Conto: LÁ NO MORRO – Fragmento
Wander Piroli
Avistei-o subindo o morro. Mamãe estava
junto ao fogareiro. Corri alarmado para avisá-la: “Papai envém aí”. Ela me
espetou os olhos apagados e os lábios se moveram lentamente. Não disse nada.
Papai atravessou a porta em silêncio e
ao invés de chutar o tamborete arredou-o de leve. Observou-me num relance.
Depois olhou mamãe que estava de costas, e deixou-se cair no tamborete. A
cabeça pendeu sobre o caixote como se se tivesse desprendido do corpo. Não
exalava cachaça, desta vez. Surpreendi-me avançando na sua direção. Parei perto
do caixote com as pernas trêmulas, e antes que eu percebesse meus dedos já
tocavam o ombro de papai.
Mamãe permanecia imóvel junto ao
fogareiro, como se esperasse que a mão pesada a atingisse a qualquer momento.
Angustiava-me um sentimento doloroso por papai: era como se o estivesse
descobrindo sob a camada de violência, e agora ali restasse não apenas meu pai,
mas a própria criatura humana na sua dimensão essencial e indestrutível. Olhei
para mamãe. E gritei-lhe desesperadamente “Mamãe!” sem que ao menos tivesse
necessidade de abrir a boca.
Afinal mamãe se voltou com o prato de
comida e viu minha mão pousada no ombro de papai. Colocou o prato no caixote,
perto da cabeça de papai. Ele continuou quieto, a respiração funda e
descompassada. Mamãe acendeu a lamparina, e a claridade arredou as primeiras
sombras da tarde para os cantos do cômodo. Em seguida, mamãe preparou a minha
marmita e por último o seu prato e ambos nos sentamos, eu no chão e ela no
outro tamborete.
O arfar intenso de papai doía no
silêncio. Olhei mamãe. Mamãe me olhou e disse:
– Come.
Depois fitou papai, de esguelha, e
levou até à boca uma pequena porção de arroz. Mas teve logo que deixar o garfo
de lado para conter o acesso de tosse com a mão. Papai então levantou a cabeça,
encarou-a com os lábios abertos. Seu rosto estava molhado de suor. Abaixou os
olhos para mim, fungando, e deixou a cabeça pender novamente sobre o caixote.
Ouvimos passos no quintal. Três homens
saltaram dentro do barraco e um deles arrancou a cortina que dividia o cômodo.
Antes que o coração me socasse o peito e mamãe imobilizasse o garfo e papai
erguesse a cabeça, tiraram-no do tamborete, torcendo-lhe os braços.
Papai não tentou reagir, sequer parecia
surpreso. Era como se já estivesse esperando aquele momento. Nem ao menos olhou
para os homens que o subjugavam. Fitava apenas mamãe, imóvel e fria do outro
lado do caixote. Um dos homens levantou o punho e bateu-lhe seguidamente na
cara. Com a boca ensanguentada, recebia as pancadas sem tirar os olhos de
mamãe.
Levaram-no, os braços presos às costas.
Os socos continuavam no quintal e eram mais nítidos quando pegavam na cara de
papai. As batidas foram-se distanciando. Mamãe estava com a cabeça quase dentro
do prato e as lágrimas escorrendo de seu rosto pingavam sobre o resto da
comida. A marmita ainda tremia em minhas mãos e eu comecei a vomitar.
PIROLI, Wander. Lá no
morro. In: TUFANO, Douglas (Org.). Antologia do conto brasileiro: do Romantismo
ao Modernismo. São Paulo: Moderna, 1994. p. 110-111. (Coleção Travessias).
Fragmento.
Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na
língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição
– São Paulo, 2016 – Moderna – p. 81-2.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Tamborete:
pequeno banco.
·
Arredou: afastou.
·
De
esguelha: de lado.
02 – No conto de Wander
Piroli predomina o silêncio.
a) Confirme essa afirmativa com exemplos retirados do texto.
Ao longo do conto são proferidas apenas três falas pelos
personagens: “Papai envém aí”, “Mamãe!” e “Come”.
b) Análise as relações estabelecidas entre os personagens e explique o que pode significar o silêncio predominante no conto.
O silêncio pode significar a dureza que caracteriza as relações
entre os personagens e os distancia. Eles parecem viver em um ambiente hostil,
em que há pouca ou nenhuma comunicação.
03 – Pela leitura do conto,
podemos inferir que o comportamento do pai, quando chega a sua casa, é
diferente do habitual; ou seja, ele mostra-se menos violento e hostil.
a) Que passagem nos permitem fazer essa inferência?
“Papai atravessou a porta em silêncio e ao invés de chutar o
tamborete arredou-o de leve”, “Mamãe permanecia imóvel junto ao fogareiro, como
se esperasse que a mão pesada a atingisse a qualquer momento”.
b) Que sinais de fragilidade você conclui que o pai do narrador-personagem apresenta ao entrar na casa? Justifique sua resposta com trechos do texto.
O pai, antes violento e agressivo, mostra-se frágil. Eis os trechos
que permitem chegar a essa conclusão: “deixou-se cair no tamborete”; “A cabeça
pendeu sobre o caixote como se se tivesse desprendido do corpo”; “Ele continuou
quieto, a respiração funda e descompassada”, etc.
c) Que consequência física e psicológica tem no narrador a mudança de comportamento apresentado pelo pai?
O narrador se surpreende ao sentir afeto pelo pai quando toca seu
ombro e angustia-se ao vê-lo em situação de fragilidade: existia ali, afinal,
uma “criatura humana”, antes escondida “sob a camada de violência”.
04 – Conto “Lá no morro” se
passa durante o jantar de uma família. O tempo todo narrador menciona o “fogareiro”,
o “prato de comida”, a “marmita”, a “porção de arroz”, “o garfo”, etc. Explique
de que maneira esses elementos são retomados no último parágrafo,
intensificando a experiência dramática vivida por esses personagens no barraco.
Mesmo antes do parágrafo-desfecho do
conto, o narrador utiliza a comida como símbolo de que as coisas não estão bem
na família. A mãe dele, por exemplo, tem um acesso de tosse logo após fitar o
pai e levar à boca uma pequena porção de arroz. No último parágrafo, a frieza e
a imobilidade da mulher diante da violência sofrida pelo marido são quebradas
com uma imagem forte, ligada ao ato de comer: “Mamãe estava com a cabeça quase
dentro do prato e as lágrimas escorrendo de seu rosto pingavam sobre o resto da
comida”.
05 – Quase no desfecho do
conto narrador-personagem e forma que sua mãe diante de violência extrema a
qual foi submetido o pai permanece “imóvel e fria do outro lado do caixote”. Embora
o conto não explicite as razões que levam a mulher a ter essa reação, é
possível levantar algumas hipóteses. Reúne-se com seus colegas e procure
explicar isso.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A
mulher pode ter ficado em pânico e sem reação e também com medo de levarem a
ela ou fazerem algum mal ao seu filho.