Crônica: Amai o próximo, etc...
Marina Colasanti
Atendo
o telefone na minha casa. “Victor está?” diz a voz do outro lado sem sequer um
alô, um por favor, nada. Eu, amável, informo que Victor não está nem pode estar
porque não mora aqui. O outro bate o telefone na minha cara. Dois minutos, e o
telefone toca novamente. “Quero falar com Victor” vem a mesma voz. “O senhor é
muito mal-educado”, ataco logo para não lhe dar tempo de desligar. “Acabou de
ligar, nem me agradeceu, nem me pediu desculpas, e bateu com o telefone. Como
já lhe disse, Victor não mora aqui.” A voz se faz mais mansa, “A senhora,
desculpe. Muito obrigado.” E desliga.
Exulto.
Ponto a favor da educação. Pois, se com medo de infringir-lhe as regras, sempre
me abstenho de reprimendas desse tipo, é justamente para mantê-las vivas – as
regras, não as reprimendas – que convém fazê-las.
Digo
obrigada à caixa do supermercado, que não me responde. Peço por favor ao
funcionário do guichê que nem levanta os olhos para a minha pessoa. Dou bom-dia
ao sujeito do açougue que parece não entender de que dia ou de que qualidade
estou falando. Sou uma otária? Não, sou uma resistente.
Minha amiga Claudine de Castro, socialite das mais elegantes, publicou um livro de etiqueta. Uma graça o livro, bem-humorado, prático. Fui ao lançamento. Todos ali éramos veteranos praticantes daquilo que se chamava “boas maneiras”. Um bando de micos-leões-dourados, pensei. Ameaçados de extinção. Uma amiga comum comentou que daria o livro ao sobrinho, ela não precisava. “Os jovens”, acrescentou, “andam muito mal-educados”.
Os
jovens? Não era jovem o
senhor bem vestidérrimo que
quase me segurou no meio
da rua, interrompendo minha
marcha célere, para pedir orientação a respeito de um endereço. Orientação
fornecida, o cavalheiro, que certamente não fazia jus à definição, partiu sem
dizer água vai. E fiquei eu, no resto da manhã, irritada pela brutalidade.
No
Japão, a primeira expressão que me ensinaram quando cheguei foi sumi-masen.
Equivale ao nosso por favor. Para ajudar-me a gravar essa chave fundamental em
qualquer situação, sugeriram que lembrasse da nossa tão frequente corrupção e
dissesse em português: sumiu mais cem. Cravou-se, indelével, na minha memória.
E dela lancei mão infinitas vezes, com aquela segurança com que se saca um ás
da manga. Nunca conheci povo tão bem-educado. Todos te atendem sorridentes.
Todos te ajudam. Ninguém te esbarra. Ninguém te esbarra mesmo em meio à
multidão. E multidão é coisa frequente no Japão. Sem grandes antropologismos,
podemos deduzir que a viver em tantos em país tão pequeno ou se entredevoravam
ou se educavam. Preferiram educar-se.
Entre
nós, os livros de etiqueta como o de Claudine vendem feito pão. Ânsia de
educar-se para sobreviver? Não, necessidade de aprender as regras para
ascender. Os recém-chegados às mesas de muitos talheres – e há sempre levas
novas que chegam e mesas novas são postas – querem saber que garfo pegar. Pena
que o garfo certo não seja fundamental, ou sequer importante, para a boa
educação. Boa educação sendo, por exemplo, aquela que as pessoas da roça, de
tão poucos talheres e tão pouca comida no prato, praticam com doçura e
naturalidade. Cumprimentar o desconhecido com quem se cruza na trilha, coar
café ou oferecer água ao visitante que chega. Dar atenção.
Dar
atenção é a essência da boa educação. Só isso. Em vez do humilde “por favor”,
deveríamos dizer: peço a sua atenção. Pois não é favor algum atender o
semelhante que precisa de nós. E nenhum contato pode ser gentil sem atenção. No
entanto, em todas as línguas, quando se quer ser educado é por favor que se
pede, ou desculpas, pois está estabelecido que necessitar do outro, tirar o
outro do seu rumo por instantes é algo quase inconveniente, pelo qual devemos
nos penitenciar. Convenhamos, há um erro de base. Ou, se quisermos ir um pouco
mais além no sentido desses mínimos encontros, há uma lamentável regra de desamor.
(In: Manuel da Costa Pinto, org.
Crônica brasileira contemporânea. São Paulo: Moderna, 2005. p. 176-9.)
Vocabulário
célere: ligeiro, veloz.
exultar: exprimir grande alegria.
indelével: o que não se pode apagar ou eliminar.
Entendendo o texto
01.A crônica é um
gênero que, como afirma o crítico Manuel da Costa Pinto, explora “fatos do dia
a dia [...], acontecimentos que propiciam momentos de nostalgia, enternecimento
ou indignação”.
a.
Qual é o fato do dia
a dia que serve de tema para a crônica lida?
É a falta
de educação das pessoas.
b.
Como a narradora se
sente diante do comportamento das pessoas?
Ela se sente
indignada.
02. As reflexões da narradora sobre a atitude das
pessoas no dia a dia permitem fazer inferências sobre o que ela considera
ideal, em termos de relacionamento social. Deveria ter cumprimentado a pessoa
que atendeu, com uma saudação como bom dia ou boa tarde, ou dizer quem era e o
que desejava
a.
Como deveria ter
agido a pessoa que ligou para a casa da narradora?
Deveria
ter cumprimentado a pessoa que atendeu, com uma saudação como bom dia ou boa
tarde, ou dizer quem era e o que desejava e ter agradecido pela resposta
atenciosa.
b.
Como a narradora
esperava que os interlocutores reagissem diante das palavras gentis proferidas
por ela no supermercado, no guichê e no açougue?
Esperava
que as pessoas respondessem com expressões como de nada, bom dia, etc. e,
principalmente, tivessem dado atenção a ela.
03. Uma amiga da narradora afirma: “Os jovens andam
muito mal-educados”.
a.
Que exemplo a
narradora usa para refutar a opinião da amiga?
O exemplo de um
senhor bem-vestido que pediu a ela uma informação na rua e não agradeceu.
b.
Releia este trecho: “Orientação
fornecida, o cavalheiro, que certamente não fazia jus à definição, partiu sem
dizer água vai.”
A afirmação de que o homem partiu “sem dizer
água vai” quer dizer, no contexto, que ele saiu de supetão, sem avisar ou
agradecer, o que não corresponde ao comportamento de um verdadeiro cavalheiro.
04. Qual é a atitude inicial da narradora ao
atender o telefone?
A) Desliga imediatamente.
B) Informa que Victor não está com
educação.
C) Pede desculpas ao interlocutor.
05. Por que a narradora se sente exultante após o
segundo telefonema?
A) Victor retornou a ligação.
B) A pessoa agradeceu educadamente.
C) Ela repreendeu a falta de educação.
06. Como a narradora define a si mesma ao tratar
pessoas sem educação?
A) Otária.
B) Educada.
C) Resistente.
07. O que a amiga Claudine de Castro publicou
sobre etiqueta?
A) Um livro de receitas.
B) Um livro de poesias.
C) Um livro de etiqueta.
08. Por que a narradora chama as pessoas no
lançamento do livro de "micos-leões-dourados"?
A) Elegância.
B) Extinção.
C) Boas maneiras.
09. Segundo a amiga da
narradora, quem anda muito mal-educado?
A) Os jovens.
B) Os adultos.
C) Todos.
10. Qual é a expressão japonesa equivalente ao
"por favor"?
A) Konnichiwa.
B) Sayonara.
C) Sumi-masen.
11. O que a narradora compara a
"sumi-masen" em português para ajudá-la a lembrar?
A) "Sumiu mais cem."
B) "Comi bastante."
C) "Sai mais cedo."
12. Como a narradora descreve o povo japonês em
relação à educação?
A) Educado.
B) Agressivo.
C) Desinteressado.
13. Qual é a essência da boa educação, segundo a
narradora?
A) Cumprimentar formalmente.
B) Usar talheres corretamente.
C) Dar atenção ao semelhante.
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