domingo, 7 de agosto de 2022

CONTO: LÁ NO MORRO - (FRAGMENTO) - WANDER PIROLI - COM GABARITO

 Conto: LÁ NO MORRO – Fragmento

             Wander Piroli

        Avistei-o subindo o morro. Mamãe estava junto ao fogareiro. Corri alarmado para avisá-la: “Papai envém aí”. Ela me espetou os olhos apagados e os lábios se moveram lentamente. Não disse nada.

        Papai atravessou a porta em silêncio e ao invés de chutar o tamborete arredou-o de leve. Observou-me num relance. Depois olhou mamãe que estava de costas, e deixou-se cair no tamborete. A cabeça pendeu sobre o caixote como se se tivesse desprendido do corpo. Não exalava cachaça, desta vez. Surpreendi-me avançando na sua direção. Parei perto do caixote com as pernas trêmulas, e antes que eu percebesse meus dedos já tocavam o ombro de papai.

        Mamãe permanecia imóvel junto ao fogareiro, como se esperasse que a mão pesada a atingisse a qualquer momento. Angustiava-me um sentimento doloroso por papai: era como se o estivesse descobrindo sob a camada de violência, e agora ali restasse não apenas meu pai, mas a própria criatura humana na sua dimensão essencial e indestrutível. Olhei para mamãe. E gritei-lhe desesperadamente “Mamãe!” sem que ao menos tivesse necessidade de abrir a boca.

        Afinal mamãe se voltou com o prato de comida e viu minha mão pousada no ombro de papai. Colocou o prato no caixote, perto da cabeça de papai. Ele continuou quieto, a respiração funda e descompassada. Mamãe acendeu a lamparina, e a claridade arredou as primeiras sombras da tarde para os cantos do cômodo. Em seguida, mamãe preparou a minha marmita e por último o seu prato e ambos nos sentamos, eu no chão e ela no outro tamborete.

        O arfar intenso de papai doía no silêncio. Olhei mamãe. Mamãe me olhou e disse:

        – Come.

        Depois fitou papai, de esguelha, e levou até à boca uma pequena porção de arroz. Mas teve logo que deixar o garfo de lado para conter o acesso de tosse com a mão. Papai então levantou a cabeça, encarou-a com os lábios abertos. Seu rosto estava molhado de suor. Abaixou os olhos para mim, fungando, e deixou a cabeça pender novamente sobre o caixote.

        Ouvimos passos no quintal. Três homens saltaram dentro do barraco e um deles arrancou a cortina que dividia o cômodo. Antes que o coração me socasse o peito e mamãe imobilizasse o garfo e papai erguesse a cabeça, tiraram-no do tamborete, torcendo-lhe os braços.

        Papai não tentou reagir, sequer parecia surpreso. Era como se já estivesse esperando aquele momento. Nem ao menos olhou para os homens que o subjugavam. Fitava apenas mamãe, imóvel e fria do outro lado do caixote. Um dos homens levantou o punho e bateu-lhe seguidamente na cara. Com a boca ensanguentada, recebia as pancadas sem tirar os olhos de mamãe.

        Levaram-no, os braços presos às costas. Os socos continuavam no quintal e eram mais nítidos quando pegavam na cara de papai. As batidas foram-se distanciando. Mamãe estava com a cabeça quase dentro do prato e as lágrimas escorrendo de seu rosto pingavam sobre o resto da comida. A marmita ainda tremia em minhas mãos e eu comecei a vomitar.

PIROLI, Wander. Lá no morro. In: TUFANO, Douglas (Org.). Antologia do conto brasileiro: do Romantismo ao Modernismo. São Paulo: Moderna, 1994. p. 110-111. (Coleção Travessias). Fragmento.

     Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição – São Paulo, 2016 – Moderna – p. 81-2.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Tamborete: pequeno banco.

·        Arredou: afastou.

·        De esguelha: de lado.

02 – No conto de Wander Piroli predomina o silêncio.

a)   Confirme essa afirmativa com exemplos retirados do texto.

Ao longo do conto são proferidas apenas três falas pelos personagens: “Papai envém aí”, “Mamãe!” e “Come”.

b)   Análise as relações estabelecidas entre os personagens e explique o que pode significar o silêncio predominante no conto.

O silêncio pode significar a dureza que caracteriza as relações entre os personagens e os distancia. Eles parecem viver em um ambiente hostil, em que há pouca ou nenhuma comunicação.

03 – Pela leitura do conto, podemos inferir que o comportamento do pai, quando chega a sua casa, é diferente do habitual; ou seja, ele mostra-se menos violento e hostil.

a)   Que passagem nos permitem fazer essa inferência?

“Papai atravessou a porta em silêncio e ao invés de chutar o tamborete arredou-o de leve”, “Mamãe permanecia imóvel junto ao fogareiro, como se esperasse que a mão pesada a atingisse a qualquer momento”.

b)   Que sinais de fragilidade você conclui que o pai do narrador-personagem apresenta ao entrar na casa? Justifique sua resposta com trechos do texto.

O pai, antes violento e agressivo, mostra-se frágil. Eis os trechos que permitem chegar a essa conclusão: “deixou-se cair no tamborete”; “A cabeça pendeu sobre o caixote como se se tivesse desprendido do corpo”; “Ele continuou quieto, a respiração funda e descompassada”, etc.

c)   Que consequência física e psicológica tem no narrador a mudança de comportamento apresentado pelo pai?

O narrador se surpreende ao sentir afeto pelo pai quando toca seu ombro e angustia-se ao vê-lo em situação de fragilidade: existia ali, afinal, uma “criatura humana”, antes escondida “sob a camada de violência”.

04 – Conto “Lá no morro” se passa durante o jantar de uma família. O tempo todo narrador menciona o “fogareiro”, o “prato de comida”, a “marmita”, a “porção de arroz”, “o garfo”, etc. Explique de que maneira esses elementos são retomados no último parágrafo, intensificando a experiência dramática vivida por esses personagens no barraco.

      Mesmo antes do parágrafo-desfecho do conto, o narrador utiliza a comida como símbolo de que as coisas não estão bem na família. A mãe dele, por exemplo, tem um acesso de tosse logo após fitar o pai e levar à boca uma pequena porção de arroz. No último parágrafo, a frieza e a imobilidade da mulher diante da violência sofrida pelo marido são quebradas com uma imagem forte, ligada ao ato de comer: “Mamãe estava com a cabeça quase dentro do prato e as lágrimas escorrendo de seu rosto pingavam sobre o resto da comida”.

05 – Quase no desfecho do conto narrador-personagem e forma que sua mãe diante de violência extrema a qual foi submetido o pai permanece “imóvel e fria do outro lado do caixote”. Embora o conto não explicite as razões que levam a mulher a ter essa reação, é possível levantar algumas hipóteses. Reúne-se com seus colegas e procure explicar isso.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A mulher pode ter ficado em pânico e sem reação e também com medo de levarem a ela ou fazerem algum mal ao seu filho.



 

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