quarta-feira, 3 de agosto de 2022

CONTO: PASSEI POR UM SONHO - JOSÉ EDUARDO AGUALUSA - COM GABARITO

 Conto: Passei por um sonho

            José Eduardo Agualusa.

        Começou com um sonho. Afinal, é como começa quase tudo. Justo Santana, enfermeiro de profissão, sonhou um pássaro.

        – Passei por um sonho – disse à mulher quando esta acordou –, e vi um pássaro.

        A mulher quis saber que espécie de pássaro, mas Justo Santana não foi capaz de precisar. Era um pássaro grande, grave, branco como um ferro incandescente, e com umas asas ainda mais brilhosas, que o dito pássaro usava sempre abertas, de tal maneira que fazia lembrar Jesus Cristo pregado na cruz.

        – Fui sonhado por ti – disse-lhe o pássaro – com o fim de esclarecer o espírito dos homens e de trazer a liberdade a este pobre país.

        0 discurso do pássaro assustou o enfermeiro, homem simples, tímido, avesso a confrontos, e sem qualquer vocação para a política.

        – Foi apenas um sonho – disse à mulher –, um sonho estúpido.

        Na noite seguinte, porém, o pássaro voltou a aparecer-lhe. Estava ainda mais branco, mais trágico, e parecia aborrecido com o desinteresse do enfermeiro:

        – Ordeno-te que vás por esse país fora e digas a todos os homens que se preparem para um mundo novo. Os brancos vão partir e os pretos ocuparão as casas, os palácios, as igrejas e os quartéis, e a liberdade há de reinar para sempre.

        Dizendo isto sacudiu as asas e as suas penas espalharam-se pelo quarto:

        – Com estas minhas penas hás de curar os enfermos – disse o pássaro –, e assim até os mais incrédulos acreditarão em ti e seguirão os teus passos.

        Quando Justo Santana despertou, o quarto brilhava com o esplendor das penas. Na manhã desse mesmo dia o enfermeiro serviu-se de uma delas para curar um homem com elefantíase e à tardinha devolveu a vista a um cego. Passado apenas um mês a sua fama de santo e milagreiro já se espalhara muito para além das margens do Rio Zaire e à porta da sua casa ia crescendo uma multidão de padecentes. Alguns tinham vindo de muito longe, a pé, ou em improvisadas padiolas, e chegavam cobertos por uma idêntica poeira vermelha – bonecos de barro à espera de um sopro divino.

        Justo Santana colocava na boca dos enfermes uma pena do pássaro, como se fosse uma hóstia, e estes imediatamente ganhavam renovado alento. Enquanto fazia isto o enfermeiro repetia os discursos do pássaro, incapaz de compreender a fúria daquelas palavras e o alcance delas. Todas as noites sonhava com a ave e todas as noites esta o forçava a decorar um discurso novo, após o que sacudia as asas, espalhando pelo ar morto do quarto as penas milagrosas.

        – Se esse pássaro continuar assim tão generoso – disse Justo Santana à mulher – ainda o veremos transformado numa alma despenada.

        Isto durou um ano. Então, numa manhã de cacimbo, apareceram quatro soldados à porta da casa, afastaram com rancor a multidão de desvalidos, e levaram Justo Santana. O infeliz foi acusado de fomentar o terrorismo e a sublevação, e desterrado para uma praia remota, em pleno deserto do Namibe, onde passou a exercer o ofício de faroleiro.

        Quando o encontrei, muitos anos depois, em Luanda, ele falou-me desse desterro com nostalgia:

        – Foi a melhor época da minha vida.

        Encontrei-o doente, estendido numa larga cama de ferro, sob lençóis muito brancos. No quarto havia apenas a cama e um pequeno crucifixo preso à parede. Na sala ao lado os devotos rezavam murmurosas ladainhas. Aquela era a sede da Igreja do Divino Espírito. Não tinha sido nada fácil chegar até junto do enfermeiro: os seus seguidores guardavam-no corno a uma relíquia – na verdade mantinham-no preso ali, naquele quarto, quase isolado do mundo, desde 1975.

        A melhor época da vida de Justo Santana terminou de forma trágica, numa noite de tempestade, quando um bando de aves migratórias caiu sobre o farol. Enlouquecidas pela luz, as avezinhas batiam contra o cristal até quebrarem as asas, sendo depois arrastadas pelo vento. Isto está sempre a acontecer. Milhares de aves migratórias morrem todos os anos traídas pelo fulgor dos faróis. Naquela noite, desrespeitando as normas, Justo Santana foi em socorro das aves e desligou o farol. Teve pouca sorte: um barco com tropas, de regresso à metrópole, perdeu-se na escuridão e encalhou na praia. Dessa vez o enfermeiro foi julgado, condenado a quinze anos de prisão, e enviado para o Tarrafal, em Cabo Verde. Foi solto com a Revolução de Abril e regressou a Angola.

        Quando o visitei, antes de me ir embora, quis saber se o pássaro ainda lhe frequentava os sonhos. Ele olhou em redor para se certificar de que estávamos sozinhos:

        – Estrangulei-o – segredou com um sorriso cúmplice –, mas enquanto eu for vivo não conte isto a ninguém.

José Eduardo Agualusa. Passei por um sonho. In: CHAVES, Rita (Sel. E org.). Contos Africanos dos países de língua portuguesa. São Paulo: Ática, 2009. p. 106-110. (Para gostar de Ler, v. 44).

     Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição – São Paulo, 2016 – Moderna – p. 111-3.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Grave: notável.

·        Padecentes: doentes.

·        Padiolas: camas de lona portáteis, macas.

·        Alento: vigor, entusiasmo.

·        Cacimbo: névoa.

·        Fomentar: estimular.

·        Sublevação: revolta, rebeldia.

·        Desterrado: exilado.

·        Cristal: vidro.

·        Fulgor: brilho.

·        Metrópole: refere-se a Portugal.

02 – Que sonho Justo Santana relata à esposa?

      Justo relata haver sonhado com um pássaro “grande, grave, branco”, que, em sua interpretação, remetia à imagem de Jesus Cristo crucificado. Essa ave apresentava a ele um discurso relacionado à liberdade, à paz de seu país e ao “esclarecimento do espírito dos homens”.

03 – O que pretendia o pássaro do sonho do protagonista?

      Ordenar a Justo que dissesse a todos os homens de seu país que se preparassem para o surgimento de um “mundo novo”.

04 – No texto lido, elementos ficcionais se misturam à história de Angola, país africano que foi colônia de Portugal até 1975. Ao longo do século XX, organizações como o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita) estiveram em luta contra a metrópole. Explique de que modo essa informação histórica pode ser relacionada à seguinte passagem do conto:

        “– Ordeno-te que vás por esse país fora e digas a todos os homens que se preparem para um mundo novo. Os brancos vão partir e os pretos ocuparão as casas, os palácios, as igrejas e os quartéis, e a liberdade há de reinar para sempre.”

      O “mundo novo” referido pelo pássaro alude a uma Angola livre. Os “brancos” citados seriam os portugueses, e os “pretos” seriam os angolanos, que retomariam casas, palácios, igrejas e quartéis, tornando-se libertos de Portugal, o que ocorreu em 1975.

05 – Em sua opinião, o que simboliza o pássaro do sonho de Justo Santana?

      O pássaro simboliza o desejo de liberdade do povo angolano.

06 – Após ser acusado de “fomentar o terrorismo e a sublevação”, Justo é mandado para uma praia remota, onde passa a exercer o ofício de faroleiro. Que relação pode ser estabelecida entre a situação vivida pelo protagonista no episódio do desligamento do farol e aquela experimentada por ele no sonho?

      Em ambas as situações há a presença de pássaros e Justo auxilia uma coletividade. No episódio do sonho, ele atende ao pedido de uma ave divina e passa a ajudar os necessitados e a doutrina-los politicamente por meio dos discursos que lhe são transmitidos. Isso faz com que ele seja condenado ao desterro. No episódio do farol, por sua vez, Justo apaga a luz do local para socorrer as aves migratórias; com isso, causa um acidente com um “arco com tropas” e acaba condenado à prisão.

07 – O conto de Agualusa apresenta um final bastante simbólico, aberto a diferentes interpretações. Para você, por que Justo teria estrangulado o pássaro do sonho?

      Resposta pessoal do aluno.

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