Crônica: PARA O PEQUENO PRÍNCIPE
FERNANDA YOUNG
Nossa, há quanto tempo... Como vão as
coisas no seu pequeno planeta? Aqui, no meu, andam imensamente estranhas –
muito baobá para pouca flor, se é que você entende meus simbolismos.
Quem sempre fala de você é aquela
ex-miss que vivia chorando por sua causa, lembra? Ela me contou da sua amizade
com a Raposa.
Príncipe, como você é meu amigo de
infância, não posso deixar de alertá-lo. Cuidado com a Raposa. Ela parece uma coisa,
mas é outra. Faz-se de fofa e é uma cobra, uma chantagista.
Quando a conheci, ela disse que não
podia conversar comigo, pois não sabia quem eu era. “A gente só conhece bem as
coisas que cativou”, ela falou, toda insinuante.
Respondi que, se nós duas nos
cativássemos, ela ficaria triste quando eu fosse embora. Foi quando saquei que
ela queria ter um cacho comigo, pois a Raposa pegou no meu cabelo – eu estava
loira na época – e disse que tudo bem, porque ela olharia os campos de trigo e
se lembraria de mim.
Marcamos um encontro para o dia
seguinte, às 4. E ela me pediu para chegar às 4 em ponto, dessa forma ela
ficaria feliz desde as 3 somente por esperar o momento do nosso encontro. Achei
estranho, mas pensei que fosse charme. Não era.
Cheguei 15 minutos atrasada e a Raposa
surtou. Falou que nós somos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos.
E perguntou para mim, olhando diretamente nos meus olhos, se eu tinha
consciência de que “perder tempo” com o outro é o que faz essa história
importante. Percebeu o tom de chantagem? Ela joga na cara tudo o que faz em
nome do outro. Ela deseja afeto, mas o quer como uma responsabilidade de mão
única. Porém, também somos responsáveis quando nos deixamos cativar –
relacionamentos são vias de mão dupla.
A Raposa exige a certeza de um
compromisso com hora marcada, impondo regras à troca afetiva. As regras dela,
claro, já que ela quer todo o afeto a favor de seu bem-estar. Chega a ponto de
dizer que será feliz porque você virá. Como se a felicidade fosse algo
condicionado ao outro, à espera do outro, ao encontro com o outro.
Veja que coisa infantil. São as
crianças que precisam de horários certinhos e de associar suas emoções às
pessoas com quem se relacionam. Sentindo prazer ou desprazer diante da ausência
ou presença da mãe ou do pai ou de quem quer que seja. Na criança, ainda não há
um universo interior, entendeu? Quando nós crescemos, temos de conseguir ver o
mundo através das próprias perspectivas. Enxergar a beleza de um trigal sem nos
lembrar de ninguém.
A Raposa, como uma criança assustada,
quer que aqueles que a amam estejam com ela na hora em que ela deseja. Achando
que eles são “responsáveis” pela felicidade dela. Ou seja, o outro lhe deve
algo por tê-la cativado.
Desde esse dia, não falo mais com ela.
E aconselho você a fazer o mesmo. Ela não é flor que se cheire.
Saudades distantes, Fernanda Young.
YOUNG, Fernanda. Para
o pequeno príncipe. Claudia, São Paulo, 13 jun. 2008. Disponível em: https://fernandayoung.wordpress.com/2012/11/18/para-o-pequeno-principe/.
Acesso em: 13 maio 2020.
Fonte: Língua
Portuguesa – Estações – Ensino Médio – Volume Único. 1ª edição, São Paulo, 2020
– editora Ática – p. 98-9.
Entendendo a crônica:
01 – Fernanda Young adotou
uma estratégia ao escrever o texto lido: fazer uma crônica em formato de carta
pessoal.
a) Quem é o destinatário da carta pessoal e quem é o destinatário da crônica?
O destinatário da carta pessoal é o pequeno príncipe, personagem do
livro de Saint-Exupéry; já o destinatário da crônica é o leitor da revista em
que o texto foi publicado e que possivelmente leu. O pequeno príncipe.
b) O que motivou a escritora a escrever a carta e a crônica?
Logo no início do texto, Fernanda Young revela que o objetivo da
“carta” é alertar o pequeno príncipe de que a raposa é falsa e chantagista,
embora pareça confiável; ao longo do texto, ela apresenta argumentos para
justificar seu ponto de vista. Já o objetivo da crônica é desconstruir a frase
“tu te tornas responsável por aquilo que cativas”.
c) De que modo a escolha dessa estratégia provoca humor?
Por meio da paródia, a cronista expõe que a raposa fala para outros
o mesmo que disse para o príncipe, o que atribui ao texto, além de um efeito de
crítica, um efeito de humor. Esse efeito é construído pelo fato de Young optar
por protestar a moral da história por meio da conversa com as personagens.
d) Por que a cronista se refere a alguns trechos de O pequeno príncipe de modo literal?
Ao fazer referências muito próximas ao livro, a escritora permite
que as pessoas que não leram O pequeno príncipe compreendam a sua proposta
crítica; ao mesmo tempo, faz uma homenagem à obra, pois ela se refere ao
pequeno príncipe como seu amigo.
02 – Na história de
Saint-Exupéry, os baobás são árvores que podem destruir o planetinha do pequeno
príncipe e impedir que as rosas cresçam.
a) O que os baobás poderiam simbolizar nessa narrativa?
Muitas interpretações da obra de Saint-Exupéry associam os baobás
que ameaçam o planeta do pequeno príncipe aos perigos do nazismo na Segunda
Guerra Mundial, período no qual a obra foi escrita.
b) O que simbolizam os baobás e as rosas na crônica de Fernanda Young? Que trecho do texto permite essa interpretação?
No primeiro parágrafo, a crônica afirma que no seu planeta há “muito
baobá para pouca flor”. Considerando que Young dialoga com Saint-Exupéry, os
baobás podem simbolizar os problemas do mundo. A cronista sugere que na Terra
há muito mais mal do que bem.
03 – Releia os trechos a
seguir.
“[...]Ela parece uma coisa, mas é
outra. Faz-se de fofa e é uma cobra, uma chantagista.”
“[...]Foi quando saquei que ela queria
ter um cacho comigo, pois a Raposa pegou no meu cabelo – eu estava loira na época
– e disse que tudo bem, porque ela olharia os campos de trigo e se lembraria de
mim.”
“Cheguei 15 minutos atrasada e a Raposa
surtou. [...]”.
“Desde esse dia, não falo mais com ela.
E aconselho você a fazer o mesmo. Ela não é flor que se cheire.”
Que escolhas linguísticas a escritora usa nesses trechos para produzir humor?
A cronista fala
que a raposa se passa por “fofa”, mas é uma “cobra” – o uso da linguagem
figurada cria um contraste entre a importância do que se diz e a forma como se
escolheu dizer, tornando leve o alerta sério que se faz. Quando critica a
raposa, dizendo que ela “surtou” e que “não é flor que se cheire”, a autora usa
gírias; assim, o texto é atualizado, e essa informalidade gera também o humor.
04 – Por que, embora
apresente estrutura semelhante à de uma carta pessoal, o texto de Fernanda
Young é uma crônica?
O texto de Young
é uma crônica porque faz uma crítica, de forma humorística e autoral, veiculada
em uma revista, expressando sua opinião sobre um texto conhecido de muitos
leitores.
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