sábado, 13 de agosto de 2022

ROMANCE: CAPITU - OLHOS DE RESSACA - CAP. XXXII - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 Romance: Capitu – Olhos de ressaca – Cap. XXXII

    Machado de Assis

        [...]

        Tudo era matéria às curiosidades de Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as coisas, como eu. É o que contarei no outro capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal, nem esperou que eu lhe perguntasse pela filha.

        — Está na sala, penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar um susto.

        Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que não fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre as duas janelas. Se não foi ele, foi o pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na sala, pente, cabelos, toda ela voou pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta:

        — Há alguma coisa?

        — Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral chegue para a lição. Como passou a noite?

        — Eu bem. José Dias ainda não falou?

        — Parece que não.

        — Mas então quando fala?

        — Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assunto; não vai logo de pancada, falará assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrará em matéria. Quer primeiro ver se mamãe tem a resolução feita...

        — Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso alguém para vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar?... Ele é atendido; se, porém... É um inferno isto! Você teime com ele, Bentinho.

        — Teimo; hoje mesmo ele há de falar.

        — Você jura?

        — Juro! Deixe ver os olhos, Capitu.

        Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...

        Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos, e disse-lhe, — para dizer alguma coisa, — que era capaz de os pentear, se quisesse.

        — Você?

        — Eu mesmo.

        — Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.

        — Se embaraçar, você desembaraça depois.

        — Vamos ver.

        [...].

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. In: COUTINHO, Afrânio (Org.). Machado de Assis: obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. v. 1, p. 842-843. Fragmento.

      Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição – São Paulo, 2016 – Moderna – p. 88-90.

Entendendo o romance:

01 – Com um propósito bastante objetivo, o narrador estabelece uma relação entre a metonímia (“espelhinho de pataca”, “comprado de um mascate italiano”, de “moldura tosca”, “argolinha de latão”, etc.) e a condição social de Capitu e de sua família. Qual é o interesse do narrador em revelar a condição econômica de Capitu?

      Capitu cobra insistentemente de Bentinho uma posição sobre a intervenção de José Dias junto a D. Glória para que o filho deixe o seminário. Logo depois é indicada ao leitor a condição social da moça. Com isso, o narrador talvez tenha querido dizer que Capitu estava interessada em casar-se logo com ele por causa da condição social privilegiada do rapaz.

02 – A agressividade explícita contida na fala de Capitu, reproduzida a seguir, permite-nos inferir duas leituras sobre suas motivações para desejar tanto a saída de Bentinho do seminário.

        “— Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso alguém para vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar?... Ele é atendido; se, porém... É um inferno isto! Você teime com ele, Bentinho.”

a)   Qual seria a primeira leitura (a favor de Capitu)?

A primeira leitura – mais romântica – estaria ligada ao profundo amor que Capitu nutre por Bentinho, o que justificaria seu aborrecimento com ele, com José Dias e com D. Glória.

b)   Qual seria a segunda leitura (contra ela)?

A segunda leitura estaria ligada aos interesses de ascensão social de Capitu. Nesse ponto de vista, não se casar com Bentinho – pelo fato de ele ser obrigado a ser padre – representaria permanecer naquela situação financeira modesta, cuja metonímia do espelho denuncia e reforça.

c)   Explique de que maneira essas duas possibilidades de leitura reforçam a ambiguidade de Capitu.

Capitu – filtrada pelos olhos de Bentinho – Dom Casmurro – poderia ser vista tanto como uma mulher ingênua, motivada unicamente pelo amor, quanto como uma mulher manipuladora, motivada por interesses financeiros.

03 – Por que Bentinho se lembra de observar os olhos de Capitu depois de ela pedir a ele que jure que José Dias vai tentar convencer D. Glória?

      Porque, de alguma forma, Bentinho – ainda que adolescente e ingênuo – desconfia de que está sendo manipulado, o que confirmaria a definição de José Dias para os olhos de Capitu: “[...] de cigana oblíqua e dissimulada”.

04 – Uma das metáforas mais conhecidas da literatura brasileira, ligadas à caracterização dos olhos de uma mulher, está no capítulo que você acabou de ler.

a)   Que comparação o narrador faz para construir sua metáfora?

O narrador compara os olhos de Capitu à ressaca do mar.

b)   Explique a metáfora utilizada por Betinho ao falar dos olhos de Capitu.

Bentinho defende que, assim como as ondas do mar quando recuam da praia em dias de ressaca, os olhos de Capitu possuíam uma força misteriosa que poderia arrastar o observador “para dentro” deles e, eventualmente, afoga-lo.

 

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