quarta-feira, 3 de agosto de 2022

CRÔNICA: CAPÃO PECADO - (FRAGMENTO) - FERRÉZ - COM GABARITO

 Crônica: Capão pecado – Fragmento

                Ferréz


        Capítulo um

        [...]

        Rael acordava sempre às cinco da manhã, horário que presenciava seu pai já arrumado e sentado na cadeira, tomando café, esperando alguns minutos para ir trabalhar. Sua mãe sempre lhe trazia café com leite na cama, e ele não sabia que essa era a época mais feliz da sua vida.

        Era véspera de Natal, os três em volta da árvore brilhante, se é que se pode chamar um cabo de vassoura em um pote de margarina com cimento e quatro varetas de bambu com pedaços de algodão na ponta de árvore de Natal. Rael perguntou por que Natal tem árvore de Natal e Papai Noel.

        – É porque com o passar do tempo, o homem foi esquecendo o espírito real do Natal, então fez essa invenção toda, meu fio.

        – Ah! sei. Foi mais um suspiro que uma demonstração de entendimento.

        E eram já vinte horas.

        O lugar dos presentes estava vazio. E era quase Natal.

        – Ó, Zé, tem alguém no portão! exclamou Dona Maria.

        Zé Pedro correu seguido por seu filho, por seu gato Raul e por seu cachorro Renato e mais algumas sombras.

        O carteiro, com a carta na mão, esperava pacientemente, imaginando mais uma caixinha. Zé não deu, Zé não tinha, pegou a carta rapidamente e entrou.

        – O que que é veio? perguntou Dona Maria, abalada.

        – É da Metalco! respondeu Seu Zé, reconhecendo o símbolo da empresa onde trabalhava.

        – Abre veio, abre.

        – Abre, abre, abre, gritavam mãe e filho em coro com o latido do cachorro. O gato estava atento.

        O conteúdo do envelope era um cartão de Natal.

        Todos pensaram juntos, a firma se importa com o Zé, com certeza ele é muito especial.

        Seu Zé colocou o cartão na árvore e foi dormir, acompanhado de toda a família. A cama de solteiro era apertada para os três, mas eles sempre davam um jeito, o problema mesmo era a coberta, que não dava pra cobrir os pés e a cabeça.

        Mas Rael era muito curioso, e não conseguia dormir. Algo o incomodava. Levantou-se lentamente, acendeu a luz, foi até à árvore, pegou o cartão e resolveu ler, pois quando seu pai olhava o cartão, ele só estava fingindo entender o escrito, pois tinha vergonha de ficar dizendo que era analfabeto.

        Rael leu o cartão:

        “Um Feliz Natal e que seja feliz, você e toda a família, é o que nós da METALCO desejamos a todos nossos funcionários, Amor & Paz!”

        E Rael continuou a observar o cartão, notou que atrás havia letrinhas minúsculas, e, curioso, as leu.

        “Cartão comprado de associações beneficentes com efeito de abate no imposto de renda”.

        Era Rael sábio e entendeu aquilo.

        Era Zé Pedro humilde e dormia tranquilo.

        Era mais uma família comum.

        Era um Natal de paz.

        Rael carregou aquilo consigo, mas com o tempo isso se tornou algo insignificante. Suas perdas eram constantes e aparentemente intermináveis: o primeiro amigo a morrer lhe causou um baque e tanto, mas a morte dos outros dois fora menos desgastante, afinal Rael estava crescendo. A necessidade de roupas e de um material melhor para a escola o fez começar a trabalhar numa padaria. Nos finais de semana, ele fazia curso de datilografia no mutirão cultural.

        Naquele quinto dia do mês foi seu pagamento, seu primeiro pagamento. Ele chegou em casa todo orgulhoso, e já havia separado a parte de sua mãe, mas ela não se encontrava na cozinha, isso era sinal de que já estava dormindo. Rael foi conferir, e estava certo, Dona Maria dormia, enrolada na única coberta da casa. Também, o descanso naquela hora era mais do que merecido, pois trabalhava em casa de família como diarista e ainda realizava o serviço de casa. Rael voltou para a cozinha, pegou a chaleira, pegou um copo e derramou o pouco de café que tinha em seu interior. Bebeu o café meio enojado, pois o líquido negro estava gelado; procurou fósforo para acender o fogão, mas não achou, e se lembrou que seu pai sempre esquecia as caixas de fósforo nos bares quando já estava de fogo. Ficou nervoso com a lembrança das bebedeiras de seu pai e foi dormir.

FERRÉZ. Capão pecado. 2. ed. São Paulo: Labortexto Editorial, 2000. p. 27-30.

             Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 117-9.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado da palavra caixinha?

      Gorjeta; dinheiro (além do devido) com que se gratifica um pequeno serviço prestado por alguém.

02 – Nesse primeiro capítulo, o narrador apresenta o protagonista. Pelos fatos narrados, ações, sentimentos e falas de uma personagem, é possível inferir suas características. Com base nisso, trace o perfil de Rael.

      Rael é filho único, amoroso, tem pais pobres e analfabetos, é morador da periferia, perde amigos, deseja superar a violência por meio do estudo e do trabalho, sofre com o alcoolismo do pai. É sensível, respeitoso, trabalhador, esforçado, estudioso, orgulhoso do trabalho, grato e solidário com a família.

03 – As ações, a sequência dos fatos e dos acontecimentos são elementos que compõem as narrativas. As personagens estão sempre envolvidas em algum acontecimento.

a)   Qual é a situação vivida inicialmente pela personagem?

O cotidiano familiar aparentemente calmo em um dia de véspera de Natal.

b)   Que sequência de fatos gera mudanças na vida da personagem?

A chegada de um cartão de Natal revela a fragilidade do pai, analfabeto, o que faz com que Rael tome consciência das consequências do analfabetismo. A partir daí, ele perde amigos, começa a trabalhar e a fazer cursos nos finais de semana. Recebe o primeiro salário. Sente-se desconfortável com o alcoolismo do pai.

04 – Leia:

O narrador de terceira pessoa pode ser:

• narrador-observador, que presencia os acontecimentos, assim como as reações das personagens, e relata o que vê;

• narrador onisciente, que sabe o que as personagens sentem e pensam e conhece o seu destino – os acontecimentos do presente, do passado e do futuro.

Agora releia o trecho a seguir e, com base nele, identifique e explique o tipo de narrador de Capão pecado.

        “[...] e ele não sabia que essa era a época mais feliz da sua vida.”

      O narrador é de terceira pessoa, onisciente. Por meio desse comentário, ele antecipa que haverá mudança na situação inicial da personagem Rael, que vai enfrentar dificuldades.

05 – Qual é a relação entre os trechos a seguir?

• Todos pensaram juntos, a firma se importa com o Zé, com certeza ele é muito especial.

• [...] notou que atrás havia letrinhas minúsculas, e, curioso, as leu: ‘Cartão comprado de associações beneficentes com efeito de abate no imposto de renda’. Era Rael sábio e entendeu aquilo.

      Apesar da expectativa inicial em relação à deferência da empresa à família, Rael descobriu a real intenção da firma ao enviar o cartão de Natal: ter desconto no imposto de renda.

06 – Em uma narrativa, os fatos podem ser narrados em ordem cronológica e linear, isto é, em sequência (passado, presente e futuro), e em ordem não linear, na qual o narrador pode, aleatoriamente, lembrar fatos do passado, voltar ao presente e avançar no tempo.

a)   Qual é a organização temporal desse texto?

Ordem cronológica.

b)   É possível determinar com precisão o tempo cronológico? Explique.

Não, mas, considerando os fatos narrados, é possível dizer que se passou pelo menos um período longo. Exemplo: “[...] mas com o tempo isso se tornou algo insignificante.”.

07 – Releia:

        “[...] o primeiro amigo a morrer lhe causou um baque e tanto, mas a morte dos outros dois fora menos desgastante, afinal Rael estava crescendo.”

        Relacione esse trecho à teoria determinista que não acredita no acaso e afirma que todos os acontecimentos estão ligados entre si por rígidas relações de causalidade.

      Pode-se relacionar essa passagem ao determinismo ambiental, em que se afirma que a violência acaba naturalizada.

08 – Explique o uso do pretérito imperfeito do indicativo neste trecho:

        “Rael acordava sempre às cinco da manhã, horário que presenciava seu pai já arrumado e sentado na cadeira, tomando café, esperando alguns minutos para ir trabalhar. Sua mãe sempre lhe trazia café com leite na cama [...].”

      Esse tempo verbal indica fatos habituais vividos no passado.

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