Conto: Olhos d’água
Conceição
Evaristo
Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta
explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada custei
reconhecer o quarto da nova casa em que estava morando e não conseguia me
lembrar como havia chegado até ali. E a insistente pergunta, martelando,
martelando... De que cor eram os olhos de minha mãe? Aquela indagação havia
surgido há dias, há meses, posso dizer. Entre um afazer e outro, eu me pegava
pensando de que cor seriam os olhos de minha mãe. E o que a princípio tinha
sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite se transformou em uma
dolorosa pergunta carregada de um tom acusatório. Então, eu não sabia de que
cor eram os olhos de minha mãe?
Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo, busquei dar conta de
minhas próprias dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve
adolescência. Sempre ao lado de minha mãe aprendi conhecê-la. Decifrava o seu
silêncio nas horas de dificuldades, como também sabia reconhecer em seus
gestos, prenúncios de possíveis alegrias. Naquele momento, entretanto, me
descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor seriam os seus olhos. Eu
achava tudo muito estranho, pois me lembrava nitidamente de vários detalhes do
corpo dela. Da unha encravada do dedo mindinho do pé esquerdo... Da verruga que
se perdia no meio da cabeleira crespa e bela... Um dia, brincando de pentear
boneca, alegria que a mãe nos dava quando, deixando por uns momentos o
lava-lava, o passa-passa das roupagens alheias, se tornava uma grande boneca
negra para as filhas, descobrimos uma bolinha escondida bem no couro cabeludo
ela. Pensamos que fosse carrapato. A mãe cochilava e uma de minhas irmãs
aflita, querendo livrar a boneca-mãe daquele padecer, puxou rápido o bichinho.
A mãe e nós rimos e rimos e rimos de nosso engano. A mãe riu tanto das lágrimas
escorrerem. Mas, de que cor eram os olhos dela?
Eu me lembrava também de algumas histórias da infância de minha
mãe. Ela havia nascido em um lugar perdido no interior de Minas. Ali, as
crianças andavam nuas até bem grandinhas. As meninas, assim que os seios
começavam a brotar, ganhavam roupas antes dos meninos. Às vezes, as histórias
da infância de minha mãe confundiam-se com as de minha própria infância.
Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro
algum. Era como se cozinhasse ali, apenas o nosso desesperado desejo de
alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de
fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas
infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era
justamente nos dias de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava com as
filhas. Nessas ocasiões a brincadeira preferida era aquela em que a mãe era a
Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho de
madeira. Felizes colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que
circundava o nosso barraco. Aquelas flores eram depois solenemente distribuídas
por seus cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos reverências à Senhora.
Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça para a Rainha. Nós, princesas, em
volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só ria, de uma maneira
triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?
Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para
distrair a nossa fome. E a nossa fome se distraía.
Às vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do
tempo, ela se assentava na soleira da porta e juntas ficávamos contemplando as
artes das nuvens no céu. Umas viravam carneirinhos; outras, cachorrinhos;
algumas, gigantes adormecidos, e havia aquelas que eram só nuvens, algodão
doce. A mãe, então, espichava o braço que ia até o céu, colhia aquela nuvem,
repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós. Tudo tinha
de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se
esvaecessem também. Mas, de que cor eram os olhos de minha mãe?
Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas.
Em cima da cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os
olhos alagados de pranto balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso
frágil barraco desabasse sobre nós. E eu não sei se o lamento-pranto de minha
mãe, se o barulho da chuva... Sei que tudo me causava a sensação de que a nossa
casa balançava ao vento. Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam
com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então, porque eu
não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?
E naquela noite a pergunta continuava me atormentando. Havia
anos que eu estava fora de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de
melhor condição de vida para mim e para minha família: ela e minhas irmãs que
tinham ficado para trás. Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a
importância dela na minha vida, não só dela, mas de minhas tias e todas a
mulheres de minha família. E também, já naquela época, eu entoava cantos de
louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da
vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas
Senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias. Mas de que cor eram os
olhos de minha mãe?
E foi então que, tomada pelo desespero por não me lembrar de que
cor seriam os olhos de minha mãe, naquele momento, resolvi deixar tudo e, no
outro dia, voltar à cidade em que nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha
mãe, fixar o meu olhar no dela, para nunca mais esquecer a cor de seus olhos.
E assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de
estar cumprindo um ritual, em que a oferenda aos Orixás deveria ser descoberta
da cor dos olhos de minha mãe.
E quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra,
pude contemplar extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que
vi?
Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas,
eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios
caudalosos sobre a face? E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente
em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A
cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios
calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela
superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.
Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção. Senti
as lágrimas delas se misturarem às minhas.
Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento
descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de
uma são o espelho dos olhos da outra. E um dia desses me surpreendi com um
gesto de minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou
suavemente o meu rosto, me contemplando intensamente. E, enquanto jogava o
olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho como se fosse uma
pergunta para ela mesma, ou como estivesse buscando e encontrando a revelação
de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei, quando, sussurrando minha
filha falou:
Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?
(In: Olhos d’água, p. 15-19)
Entendendo o texto
01. Um conto é breve, ligado a uma única situação ou
evento.
a.
Qual é o conflito
vivido pela narradora em “Olhos d’água”?
Conflito que gera o
conto é a narradora não saber ou não se lembrar da cor dos olhos de sua mãe.
b.
Chamamos de clímax o
momento de maior tensão do enredo, em que os fatos caminham para um final. Qual
cena da narrativa pode ser associada ao clímax?
O reencontro entre a narradora e sua mãe,
no qual aquela constata que os olhos de sua mãe têm cor de olhos d’água.
02. A narrativa é feita em 1ª pessoa por um narrador,
que é também personagem.
a.
Como o
narrador-personagem se apresenta? Justifique sua resposta com trechos do conto.
Resposta
pessoal.
b.
De que modo a
narradora vê a própria mãe?
Como uma mulher
criativa, sensível, amorosa, dedicada aos filhos, que conta histórias, que
mantém a família unida.
c.
Em relação à
descrição dos personagens no conto, o que predomina: as características físicas
ou as psicológicas? Predomina o perfil psicológico dos
personagens.
03. Ao longo do texto, uma pergunta se repete: “Mas de
que cor eram os olhos de minha mãe?”
a.
Com quem a narradora
dialoga? Explique sua resposta.
Consigo
mesma, como se ela estivesse pensando em voz alta.
b.
O que a repetição da
pergunta revela sobre o estado emocional da narradora?
Indica a angústia da narradora
por não saber ou não se lembrar da cor dos olhos da mãe.
04. No conto, o
espaço é sempre delimitado. Nessa narrativa, podemos perceber que há dois
espaços:
a)
Quais informações a
narradora revela sobre esses espaços?
Espaço da infância: trata-se de um
lugar pobre, no qual a narradora e sua família vivem em uma habitação mal
construída, um barraco. Espaço atual: longe de sua cidade natal, afirmado nos trechos
“longos dias de viagem para chegar à minha terra” e “resolvi deixar tudo e, no
outro dia, voltar à cidade em que nasci”.
b)
Ao descrever a viagem, a narradora afirma:
“Voltei aflita, mas satisfeita.”. Em sua opinião, quais foram os motivos da
aflição e da satisfação?
Resposta
pessoal.
05. Qual é
a questão que atormenta a narradora no início do conto?
a) Qual era o nome de sua mãe?
b) De que cor eram os olhos de sua
mãe?
c) Onde ela morava atualmente?
06. Como a narradora descreve sua infância
ao lado da mãe?
a) Feliz e tranquila.
b) Dolorosa e cheia de mistérios.
c) Agitada e repleta de aventuras.
07. Em
que momento a mãe brincava de ser a Senhora, a Rainha?
a)
Nos dias de chuva.
b) Nos dias de fartura de comida.
c) Nos dias em que a família passava
fome.
08. Como a mãe distraía a fome das filhas
nos momentos difíceis?
a)
Contando histórias da infância.
b) Inventando jogos e brincadeiras.
c)
Cozinhando alimentos saborosos.
09. Nos
dias de forte chuva, qual era o temor da mãe?
a) Que sua filha se perdesse na
tempestade.
b) Que a casa desabasse sobre a
família.
c) Que os raios atingissem o barraco.
10. O
que a narradora decide fazer para descobrir a cor dos olhos de sua mãe?
a) Consultar um vidente.
b) Voltar à cidade onde nasceu.
c) Perguntar às suas irmãs.
11. O que a narradora encontra ao contemplar
os olhos de sua mãe em sua cidade natal?
a) Olhos secos e sem expressão.
b) Lágrimas e um sorriso feliz.
c) Olhos azuis e
penetrantes.
12. Qual é a revelação surpreendente sobre a cor
dos olhos de sua mãe?
a) Eram verdes como esmeraldas.
b) Eram negros como a noite.
c) Eram cor de olhos d’água, águas de
Mamãe Oxum.
13. O que a narradora pede à
mãe ao descobrir a cor de seus olhos?
a)
Dinheiro.
b) Proteção.
c) Conselhos.
14. Como a narradora tenta
descobrir a cor dos olhos de sua filha?
a) Perguntando diretamente.
b) Observando a mudança de cor.
c) Brincando de
refletir os olhos uma na outra.
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