quarta-feira, 9 de abril de 2025

CARTA: CARTA DO PLEISTOCENO - MARINA COLASANTI - COM GABARITO

 Carta: Carta do Pleistoceno 

           Marina Colasanti

Senhores cientistas, 

quem daqui lhes escreve – daqui não sendo o além exatamente mas uma espécie de ponto de vista – é o mamute. O mamute aquele que vocês trouxeram recentemente à luz lá pelos lados da Rússia – à luz ofuscante dos flashes e dos holofotes de TV, é bom que se diga, porque uma certa luz fraca e opalinada me alcançou sempre através do gelo. E escrevo porque chegou-me a notícia – como chegam depressa as notícias nesse tempo vosso! – de que estão tentando me clonar.

 Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhs312zy28dRats2gtLyxE4ejijNr6ppYSv1_8dWW5h2UqTC8A8xUeyFc9F8PJwM2BcipWrvsc9PcsQBFZ8dCJz8JaxV9jslEySYKIkHBJQt1Pmk41sfU1tH3icgAp4iJX4tKCb3G0fXVgoOCjHuMoPUue3cp0vJE6X16bVphz9mO8GPOeZqlHNjgc8ICc/s320/mamute-131595836.jpg


        Estão planejando tirar um pedaço de mim, daquilo que vocês chamam de DNA, manipulá-lo de alguma maneira que para meu cérebro parece assaz complicada, mas que deveria se concluir com a minha presença implantada num óvulo de elefanta, decorrente gravidez, e posterior nascimento. 

        Peço-lhes encarecidamente que não façam isso. Poderia invocar os direitos do autor pois, embora mínino, qualquer pedaço de mim me pertence, mas receio não estar coberto por vossas leis autorais. Apelo então para aqueles sentimentos caridosos que dizeis habitar vosso coração. E para o bom senso, que infelizmente nem sempre tem esse mesmo endereço.

        Estou, como os meus semelhantes, extinto desde o Pleistoceno. Boas razões tivemos para sumir, embora ainda não pudéssemos prever o que vocês aprontariam no planeta. Não sumimos sozinhos. Outras coisas se foram desde então, outros animais. Aparentemente não fizeram falta. Nosso erro, talvez, foi ter deixado o retrato nas paredes das cavernas. Sem querer, alimentamos saudades. E agora nos querem de volta. Mas, nascido outra vez, o que faria eu?

        Único de minha espécie, que função me dariam vocês depois de me fazerem atravessar à força 200 mil anos? Uma jaula de zoológico ou um viveiro de laboratório? Serviria para o turismo ou como cobaia? Seria uma peça de museu viva ou criatura que escapou de algum desses filmes de que vocês tanto gostam? E quem embolsaria o cachê pelo uso da minha imagem? 

        No meu mundo, os homens que me caçavam com suas armas de pontas de pedra me temiam, quase como a um deus, e à noite, ao redor do fogo, falavam de mim com reverência. No mundo de vocês eu seria apenas um monstro que não inspira respeito a ninguém. Um monstro solitário, sem sequer a possibilidade de apaixonar-me por uma loura e carregá-la para o alto do Empire State Building. Um monstro condenado à vida.

        E como explicar, à elefanta de quem eu nasceria, nosso estranho parentesco?

        O desmonte daquilo que fui já começou, antes mesmo do sequestro do meu DNA. Plantado no gelo durante séculos como uma árvore submersa, permaneci, até vossa chegada, com a dignidade de um ser grandioso. Eu era uma estátua da minha era. Intacto. Soberbo. Logo acabaram com isso. Sequer tiveram a elegância de serrar inteiro o bloco que me continha. Serraram apenas o que lhes interessava, a porção que me manteria congelado. Os dentes deixaram de fora. E assim retangular, como uma embalagem de leite ou uma caixa de polpa de tomate em que alguém tivesse cravado dois garfos, fui içado por um guindaste diante dos olhos do mundo. Eu já não era uma estátua, era um container.

        Sei que para vocês eu nem mereço qualquer explicação, mas digam-me, qual é exatamente sua intenção? Esquecendo o brilhareco científico, suspeito que queiram trazer o passado de volta, com a desculpa de estudá-lo diretamente. 

        Mas se fomos extintos é porque já não nos encaixávamos nas condições ao redor – a evolução ejeta seus antigos parceiros. Para realmente trazer-nos de volta seria preciso clonar muito mais do que o meu DNA, seria preciso duplicar tudo aquilo que nos mantinha vivos. E uma vez recriado aquele universo, como vocês se encaixariam nele? 

        Permitam-me uma última pergunta: encontrando restos do Homo sapiens dos quais fosse possível retirar o DNA, tentariam vocês igualmente implantá-lo no ventre de uma mulher do século XXI?

Marina Colasanti. A casa das palavras. São Paulo: Ática, 2004. p. 17-19.

Fonte: Livro – Português: Linguagem, 8ª Série – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 4ª ed. – São Paulo: Atual Editora, 2006. p. 198-199.

Entendendo a carta:

01 – Quem é o remetente da carta e qual é a sua preocupação?

      O remetente da carta é um mamute extinto, recentemente descoberto por cientistas na Rússia. Sua principal preocupação é o plano dos cientistas de cloná-lo.

02 – Quais argumentos o mamute usa para dissuadir os cientistas de cloná-lo?

      O mamute apela para os sentimentos caridosos e o bom senso dos cientistas, questionando qual seria seu propósito em um mundo moderno e os direitos sobre seu próprio DNA. Ele também destaca a solidão e o estranhamento que sentiria.

03 – Como o mamute descreve a sua captura e o tratamento dado a ele pelos cientistas?

      O mamute descreve sua captura como um desmonte de sua dignidade, comparando-se a uma estátua de sua era que foi transformada em um "container" para transporte. Ele critica a falta de elegância dos cientistas em serrar apenas a parte que lhes interessava.

04 – Qual a crítica do mamute em relação à intenção dos cientistas de trazer o passado de volta?

      O mamute critica a ideia de trazer o passado de volta apenas para estudá-lo diretamente, argumentando que a extinção de sua espécie ocorreu porque ela não se encaixava mais nas condições do planeta. Ele questiona como os cientistas se encaixariam em um mundo recriado do passado.

05 – Qual a comparação que o mamute faz entre o tratamento que recebia dos homens do seu tempo e o que receberia no mundo moderno?

      O mamute compara o temor e a reverência que os homens pré-históricos tinham por ele com o tratamento que receberia no mundo moderno, onde seria visto como um monstro solitário e sem respeito.

06 – Qual a última pergunta do mamute aos cientistas e qual o seu propósito?

      O mamute pergunta se os cientistas tentariam clonar um Homo sapiens do Pleistoceno caso encontrassem seu DNA. O propósito é questionar a ética e os limites da ciência na manipulação da vida e do tempo.

07 – Qual o tom geral da carta e qual a sua mensagem principal?

      O tom geral da carta é de indignação, melancolia e questionamento. A mensagem principal é uma reflexão sobre a arrogância da ciência em tentar controlar a natureza e o tempo, e sobre a importância de respeitar a dignidade de todas as formas de vida.

 

 

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