Romance: A jangada de pedra – Fragmento
José Saramago
[...]
Na história dos rios nunca acontecera
um tal caso, estar passando a água em seu eterno passar e de repente não passa
mais, como torneira que bruscamente tivesse sido fechada, por exemplo, alguém
está a lavar as mãos numa bacia, retira a válvula do fundo, fechou a
torneira, a água escoa-se, desce, desaparece, o que ainda ficou na concha
esmaltada em pouco tempo se evaporará. Explicando por palavras mais próprias, a
água do Irati retirou-se como onda que da praia reflui e se afasta, o leito do
rio ficou à vista, pedras, lodo, limos, peixes que saltando boquejam e morrem,
o súbito silêncio.
Os engenheiros não estavam no local
quando se deu o incrível facto, mas aperceberam-se de que alguma coisa anormal
acontecera, os mostradores, na bancada de observação, indicaram que o rio
deixara de alimentar a grande bacia aquática. Num jipe foram três
técnicos averiguar o intrigante sucesso, e, durante o caminho, pela margem
do embalse, examinaram as diversas hipóteses possíveis, não lhes faltou tempo
para isso em quase cinco quilómetros, e uma dessas hipóteses era que um
desabamento ou escorregamento de terras na montanha tivesse desviado o curso do
rio, outra que fosse obra dos franceses, perfídia gaulesa, apesar do acordo
bilateral sobre águas fluviais e seus aproveitamentos hidroeléctricos, outra,
ainda, e a mais radical de todas, que se tivesse exaurido o manancial, a fonte,
o olho-d’água, a eternidade que parecia ser e afinal não era. Neste ponto
dividiam-se as opiniões. Um dos engenheiros, homem sossegado, da espécie
contemplativa, e que apreciava a vida em Orbaiceta, temia que o mandassem para
longe, os outros esfregavam de contentamento as mãos, podia ser que viessem a
transferi-los para uma das barragens do Tejo, o mais perto de Madrid e da Gran
Vía. Debatendo estas ansiedades pessoais chegaram à ponta extrema do embalse,
onde era o desaguadouro, e o rio não estava lá, apenas um fio escasso de água
que ainda ressumbrava das terras moles, um gorgolejo lodoso que nem para mover
uma azenha de brincar teria força, Onde é que raio se meteu o rio, isto
disse o motorista do jipe, e não se poderia ser mais expressivo e rigoroso.
Perplexos, atónitos, desconcertados, inquietos também, os engenheiros voltaram
a discutir entre si as já explicadas hipóteses, posto o que, verificada a
inutilidade prática do prosseguimento do debate, regressaram aos escritórios da
barragem, depois seguiram para Orbaiceta, onde os esperava a hierarquia,
já informada do mágico desaparecimento do rio. Houve discussões ácidas,
incredulidades, chamadas telefónicas para Pamplona e Madrid, e o resultado do
fatigante trabalho e trato veio a exprimir-se numa ordem muito simples,
disposta em três partes sucessivas e complementares. Subam o curso do rio,
descubram o que aconteceu e não digam nada aos franceses.
A expedição partiu no dia seguinte,
ainda antes do nascer do sol, caminho da fronteira, sempre ao lado ou à
vista do rio seco, e quando os fatigados inspectores lá chegaram compreenderam
que nunca mais tornaria a haver Irati. Por uma fenda que não teria mais de uns
três metros de largura, as águas precipitavam-se para o interior da terra,
rugindo como um pequeno Mágara. Do outro lado já havia um ajuntamento de
franceses, fora sublime ingenuidade pensar que os vizinhos, astutos e
cartesianos, não dariam pelo fenômeno, mas ao menos mostravam-se tão
estupefactos e desorientados como os espanhóis deste lado, e todos irmãos na
ignorância. Chegaram as duas partes à fala, mas a conversa não foi extensa nem
profícua, pouco mais que as interjeições de um justificado espanto, um
hesitante aventar de hipóteses novas pelo lado dos espanhóis, enfim, uma
irritação geral que não encontrava contra quem se voltar, os franceses daí a
pouco já sorriam, afinal continuavam a ser donos do rio até à fronteira, não
precisariam de reformar os mapas.
Nessa tarde, helicópteros dos dois
países sobrevoaram o local, fizeram fotografias, por meio de guinchos desceram
observadores que, suspensos sobre a catarata, olhavam e nada viam, apenas o
negro boqueirão e o dorso curvo e luzidio da água. Para se ir adiantando
algum proveito, as autoridades municipais de Orbaiceta, do lado espanhol, e de
Larrau, do lado francês, reuniram-se junto do rio, debaixo de um toldo armado
para a ocasião e dominado pelas três bandeiras, a bicolor e tricolor nacionais,
mais a de Navarra, com o propósito de estudarem as virtualidades turísticas de
um fenômeno natural com certeza único no mundo e as condições da sua
exploração, no interesse mútuo.
[...]
SARAMAGO,
José. A jangada de pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.
19-21.
Fonte: Livro Língua Portuguesa
– Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 136-9.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Irati: rio que nasce na França e passa pela Espanha. Em
tupi-guarani, significa “rio de mel”.
·
Boquejar: abocanhar, bocejar.
·
Embalse: local de um rio por onde passa ou se tem acesso a uma
balsa, espécie de jangada grande usada para transportar cargas
pesadas, percorrendo, geralmente, pequenas distâncias.
·
Perfídia: deslealdade; falsidade; traição.
·
Gaulesa: referente a Gália, antigo território onde hoje se situa a
França.
·
Orbaiceta: povoado espanhol situado na margem do rio Irati.
·
Tejo: rio mais importante e mais extenso da Península Ibérica.
Nasce na Espanha e deságua no Oceano Atlântico, banhando Lisboa.
·
Ressumbrar: deixa sair ou cair líquido em pouca quantidade ou gota a
gota; gotejar, destilar.
·
Gorgolejo: emitir som parecido com o de um gargarejo.
·
Azenha: moinho de roda movido a água.
·
Pamplona: capital de Navarra, comunidade da Espanha.
·
Mágara: caverna de origem vulcânica.
·
Cartesiano: racional; afeito a ideias claras e procedimentos exatos;
rigorosos.
·
Estupefacto: pasmado, assombrado, atônito.
·
Profícuo: útil, proveitoso, vantajoso.
·
Aventar: perceber, pressentir; ocorrer, lembrar; imaginar; supor.
·
Larrau: pequena comunidade francesa localizada na região
administrativa da Aquitânia, nas montanhas dos Pirineus, que fazem divisa
com a Espanha.
·
Navarra: comunidade autônoma da Espanha cuja capital é Pamplona.
02 – Você já leu algum
romance do escritor português José Saramago?
Resposta pessoal do aluno.
03 – Sabe que ele foi o
primeiro autor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura pelo
conjunto de sua obra?
Resposta pessoal do aluno.
04 – O que o título ou a
metáfora “A jangada de pedra” lhe
sugere?
A
metáfora da “jangada de pedra”
No período das grandes navegações e
dos descobrimentos, os países que formam a Península Ibérica − Portugal e
Espanha − dominaram as fronteiras e tiveram um passado considerado rico,
heroico e glorioso. Por questões políticas e econômicas, eles perderam a
hegemonia para países como a Inglaterra e a França.
Para remeter à história de Portugal e
Espanha e dar título ao romance, Saramago aproveita-se de um ditado
popular português que compara a Península Ibérica ao formato de uma
jangada, embarcação rudimentar comumente usada na costa marítima e que não
conseguiria ultrapassar mares ou oceanos. Na ficção, a Península assume o papel
metafórico de uma “jangada de pedra” que vai se afastando da Europa, navegando
sem rumo, à deriva, pelo Oceano Atlântico.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sugere
dinamismo, associado ao movimento dos ventos, deslocamentos por meio de
travessia marítima. Já a palavra pedra costuma ser associada a rigidez e vista
como elemento estático.
05 – Com base no boxe anterior
e no trecho lido de “A jangada
de pedra”, responda:
a) Qual é o foco narrativo do texto? Qual é o cenário?
Foco narrativo em terceira pessoa. As ações se passam às margens do
rio Irati, no povoado de Orbaiceta, fronteira com a França, para onde se
deslocaram técnicas e autoridades espanholas.
b) Qual é o elemento fantástico presente nesse trecho? O que esse elemento desencadeia?
O rio Irati secou: “[...] o leito do rio ficou à vista, pedras,
lodo, limos, peixes que saltando boquejam e morrem [...]”. Esse fato
desencadeia uma sequência de ações de especialistas e autoridades para entender
o fenômeno e um encontro entre autoridades espanholas e francesas para avaliar
a situação.
06 – Releia:
·
[...] obra dos franceses, perfídia gaulesa, apesar do acordo
bilateral sobre águas fluviais [...]
·
[...] e não digam nada
aos franceses.
·
Do outro lado já havia um ajuntamento de franceses, fora
sublime ingenuidade pensar que os
vizinhos, astutos e cartesianos,
não dariam pelo fenômeno [...]
O que essas passagens revelam?
Essas passagens
revelam a disputa política entre Espanha e França.
07 – Os escritores do
realismo fantástico relatam fatos sobrenaturais para criticar a realidade. Que
críticas podem ser inferidas com base nos fatos narrados nesse trecho?
Há críticas: à
rivalidade entre espanhóis e franceses; aos franceses, por não demonstrarem
solidariedade ao perceberem que não tiveram nenhum prejuízo; às autoridades dos
dois países, que logo pensaram em tirar proveito da situação; e aos técnicos,
engenheiros e especialistas que não conseguem explicar o fenômeno.
08 – Releia:
“[...] os franceses daí a pouco já
sorriam [...]”
Como você interpreta esse trecho?
Os
franceses compreenderam, aliviados, que não tinham sido prejudicados pelos
fenômeno natural, pois o rio não mudara seu curso na França. Continuava o
mesmo, de modo de eles não teriam de alterar os mapas ou tornar qualquer outra
providência.
09 – Releia outro trecho:
“Para se ir adiantando algum proveito,
as autoridades municipais de Orbaiceta, do lado espanhol, e de
Larrau, do lado francês, reuniram-se junto do rio, debaixo de um toldo
armado [...]”
Qual foi o objetivo dessa reunião?
As autoridades municipais reuniram-se
para estudar um meio de tirar proveito do fenômeno natural e concluíram que
seria possível explorar turisticamente a região, de modo a atender aos
interesses dos dois países.
10 – Como observamos
em “A jangada de pedra”, o
escritor português José Saramago tem estilo próprio e usa recursos como: a
criação de frases e parágrafos longos; a transgressão de determinadas regras
convencionadas da modalidade escrita; a não marcação do discurso direto
com parágrafos, travessões ou aspas. Leia um exemplo:
“[...]
Onde é que raio se meteu o rio, isto disse o motorista do jipe, e não
se poderia ser mais expressivo e rigoroso.”
a) Releia o texto de Saramago e encontre outro exemplo em que ele não marca o discurso direto com parágrafos, travessões ou aspas.
Outro exemplo de discurso direto sem uso de parágrafo, travessão ou
aspas: “Houve discussões ácidas, incredulidades, chamadas telefónicas para
Pamplona e Madrid, e o resultado do fatigante trabalho e trato veio a
exprimir-se numa ordem muito simples, disposta em três partes sucessivas e
complementares. Subam o curso do rio, descubram o que aconteceu e não digam
nada aos franceses.”
b) Esse tipo de pontuação do discurso direto pode ter qual finalidade?
Pode ter a finalidade de marcar o fluxo mais veloz do pensamento e
da fala, como se a história fosse contada oralmente, sem interrupções.
11 – Você concorda com a
visão de que a vida apresenta muitos aspectos absurdos e de que o real e o
fantástico costumam se cruzar? Converse com os colegas e o professor.
Resposta pessoal do aluno.
12 – Ao ler esse trecho
da obra de Saramago, você deve ter percebido algumas diferenças entre a língua
falada e escrita em Portugal e a falada e escrita no Brasil.
a) Identifique diferenças de grafia e escreva-as no caderno.
Uso da letra c em
palavras como facto, inspectores, etupefactos, hidroeléctricos.
Uso de acento agudo em palavras que, no Brasil, recebem acento circunflexo,
como atónitos, quilómetros, telefónicas.
b) O que essas diferenças de grafia revelam?
Revelam diferenças de pronúncia.
c) Que palavras e expressões presentes no texto não são comumente usadas no português atual do Brasil?
Azenha, gorgolejo, ressumbrava, boquejam, embalse, bacia (com
sentido de pia) etc.
d) No Brasil, que forma verbal seria mais usual que a destacada em: “[...] alguém está a lavar as mãos numa bacia [...]”.
O gerúndio (“alguém está lavando
as mãos numa bacia”) ou o imperfeito do indicativo (“alguém lavava as mãos numa bacia”).
Amei esse texto, muito bem trabalhado
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