Conto: Ficção
Resisti ao carro blindado. Fumo,
tenho claustrofobia, é ideologicamente nefasto, uma provocação
perigosa. Enfim, a coisa piorou e passou a ser arrogante e irresponsável
deixar-me morrer abrindo mão das defesas de que disponho. Tenho filhos,
exerço uma liderança produtiva na sociedade, pesquiso as origens de nossa
desarmonia social. Tenho pânico. E o pânico de ser atacada, machucada,
humilhada e morta minava meu raciocínio. Cedi ao carro blindado.
A
energia que gasto andando em um é equivalente à que gastava andando em um não.
Exige a mesma dose de alienação. Se desprotegida, qualquer pedestre
é um assassino, quebraram-se os códigos morais capazes de deter sua ação
predadora, o nosso fracasso. O medo dirige e transforma em hostilidade todo o
humano, torno-me uma idiota. Se protegida, blindada, perco o contato. Sem medo
não há vida, afastado o mal, o bem se vai, não faço parte, torno-me uma
idiota.
A rua é um espaço vazio que percorro no
vácuo. O vazio não existe, é desejo vão. Tudo deixa sua marca. As artérias
permanecem cheias e pulsantes, e o oco não existe. Se o sangue para de correr,
seca e entope, os vermes alimentam-se, sempre haverá matéria viva a ocupar
os corredores estreitos da cidade.
Estava parada em um engarrafamento, no
final de um dia poluído. O homem surgiu e bateu na janela com uma arma preta. O
movimento de sua boca berrava e a voz chegava baixa. Passa o dinheiro, passa o
dinheiro ou vai morrer. Agora, abre a janela, agora, agora, ou vai morrer, ou
vai morrer. Olhava louco para mim, olhava louco para mim. Ou vai morrer,
ou vai morrer. Olhava sua boca, seus olhos, a arma preta, a aflição e a raiva e
me convencia que era cinema. Não tentei explicar-lhe, ele entenderia. O
vidro blindado transformava sua ação, eu podia olhar, observar os detalhes de
sua roupa, a língua escura e o tamanho pequeno das mãos agarrando a arma preta.
A arma preta apontada contra meus olhos, o canal oco da arma preta
tremendo, argumento claro, abre, sua vaca, eu vou atirar. Minha
curiosidade apática minava sua decisão, o argumento oscilava.
O rapaz entendeu sua
impossibilidade, titubeou, apoiou as mãos no vidro, uma fechada na arma,
aproximou o rosto e cuspiu minha morte mais uma vez. Eram de um animal os
olhos, a palma da mão suada e a saliva. Furioso, enjaulado, um fila brasileiro
latindo e pulando atrás das grades enquanto caminhamos na calçada. Ele segurou
a arma com as duas mãos e mirou em meu rosto. Eu mirava calma e hipnotizada,
intrigada com o fim.
Um frio monstruoso me sobe do estômago
e para meu coração. Hoje é dia de rodízio, eu não estou no blindado. Meus
olhos pulam de horror, as mãos crispadas na boca aberta e hirta,
sem qualquer possibilidade de voz, pedi piedade. Ele entendeu e riu. Num
só golpe, quebrou o vidro com a mão da arma, esmurrou meu rosto e sumiu
deixando o revólver de brinquedo no meu colo manchado com nosso sangue.
BRACHER, Beatriz.
Ficção. Meu amor. São Paulo: Editora 34, 2009. p. 51-52.
Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na
língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição
– São Paulo, 2016 – Moderna – p. 63-4.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Claustrofobia: medo exagerado de estar em lugares fechados.
· Ideologicamente: refere-se, no contexto, ao conjunto de valores da personagem.
·
Nefasto: desfavorável.
·
Alienação: distanciamento, indiferença.
·
Titubeou: hesitou, vacilou.
·
Rodízio: restrição na circulação de carros.
·
Crispadas: contraídas.
·
Hirta: rígida.
02 – No primeiro
parágrafo do conto, quais são as justificativas da narradora para ter
resistido, durante algum tempo, à compra de um carro blindado?
A narradora
apresenta como justificativa o fato de ter claustrofobia e ser “ideologicamente
nefasto” possuir um carro blindado.
03 – Nesse mesmo parágrafo,
ela apresenta motivos para ter cedido ao desejo de adquirir um veículo
blindado. Transcreva os trechos que evidenciam suas razões.
Segundo a narradora, o mundo ficou mais
violento, e passou “a ser arrogante e irresponsável” que ela se deixe “morrer
abrindo mão das defesas” de que dispõe, ou seja, ter um carro blindado. Também
justifica a proteção afirmando que tem filhos, que exerce “uma liderança produtiva
na sociedade”, pois pesquisa “as origens de nossa desarmonia social”, além de
ter pânico de ser “atacada, machucada, humilhada e morta”.
04 – No segundo parágrafo, a
narradora fala sobre o que ela denomina “o nosso fracasso”.
a) Explique o que seria esse fracasso.
“Nosso fracasso” seria o fato de vivermos em um mundo em que os
códigos morais já não são capazes de deter a “ação predadora” das pessoas.
b) Por que ela utiliza o pronome nosso e não meu?
Porque ela quer dizer que o fracasso é da sociedade toda, e não
apenas de uma pessoa.
05 – Por que o carro
blindado “idiotiza” a narradora?
Porque o carro
dotado desse recurso evita que ela tenha medo. E, segundo ela, “sem medo não há
vida” e “afastado o mal, o bem se vai”.
06 – Em geral, o discurso
direto é indicado de duas maneiras no texto: pelo uso do travessão ou das
aspas.
a) De que forma esse tipo de discurso é indicado no conto?
Não há sinais gráficos de indicação do discurso direto, que aparece
sem qualquer marca formal no meio do parágrafo. O leitor é que o deduz.
b) Explique que efeito tem no texto a forma como o discurso direto é apresentado.
Com a supressão das aspas ou dos travessões, a autora dá agilidade
ao relato, tornando-o mais próximo de um discurso real. O fato de o ladrão
falar e gritar no meio do parágrafo – sem indicação prévia de discurso direto –
dá ao leitor a impressão de que várias coisas estão acontecendo ao mesmo tempo:
a narradora está trancada, mantém uma “curiosidade apática” em relação ao que
vê, reflete sobre o fato e ouve os gritos.
07 – Por que a narradora se
convenceu de que aquilo que ela estava vivendo era “cinema”? Apresente
elementos do texto que justifiquem essa metáfora.
Porque, assim
como no cinema, em que se vê um filme em total segurança, estando a narradora
em um carro blindado, ela não seria atingida pela violência que testemunhava.
Como em um filme, a personagem assistia a todas as cenas: “Olhava sua boca,
seus olhos, a arma preta, a aflição e a raiva”; “podia olhar, observar os
detalhes de sua roupa, a língua escura e o tamanho pequeno das mãos agarrando a
arma preta”.
08 – A metáfora do
cinema transforma-se, no penúltimo parágrafo, em outra metáfora, a do “animal
enjaulado”. Explique essa figura de linguagem e sua função expressiva no texto.
Assim que o rapaz
percebeu que sua vítima estava protegida, tornou-se furioso e agressivo como um
animal preso. Entretanto, toda essa violência e selvageria seriam inúteis, já
que a narradora julgava estar segura no carro que pensava ser blindado. A
imagem que ela vê se assemelha à de um cão fila brasileiro que late e pula
atrás das grades e não pode atacar ninguém.
09 – Explique a inversão de
papéis entre a narradora e o assaltante no parágrafo que serve de desfecho para
o conto.
A narradora –
antes “apática”, “calma”, “hipnotizada”, “intrigada” com o que via, por julgar
estar sendo protegida pela blindagem do carro – passa a ser observada pelo
assaltante, que percebe rapidamente seu medo nos olhos que “pulam de horror”,
nas “mãos crispadas, na boca aberta e hirta, sem qualquer possibilidade de voz”
e no pedido de “piedade”. Depois de quebrar o vidro e esmurrar o rosto da
mulher, o ladrão deixa um revólver de brinquedo no local, sugerindo que, assim
como os vidros pareciam blindados para ele, o revólver parecia real para ela.
10 – Explique de que maneira
a expressão nosso sangue, que
encerra o conto, estabelece uma relação entre personagens de classes
sociais tão distintas.
O pronome nosso se refere ao sangue de
ambos os personagens. Esse elemento serve para lembrar o leitor de que a
narradora e o assaltante são igualmente humanos, mesmo pertencendo a classes
sociais diferentes.
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