Conto: Passei por um sonho
José Eduardo Agualusa.
Começou com um sonho. Afinal, é como
começa quase tudo. Justo Santana, enfermeiro de profissão, sonhou um pássaro.
– Passei por um sonho – disse à mulher
quando esta acordou –, e vi um pássaro.
A mulher quis saber que espécie de
pássaro, mas Justo Santana não foi capaz de precisar. Era um pássaro grande,
grave, branco como um ferro incandescente, e com umas asas ainda mais
brilhosas, que o dito pássaro usava sempre abertas, de tal maneira que fazia
lembrar Jesus Cristo pregado na cruz.
– Fui sonhado por ti – disse-lhe o
pássaro – com o fim de esclarecer o espírito dos homens e de trazer a liberdade
a este pobre país.
0 discurso do pássaro assustou o
enfermeiro, homem simples, tímido, avesso a confrontos, e sem qualquer vocação
para a política.
– Foi apenas um sonho – disse à mulher –,
um sonho estúpido.
Na noite seguinte, porém, o pássaro
voltou a aparecer-lhe. Estava ainda mais branco, mais trágico, e parecia
aborrecido com o desinteresse do enfermeiro:
– Ordeno-te que vás por esse país fora
e digas a todos os homens que se preparem para um mundo novo. Os brancos vão
partir e os pretos ocuparão as casas, os palácios, as igrejas e os quartéis, e
a liberdade há de reinar para sempre.
Dizendo isto sacudiu as asas e as suas
penas espalharam-se pelo quarto:
– Com estas minhas penas hás de curar
os enfermos – disse o pássaro –, e assim até os mais incrédulos acreditarão em
ti e seguirão os teus passos.
Quando Justo Santana despertou, o
quarto brilhava com o esplendor das penas. Na manhã desse mesmo dia o
enfermeiro serviu-se de uma delas para curar um homem com elefantíase e à
tardinha devolveu a vista a um cego. Passado apenas um mês a sua fama de santo
e milagreiro já se espalhara muito para além das margens do Rio Zaire e à porta
da sua casa ia crescendo uma multidão de padecentes. Alguns tinham vindo de
muito longe, a pé, ou em improvisadas padiolas, e chegavam cobertos por uma idêntica
poeira vermelha – bonecos de barro à espera de um sopro divino.
Justo Santana colocava na boca dos
enfermes uma pena do pássaro, como se fosse uma hóstia, e estes imediatamente
ganhavam renovado alento. Enquanto fazia isto o enfermeiro repetia os discursos
do pássaro, incapaz de compreender a fúria daquelas palavras e o alcance delas.
Todas as noites sonhava com a ave e todas as noites esta o forçava a decorar um
discurso novo, após o que sacudia as asas, espalhando pelo ar morto do quarto
as penas milagrosas.
– Se esse pássaro continuar assim tão
generoso – disse Justo Santana à mulher – ainda o veremos transformado numa
alma despenada.
Isto durou um ano. Então, numa manhã de
cacimbo, apareceram quatro soldados à porta da casa, afastaram com rancor a
multidão de desvalidos, e levaram Justo Santana. O infeliz foi acusado de
fomentar o terrorismo e a sublevação, e desterrado para uma praia remota, em
pleno deserto do Namibe, onde passou a exercer o ofício de faroleiro.
Quando o encontrei, muitos anos depois,
em Luanda, ele falou-me desse desterro com nostalgia:
– Foi a melhor época da minha vida.
Encontrei-o doente, estendido numa
larga cama de ferro, sob lençóis muito brancos. No quarto havia apenas a cama e
um pequeno crucifixo preso à parede. Na sala ao lado os devotos rezavam
murmurosas ladainhas. Aquela era a sede da Igreja do Divino Espírito. Não tinha
sido nada fácil chegar até junto do enfermeiro: os seus seguidores guardavam-no
corno a uma relíquia – na verdade mantinham-no preso ali, naquele quarto, quase
isolado do mundo, desde 1975.
A melhor época da vida de Justo Santana
terminou de forma trágica, numa noite de tempestade, quando um bando de aves
migratórias caiu sobre o farol. Enlouquecidas pela luz, as avezinhas batiam
contra o cristal até quebrarem as asas, sendo depois arrastadas pelo vento.
Isto está sempre a acontecer. Milhares de aves migratórias morrem todos os anos
traídas pelo fulgor dos faróis. Naquela noite, desrespeitando as normas, Justo
Santana foi em socorro das aves e desligou o farol. Teve pouca sorte: um barco
com tropas, de regresso à metrópole, perdeu-se na escuridão e encalhou na
praia. Dessa vez o enfermeiro foi julgado, condenado a quinze anos de prisão, e
enviado para o Tarrafal, em Cabo Verde. Foi solto com a Revolução de Abril e
regressou a Angola.
Quando o visitei, antes de me ir
embora, quis saber se o pássaro ainda lhe frequentava os sonhos. Ele olhou em
redor para se certificar de que estávamos sozinhos:
– Estrangulei-o – segredou com um
sorriso cúmplice –, mas enquanto eu for vivo não conte isto a ninguém.
José Eduardo Agualusa.
Passei por um sonho. In: CHAVES, Rita (Sel. E org.). Contos Africanos dos
países de língua portuguesa. São Paulo: Ática, 2009. p. 106-110. (Para gostar
de Ler, v. 44).
Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na
língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição
– São Paulo, 2016 – Moderna – p. 111-3.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Grave: notável.
·
Padecentes: doentes.
·
Padiolas: camas de lona portáteis, macas.
·
Alento: vigor, entusiasmo.
·
Cacimbo: névoa.
·
Fomentar: estimular.
·
Sublevação: revolta, rebeldia.
·
Desterrado: exilado.
·
Cristal: vidro.
·
Fulgor: brilho.
·
Metrópole: refere-se a Portugal.
02 – Que sonho Justo Santana
relata à esposa?
Justo relata
haver sonhado com um pássaro “grande, grave, branco”, que, em sua
interpretação, remetia à imagem de Jesus Cristo crucificado. Essa ave
apresentava a ele um discurso relacionado à liberdade, à paz de seu país e ao
“esclarecimento do espírito dos homens”.
03 – O que pretendia o
pássaro do sonho do protagonista?
Ordenar a Justo
que dissesse a todos os homens de seu país que se preparassem para o surgimento
de um “mundo novo”.
04 – No texto lido,
elementos ficcionais se misturam à história de Angola, país africano que foi
colônia de Portugal até 1975. Ao longo do século XX, organizações como o
Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a
Independência Total de Angola (Unita) estiveram em luta contra a metrópole.
Explique de que modo essa informação histórica pode ser relacionada à seguinte
passagem do conto:
“–
Ordeno-te que vás por esse país fora e digas a todos os homens que se preparem
para um mundo novo. Os brancos vão partir e os pretos ocuparão as casas, os
palácios, as igrejas e os quartéis, e a liberdade há de reinar para sempre.”
O “mundo novo” referido pelo pássaro
alude a uma Angola livre. Os “brancos” citados seriam os portugueses, e os
“pretos” seriam os angolanos, que retomariam casas, palácios, igrejas e
quartéis, tornando-se libertos de Portugal, o que ocorreu em 1975.
05 – Em sua opinião, o que
simboliza o pássaro do sonho de Justo Santana?
O pássaro simboliza o desejo de liberdade
do povo angolano.
06 – Após ser acusado de
“fomentar o terrorismo e a sublevação”, Justo é mandado para uma praia remota,
onde passa a exercer o ofício de faroleiro. Que relação pode ser estabelecida
entre a situação vivida pelo protagonista no episódio do desligamento do farol
e aquela experimentada por ele no sonho?
Em ambas as
situações há a presença de pássaros e Justo auxilia uma coletividade. No
episódio do sonho, ele atende ao pedido de uma ave divina e passa a ajudar os
necessitados e a doutrina-los politicamente por meio dos discursos que lhe são
transmitidos. Isso faz com que ele seja condenado ao desterro. No episódio do
farol, por sua vez, Justo apaga a luz do local para socorrer as aves
migratórias; com isso, causa um acidente com um “arco com tropas” e acaba
condenado à prisão.
07 – O conto de Agualusa
apresenta um final bastante simbólico, aberto a diferentes interpretações. Para
você, por que Justo teria estrangulado o pássaro do sonho?
Resposta pessoal
do aluno.
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