CONTO: O BEIJO DA PALAVRINHA
Mia Couto
Era
uma vez uma menina que nunca vira o mar. Chamava-se Maria Poeirinha. Ela e a
sua família eram pobres, viviam numa aldeia tão interior que acreditavam que o
rio que ali passava não tinha nem fim nem foz.
Poeirinha
só ganhara um irmão, o Zeca Zonzo, que era desprovido de juízo. Cabeça sempre
no ar, as ideias lhe voavam como balões em final de festa. Na miséria em que
viviam, nada destoava. Até Poeirinha tinha sonhos pequenos, mais de areia do
que castelos.
Às
vezes sonhava que ela se convertia em rio e seguia com passo lento, como a
princesa de um distante livro, arrastando um manto feito de remoinhos, remendos
e retalhos. Mas depressa ela saía do sonho, pois seus pés descalços escaldavam
na areia quente. E o rio secava, engolido pelo chão.
Um
certo dia, chegou à aldeia o Tio Jaime Litorânio, que achou grave que os seus
familiares nunca tivessem conhecido os azuis do mar.
Que
a ele o mar lhe havia aberto a porta para o infinito. Podia continuar pobre mas
havia, do outro lado do horizonte, uma luz que fazia a espera valer a pena.
Deste lado do mundo, faltava essa luz que nasce não do Sol, mas das águas
profundas.
A
fome, a solidão, a palermice do Zeca, tudo isso o Tio atribuía a uma única
carência: a falta de maresia. Há coisas que se podem fazer pela metade, mas
enfrentar o mar pede a nossa alma toda inteira. Era o que dizia Jaime.
-
Quem nunca viu o mar não sabe o que é chorar!
Certa
vez, a menina adoeceu gravemente. Num instante, ela ficou vizinha da morte. O
Tio não teve dúvida: teriam que a levar à costa.
Para
que se curasse, disse ele. Para que ela renascesse tomando conta daquelas
praias de areia e onda. E descobrisse outras praias dentro dela.
-
Mas o mar cura assim tão de verdade?
-
Vocês não entendem? - respondia ele. - Não há tempo a perder. Metam a menina no
barco que a corrente a leva em salvadora viagem.
Contudo,
a menina estava tão fraca que a viagem se tornou impossível. Todos se
aproximavam da cabeceira e ali ficavam sem saber o que fazer, sem saber o que
dizer. A mãe pegou nas mãos da menina e entoou as velhas melodias de embalar.
Em vão. A menina apenas ganhava palidez e o seu respirar era o de um fatigado
passarinho. Já se preparavam as finais despedidas quando o irmão Zeca Zonzo
trouxe um papel e uma caneta.
-
Vou-lhe mostrar o mar, maninha.
Todos
pensaram que ele iria desenhar o oceano. Que iria azular o papel e no meio da
cor iria pintar uns peixes. E o Sol em cima, como vela em bolo de aniversário.
Mas não. Zonzo apenas rabiscou com letra gorda a palavra
MAR
Apenas
isso: a palavra inteira e por extenso.
O
menino ficou olhando para a folha parecendo que não entendia o que ele mesmo
escrevera. Antes mesmo que ele dissesse alguma coisa, a irmã
murmurou, em débil suspiro:
-Não
vale a pena, mano Zonzo. Eu já não distingo letra, a luz ficou cansada que já
não se consegue levantar.
-Não
importa, Poeirinha. Eu lhe conduzo o dedo por cima do meu.
Os
pais chamaram o moço à razão, ele que poupasse a irmã daquela tontice e que a
deixasse apenas respirar. Mas Zeca Zonzo fingiu não escutar. Ele tomou na sua
mão os dedos magritos de Maria Poeirinha e os guiou por cima dos traços que
desenhara.
-Vês
esta letra, Poeirinha?
-Estou
tocando sombras, só sombras, só.
Zeca
Zonzo levantou os dedos da irmã e soprou neles como se corrigisse algum defeito
e os ensinasse a decifrar a lisa brancura do papel.
-Experimente
outra vez, mana. Com toda a atenção. Agora, já está sentindo?
-Sim.
O meu dedo já está a espreitar.
-E
que letra é?
E
sorriram os dois, perante o espanto dos presentes. Como se
descobrissem algo que ninguém mais sabia. E não havia motivo para tanto
espanto. Pois a letra m é feita de quê?
É
feita de vagas, líquidas linhas que sobem e descem.
E
Poeirinha passou o dedo a contornar as concavidades da letrinha.
-É
isso, manito. Essa letra é feita por ondas. Eu já as vi no rio.
-E
essa outra letrinha, essa que vem a seguir?
Essa
a seguir é um a
É
uma ave, uma gaivota pousada nela própria, enrodilhada perante a brisa fria.
Em
volta todos se haviam calado. Os dois em coro decidiram não tocar mais na letra
para não espantar o pássaro que havia nela.
-E
a seguinte letrinha?
E
os dedos da menina magoaram-se no r duro, rugoso, com suas ásperas arestas.
O
Tio Jaime Litorâneo, lágrima espreitando nos olhos, disse:
-
Calem-se todos: já se escuta o marulhar!
Então
do leito de Maria Poeirinha se ergueu a gaivota branca, como se fosse um lençol
agitado pelo vento. Era Maria Poeira que se erguia? era um simples remoinho de
areia branca?
Ou
era ela seguindo no rio, debaixo do manto feito de remoinhos, remendos e
retalhos?
Ainda
hoje, tantos anos passados, Zeca Zonzo, apontando o rosto da sua irmãzinha na
fotografia, clama e reclama.
-Eis
minha mana poeirinha que foi beijada pelo mar. E se afogou numa palavrinha.
Entendendo
o texto
01. Qual o
nome do protagonista do conto?
a)
Maria Litorânio
b) Maria Poeirinha
c)
Zeca Zonzo
d)
Tio Jaime.
02. O que
acreditou a família de Maria Poeirinha sobre o rio que passava pela aldeia?
a) Que era
um rio mágico
b)
Que não tinha fim nem foz
c) Que era o
rio da vida
d) Que era um rio poluído
03. Quem acreditou
que a falta de maresia era causa da miséria da família de Maria Poeirinha?
a) A mãe do
protagonista
b) O
Tio Jaime Litorânio
c) Zeca Zonzo
d) O pai da
protagonista
04. Como Zeca
Zonzo tentou mostrar o mar para Maria Poeirinha quando ela estava doente?
a) Desenhando
um oceano no papel
b) Levando-a
até a costa
c) Cantando
canções sobre o mar
d)
Escrevendo a palavra "MAR" no papel
05. O que Zeca
Zonzo fez para ajudar a irmã a sentir o mar enquanto ela estava doente?
a) Cantava
canções de embalar
b)
Soprava nos dedos dela
c) Desenhava
peixes
d) Contava
histórias sobre o mar
06. Como Maria
Poeirinha falou a letra "m" que Zeca Zonzo escreveu no papel?
a)
Feita de vagas, linhas líquidas que sobem e descem
b) Uma ave,
uma gaivota pousada nela própria
c) Rugosa,
com arestas ásperas
d) Uma letra
que vem a seguir
07. Qual a letra
que Maria Poeirinha comparou a uma ave, uma gaivota pousada nela própria?
a) m
b)
a
c) r
d) d
08. O que o Tio
Jaime Litorânio afirmou ao ouvir a letra "r" sendo tocada por Maria
Poeirinha?
a)
"Calem-se todos: já se escuta o marulhar!"
b)
"Essa letra é feita por ondas. Eu já as vi no rio."
c)
"Você não entende? Não há tempo a perder."
d) "O
mar cura assim tão de verdade?"
09. Como Maria
Poeirinha se elevou o leito no final do conto?
a) Como uma
gaivota branca
b)
Como um remoinho de areia branca
c) Como uma
onda gigante
d) Como um
lençol agitado pelo vento
10. O que Zeca
Zonzo afirma sobre a irmã no final do conto?
a) Que ela
foi beijada pelo sol
b) Que ela se
afogou no rio
c)
Que ela foi beijada pelo mar e se afogou numa palavrinha
d) Que ela
nunca viu o mar
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