os olhos que estão fechados. Mas, incrivelmente, mesmo com os olhos fechados, vemos. Vemos a imaginação, uma ficção alucinada cheia de significados ocultos, que nos desperta sentimentos e lembranças dos sentidos.
        Como não podemos reagir aos sinais do cérebro, usamos a imaginação. Parece simples, mas é um dos mais antigos, subjetivos e profundos mistérios da mente. E como na literatura, a linguagem dos sonhos é o que mais importa.
        O ser humano sempre teve a ânsia de compreender os sonhos, uma proeza que nem a ciência nem a arte conseguem realizar. Soam um pouco pueris as tentativas dos cientistas, com fios e eletrodos medindo as intensidades das ondas do cérebro ou dos rápidos movimentos dos olhos, tentando relacioná-las com os sonhos de uma maneira racional. Parecem um tanto fantásticas as associações feitas por Freud entre os sonhos e os danos emocionais causados, na infância, pelas repressões e distorções do instinto da vida, especialmente o instinto sexual. A interpretação de Artemidoro, em sua fabulosa compilação, Oneirocrítica, que tanta influência teve nas interpretações posteriores, serve mais como um retrato da mentalidade de sua época. E embora Borges costume nos surpreender com a revelação dos significados, suas observações acerca dos sonhos os tornam ainda mais enigmáticos. O sonho é um mundo imperioso. As palavras parecem inadequadas para explica-lo. Talvez fosse preciso se inventar um outro sistema, tão fabuloso quanto o alfabeto o é para a transmissão de pensamento; um sistema mais próximo do ideograma. Tentamos entrar no mundo dos sonhos, relatando-os, e assim percebemos que as palavras não são uma linguagem adequada nem mesmo à anotação onírica, assim como não são adequadas à poesia. Além disso, não é possível escrevermos enquanto dormimos, embora possamos sonhar que estamos escrevendo. Porém o exercício de escrever os sonhos na flagrância, um ato quase irracional, permite se revelar um pouco desse mundo secreto, mesmo sabendo-se que a memória do sonho é apenas uma recriação desse lugar intransponível, o qual não se pode penetrar a não ser pelos valores das metáforas, pela aceitação do absurdo, ou seja, uma libertação da mente.
        Escrevi diversos Cadernos de Sonhos. Eram cadernos, mesmo, de folhas pautadas, presas por um espiral metálico, nas quais eu fazia anotações noturnas, ou matinais, em algumas vezes longos relatos, noutras apenas frases rascunhadas ou simplesmente palavras soltas, telegráficas, que serviam de senha para que, ao despertar, eu pudesse me lembrar do episódio sonhado. Em alguns casos eu desenhava os seres oníricos: pequenos e estranhos animais peludos, felinos com asas, pássaros de fogo, homens com rabo e chifres, mulheres de dentes vermelhos. Com as anotações nos cadernos passei aos poucos a lembrar de sonhos mais distantes, e mais imaginativos. Às vezes de manhã me recordava não de um, mas de uma série deles. Conseguia capturar alguns, por palavras, outros escapuliam. E quanto mais profundos os sonhos, mais misteriosos eram os seres e os acontecimentos.
        Os Cadernos de Sonhos se perderam. Este foi o único que restou. Escrevi-o quando estava grávida de meu filho, durante seu nascimento, e seus primeiros tempos de vida. Eu tinha vinte e um anos.
                                        Caderno de Sonhos. Rio de Janeiro: Dantes, 2000.
Entendendo o conto:

01 – Ao caracterizar os acontecimentos que podem fazer parte de nossos sonhos, a autora lança mão de algumas palavras que nos fazem imaginar muitas coisas.

a)   No caderno, relacione essas palavras aos seus significados:
1 – Líricos.
2 – Bárbaros.
3 – Hediondos.
4 – Depravados.

(1) Sentimentais, sonhadores, apaixonados.
(3) Devassos, corrompidos, pervertidos.
(4) Selvagens, rudes, incultos.
(2) Horrendos, imundos, repulsivos.

b)   Como você imagina que poderiam ser, nos sonhos, acontecimentos “líricos”; “bárbaros”; “hediondos” e “depravados”? Se quiser, parta de seus próprios sonhos para imaginar esses acontecimentos.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O que se quer aqui é que os alunos percebam o alcance das imagens sugeridas pelas palavras trabalhadas.

02 – Leia as frases que aparecem no prefácio do Caderno de Sonhos:
I – “... ou o próprio Freud, que anotou e interpretou clássicos da literatura onírica, sonhos seus, como o da garganta de Irma, e sonhos de seus pacientes, como o dos lobos na árvore [...]”;
II – “Tentamos entrar no mundo dos sonhos, relatando-os, e assim percebemos que as palavras não são uma linguagem adequada nem mesmo à anotação onírica, assim como não são adequadas à poesia.”
III – “Em alguns casos eu desenhava os seres oníricos: pequenos e estranhos animais peludos, felinos com asas, pássaros de fogo, homens com rabo e chifres, mulheres de dentes vermelhos.”

a)   Anote no caderno o que você entende por:
I – Literatura onírica.
Literatura que descreve os sonhos.

II – Anotação onírica.
Anotações dos sonhos.

III – Seres oníricos.
Seres que aparecem nos sonhos.

b)   Escreva um possível significado para “Oneirocrítica”, título do livro escrito pelo autor grego Artemidoro.
Crítica, julgamento ou interpretação dos sonhos.

03 – Para a autora, o mundo dos sonhos tem algo de irrealidade, assim como a arte, a morte e a infância. Você concorda com essa opinião? Explique.
      Resposta pessoal do aluno.

04 – Tomando como base a visão que tinha do mundo dos sonhos, a autor conta episódios da infância e da adolescência.
a)   Que relação a autora tinha com seus sonhos durante a infância?
Tinha muito medo de seus próprios sonhos.

b)   E na adolescência?
Superou o medo e passou a anotar o que sonhava.

c)   Pode-se dizer que, quanto aos sonhos, a visão da criança e da adolescente é a mesma? Justifique sua resposta com base no texto.
Não. A autora deixa claro que, quando criança, tinha medo dos próprios sonhos. Ao se tornar adolescente, porém, esse medo se transformou em interesse, tanto que ela começou a anotar seus sonhos, talvez até buscando compreender sua personalidade noturna.

05 – No 3° parágrafo, a autora afirma:
        “Assim, à medida que eu me interessava pela literatura, me interessava pelos sonhos, e quanto mais me envolvia com os sonhos, mais era absorvida pela literatura.”

a)   Transcreva para o caderno, do 3° e do 4° parágrafos, três frases que relacionem diretamente os sonhos com a literatura.
“Sei que foi uma intuitiva, porém mais tarde descobri que essa era uma antiga prática literária, há escritores de sonhos, como o norte-americano Van Dusen...” / “A literatura é repleta de menções a sonhos, quando não por eles constituída.” / “O sonho é uma espécie de experiência literária. São as frases que relacionam diretamente o mundo onírico ao universo literário.”

b)   A partir do que você compreendeu dessas colocações da autora, explique qual seria, para ela, o principal ponto em comum quando se fala de sonhos e de literatura.
Resposta pessoal do aluno.

06 – No 6° parágrafo, a autora afirma: “O sonho é um mundo imperioso”.
a)   Explique o que você entende por essa frase.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O sonho tem um grande poder e domina a mente durante o sono, coo se fosse um imperador, de tal modo que não temos controle sobre ele.

b)   Dos trechos a seguir, copie aqueles em que se mostra a ciência tentando desvendar o mundo dos sonhos.
I – “Soam um pouco pueris as tentativas dos cientistas, com fios e eletrodos medindo as intensidades das ondas do cérebro ou dos rápidos movimentos dos olhos, tentando relacioná-las com os sonhos de uma maneira racional.”
II – “Parecem um tanto fantásticas as associações feitas por Freud entre os sonhos e os danos emocionais causados, na infância, pelas repressões e distorções do instinto da vida, especialmente o instinto sexual.”
III – “Há obras literárias escritas por visionários sonhadores, como William Blake, ou Goethe, que, com o Romantismo, rejeitaram o pensamento racionalista em favor do poder criativo da imaginação.”

07 – A autora declara que costumava anotar seus sonhos utilizando a linguagem verbal.

a)   Para ela, essa linguagem consegue recuperar o universo completo que é um sonho? Explique, justificando a resposta com uma passagem do texto.
Não. Tanto que ela sugere que seria preciso criar um outro sistema para anotar os sonhos, algo que misturasse palavra e imagem, como um ideograma.

b)   Apesar dessa opinião, a autora continuou anotando aquilo que sonhava. De que outra linguagem, além da verbal, ela lançou mão para representar as imagens de seus sonhos?
Do deserto.

08 – No caderno, indique a alternativa que deixa claro por que o texto de Ana Miranda pode ser chamado de “prefácio”:
a)   É uma narrativa na qual a autora recorda seus sonhos de infância, de adolescência e os analisa.
b)   É um texto expositivo no qual a autora explica seus sonhos e pesadelos, fazendo análise sobre eles.
c)   É um texto poético no qual aparecem belas imagens oníricas e descrições criativas de sonhos.
d)   É um texto em que a autora justifica, com o auxilia dos seus conhecimentos oníricos e da narração de alguns de seus sonhos, a publicação do livro.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

ARTIGO DE OPINIÃO: SOBRE OS VELHOS - ANA MIRANDA - COM GABARITO

ARTIGO DE OPINIÃO: Sobre os Velhos
        O envelhecimento médio brasileiro enriquecerá a população

     As palavras ancião, velho, velhice são bonitas, são um elogio, assim como jovem, juventude. A pessoa velha também é jovem. E é criança, conserva dentro de si tudo o que viveu. Esse é o encanto da velhice. É o tempo da plenitude.
        Os velhos são pessoas sábias, que têm muito a nos ensinar. Devemos retribuir com veneração, respeito, amor. Não aquele amor bondoso e opressivo, aquela “tirania que inventa cuidados e temores que machucam”. Uma vez saí com minha nora e uma amiga sua, muito gentil, que me dava a mão a cada meio fio da rua, e me enchia de cuidados, tantos que acabei tropeçando. Como escreveu Paulo Mendes Campos, “libertemos os velhos de nossa fatigante bondade”.
        A verdade é que gosto muito dos velhos. Acho bonitas as marcas da vivência, os cabelos brancos, as pausas na fala de um velho, seus silêncios significativos, suas impaciências, nossa fragilidade humana exposta, sua experiência. Sempre gostei de pessoas experientes, porque sempre gostei de aprender. Desde menina procurei a companhia de pessoas mais velhas. E hoje me sinto uma pessoa tão velha, tão velha como se tivesse quinhentos anos. E tenho, mesmo, porque escrevi livros passados nos séculos 16, 17, 18, 19 e 20, e é como se eu tivesse realmente vivido nesses tempos. Costumo brincar com o poeta Marco Lucchesi dizendo que ele é o único amigo mais velho do que eu, pois escreve sobre a origem do universo, as estrelas, os desertos. Ainda assim, nunca me sinto à altura de dizer o que diz um velho, nem tenho a mesma intensidade, nem a mesma segurança, não tenho a mesma prudência, nem o mesmo juízo agudo e eficaz. Cada palavra que um ancião diz vem carregada de significados, memórias, histórias vividas, de conhecimentos e autoridade. Suas palavras têm maior peso, maior valor. Ser velho é sinônimo de ser sábio.
        Os velhos vivem um fenômeno curioso chamado ecmnésia. Uma luz misteriosa vem a suas mentes, e eles se recordam cada vez mais de seu passado distante, de sua infância, lembram-se de detalhes, revivem com intensidade coisas acontecidas em suas vidas. Eles gostam de relatar essas memórias, e é maravilhoso ouvi-las. Essa criação inteligente da natureza nasce de um sentimento de preservação da memória, e a memória é uma negação do tempo. Porque o tempo é apenas uma convenção para organizarmos nossa compreensão do mundo. Tudo o que existiu continua a existir, e os velhos nos ensinam essa e outras lições.
        Durante muitos anos, o Brasil foi um país de jovens, quando havia um crescimento da população maior que o crescimento da expectativa de vida. Hoje, as pessoas nascem menos e vivem mais. O Brasil está se tornando um país de velhos, e imagino que isso vá melhorar as coisas. A pressa, o ímpeto, a rebeldia, o sentimento de imortalidade, a descrença, a falsa sensação de que sabem tudo, essas coisas dos jovens, vão dar lugar à experiência, maturidade, fé, e maior capacidade de amor e compreensão.
        Cuidado, jovens, aí vêm os velhos, furiosos.
                                            
       Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo,
                            Amrik, Dias & Dias, Deus-dará, entre outros livros.
                                              www.anamirandaliteratura.hpg.com.br
                Extraído da revista Caros Amigos, n° 92, novembro/2004.

Entendendo o texto:
01 – Por que o subtítulo diz que o envelhecimento enriquecerá a população?
      Porque os velhos são pessoas sábias, que têm muito o que ensinar para os jovens.

02 – Por que a autora, no título do texto, coloca o nome “Sobre os Velhos”?
      Porque ela acha um palavra bonita, assim como ancião, velhice são elogios.

03 – A autora diz que toda pessoa velha também é jovem, o que ela quis dizer?
      Que a pessoa velha conserva dentro de si tudo o que viveu quando criança (jovem).

04 – De acordo com o texto, o que é o tempo da plenitude?
      É o tempo que os idosos tem para que possam usufruir das coisas boas da vida, que quando jovens não foi possível.

05 – Qual é o tipo de cuidado e gratidão, que temos que ter com os idosos e qual não podemos ter?
      Temos que retribuir com veneração, respeito e amor. E nunca com aquele amor bondoso e opressivo. Aquela “Tirania que inventa cuidados e temores que machucam”.

06 – Quais são as marcas da vivência dos velhos?
      Os cabelos brancos; As pausas na fala; Os silêncios significativos; Suas impaciências; Sua fragilidade humana e suas experiências.

07 – De acordo com a autora, cada palavra de um idoso, vem carregado de significados, quais são?
      Vem carregados de memórias; histórias vividas; de conhecimentos e autoridades.

08 – Os velhos vivem um fenômeno curioso chamado ecmnésia, o que significa?
      É um tipo de amnésia, em que o indivíduo conserva a memória de fatos anteriores, revivem com intensidade coisas acontecidas em sua vida passada.

09 – Por que o Brasil durante muitos anos, foi considerado um País de jovens?
      Porque havia um crescimento da população maior que o crescimento da expectativa de vida.

10 – De acordo com o texto, o Brasil está se tornando um País de velhos, o que a autora quis dizer?
      Que a pressa, o ímpeto, a rebeldia, o sentimento de imortalidade, a descrença, a falsa sensação de que sabem tudo, essas coisas dos jovens, vão dar lugar à experiência, maturidade, fé, e maior capacidade de amor e compreensão.

11 – Por quem foi escrito este texto?
      Pela escritora Ana Miranda.


quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

ARTIGO DE OPINIÃO: UM AMOR, UMA CABANA - ANA MIRANDA - COM GABARITO

ARTIGO DE OPINIÃO: UM AMOR, UMA CABANA
                                         Ana Miranda


     Nossos pais diziam que para nos tornarmos seres completos era preciso escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho. Meu pai, que era engenheiro, acrescentava: construir uma casa. Escrevi livros, até demais, tenho um filho e plantei uma árvore, no jardim da casa onde cresci, uma muda de pau-rosa, ou flor-do-paraíso, que havia sido esquecida ao lado de uma cova estreita e funda, uma muda frágil, com poucas folhas, mais alta do que a menininha que a salvou. A muda cresceu, transformou-se em um majestoso flamboyant, coberto de flores vermelhas.

       Mas nunca construí uma casa. Sonho com isso. Gostaria de construir uma casa de taipa, com as próprias mãos, amassar o barro, atirar o barro nos enxaiméis e fasquias de madeira. Não se trata de uma idiossincrasia, nem de um gesto poético, muito menos uma visão religiosa. A taipa é um material apaixonante. Tem uma nobreza histórica. As reforçadas casas e igrejas coloniais brasileiras foram feitas de taipa de pilão, há ainda hoje na Alemanha casas em taipa construídas no século 13, a própria muralha da China, símbolo de solidez, é taipa. A taipa tem mais de 9.000 anos, serviu a construções no Egito, na Mesopotâmia.
       Um amigo meu, arquiteto, projetou e construiu belíssimas casas de taipa. Ele se chama Cydno Silveira e o conheci em Brasília, poucos anos depois de plantar meu flamboyant. Cydno estudava na UnB quando, observando residências rurais, surpreendeu-se com a quantidade de casas de taipa, feitas de maneira intuitiva, quase como abelhas fazem suas colmeias. Nunca tinha ouvido falar naquilo em seu curso, e percebeu o quanto era elitista o ensino de arquitetura. Fotografou as casas de taipa todas que encontrava. Ele se formou, passou a trabalhar com as técnicas industriais, como concreto armado, mas nunca esqueceu a taipa. Deu-se conta de que não sabia construir da maneira mais rudimentar e resolveu aprender. Estudou durante anos a técnica. Descobriu taipas diversas, como a de pedra, usada no Piauí, a de madeira com bolas de barro, vista no Maranhão, a taipa de carnaúba, a taipa mista de moldura de tijolos, a taipa feita com sobras de madeira e sucata. Descobriu a maleabilidade incrível do barro, novas estruturas, novos dimensionamentos do espaço e imensas possibilidades de melhoria na técnica tradicional. Estudou a combinação com elementos da cultura industrial, mas sem descaracterizar a antiga construção de estuque.
        A casa de taipa nasce do chão, vem da natureza, é construída com o material que está ali, a terra e as árvores e tem uma grande contribuição a dar a um país que não oferece moradia para todos, como o Brasil. O projeto de casas populares, que Cydno afinal desenvolveu, ensina o homem a construir sua própria casa e a cuidar dela. Tem o sentido de manter viva a sabedoria popular da taipa. Está sendo feita uma experiência na cidade de Bayeux. Paraíba, para treinamento de pessoas no projeto, construção, melhoria e restauração de edificações em taipa de pau a pique. Não recebendo a casa pronta, mas construindo-a, o dono toma por ela mais amor. Se for privado de sua terra, ele saberá construir uma nova habitação. O saber lhe pode servir como meio de vida, e a profissão tem um nome: taipeiro.
      A casa de taipa é uma grande alternativa para a habitação no meio rural e nas periferias urbanas. Típica das populações mais pobres, é uma forma de independência, uma estratégia milenar de abrigo, preservada nos sertões brasileiros especialmente pelas mulheres. O sistema de autoconstrução elimina a aquisição de material, o transporte, o crédito, elimina o BNH e o processo industrial de construção, permite o mutirão e, principalmente, educa. É rápida a construção, usa-se mão de obra não qualificada, e é um instrumento para a posse imediata da terra. Permite uma construção tanto de caráter provisório quanto perene e a técnica pode ser levada a lugares onde não chega o material industrializado. Uma simples caiação evita a umidade e basta fechar as frestas onde o barbeiro gosta de fazer seu ninho. Integra a família, as mulheres e as crianças trabalham na construção e integra o grupo na sociedade quando em regime de mutirão. Apesar de tudo isso é completamente ignorada pelos meios administrativos, considerada subabitação, não há nem mesmo linha de crédito nos órgãos do governo para casa de taipa. Marcos Freire, antes de morrer, estava tratando de corrigir esse lapso. Nas esferas “civilizadas” há dificuldade em compreender a taipa. Não há legislação nem a favor nem contra. Quando da construção de Carajás, Cydno realizou um projeto de moradias em taipa de pau a pique para os empregados, utilizando o fartíssimo material do lugar. Seu projeto não foi aceito e os tijolos, o cimento e o ferro viajaram de avião até Carajás.
     Na taipa não há desperdício de material e nem agressão ecológica, a madeira usada nas estruturas é em quantidade cinco vezes menor do que a necessária na queima de tijolos para uma parede das mesmas dimensões [..].
     O Cydno vai projetar a minha casa de taipa. Vou querer na casa uma lareira, um fogão a lenha e uma vassoura daquelas de gravetos, Uma árvore frondosa por perto, pode ser flamboyant, um gramado na sombra para piquenique, contemplação ou leitura. Também dizia meu pai, nas coisas mais simples está o sentido da vida.
                                                                   Ana Miranda

 ENTENDENDO O TEXTO:

      No texto, a autora aborda uma questão social: a falta de moradia de uma grande parcela da população brasileira. E, diante dessa questão, defende um ponto de vista.
      O que ela defende como solução dos problemas de habitação para a área rural e a periferia urbana?

01 – Identifique o principal argumento que comprova este ponto de vista.
a) (  ) “A taipa é um material apaixonante. Tem uma nobreza histórica”.
b) (X)“A casa de taipa nasce do chão, vem da natureza, é construída com o material que está ali, a terra e as árvores[...]”
c) (  )A taipa tem mais de 9.000 anos, serviu a construções no Egito, na Mesopotâmia.”

02 – Marque com (x) a alternativa que traduz o que predomina no texto
a) (X)Uma análise crítica das escolhas de material para a construção de casas populares.
b) (  )Uma visão poética e expressiva em relação às casas de taipa.
c) (  )Lembranças e sentimentos da autora.
d) (  )Levante hipóteses.

03 – Por que a taipa, um material resistente ao tempo, maleável, de baixo custo e que tem baixo consumo de recursos naturais, não é utilizada nas construções de casas populares e em geral?
      Porque é completamente ignorada pelos meios administrativos, considerada subsbitaçao não há nem mesmo linha de crédito nos órgãos do governo para esta casa. Não há legislação nem a favor e nem contra.

04 – Que vantagens há em se ensinar a população a construir suas próprias casas?
      É rápida a construção, usa-se mão de obra não qualificada, e é um instrumento para a posse imediata. Integra a família, as mulheres e as crianças trabalham na construção e integra o grupo na sociedade quando em regime de mutirão.

05 – Segundo a autora, “Nas esferas ´civilizadas´ há dificuldade em compreender a taipa”. O uso das aspas na palavra civilizadas dá um tom de ironia, ou seja, sugere uma ideia exatamente contrária. Qual é essa ideia?
      Da a ideia de um tempo bem antigo, com relação ao dia de hoje.

06 – A autora cita que seu pai costumava dizer que “para nos tornarmos seres completos era preciso escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho” e “construir uma casa”. Que princípios ou valores são destacados a partir dessas ações?
      Essa frase tem um significado muito profundo, que nos leva à nossa origem, nos religando à energia divina e nos ensinando um caminho de volta ao nosso Pai.
      A árvore está relacionada a criação do mundo e que cada um de nós tem que plantar a sua semente espiritual.
      Ter um filho - nada mais é do que compartilhar o seu conhecimento. É ter um discípulo.
      Escrever um livro - significa fazer da sua história um exemplo de superação.