Romance: O barão nas árvores
Ítalo Calvino
[…]
Porém, João do Mato tinha suas
preferências, não era possível dar-lhe um livro qualquer, caso contrário
voltava no dia seguinte para Cosme o trocar. Meu irmão estava na idade em que
se começa a tomar gosto pelas leituras mais densas, mas era obrigado a ir
devagar, desde quando João do Mato devolveu-lhe as Aventuras de
Telêmaco advertindo-o de que, se lhe desse outra vez um livro tão chato,
ele serraria a árvore em que estivesse.
A esta altura, Cosme gostaria de
separar os livros que desejava ler por conta própria, com toda calma, daqueles
que conseguia só para emprestar ao bandido. Que nada: pelo menos uma espiada
devia dar também nestes, pois João do Mato tornava-se cada vez mais exigente e
desconfiado, e antes de pegar um livro queria que ele lhe contasse um pouco da
trama, e ai dele se errasse. Meu irmão tentou passar-lhe romances de amor: o
bandido aparecia furioso perguntando se o confundira com alguma mulherzinha. Não
dava para adivinhar qual era a preferência dele.
Em resumo, com João do Mato sempre nos
calcanhares, as leituras de Cosme, de distração nas horas vagas, passaram a
ocupação principal, objetivo do dia inteiro. E, à força de manejar volumes, de
julgá-los e compará-los, de ter de conhecer sempre outros e novos, entre
leituras para João do Mato e a crescente necessidade de leituras suas, Cosme
foi arrastado a tamanha paixão pelas letras e por todo saber humano que não lhe
bastavam as horas do amanhecer ao pôr do sol para aquilo que gostaria de ler, e
continuava também no escuro à luz de lanterna.
Finalmente, descobriu os romances de
Richardson. Agradaram a João do Mato. Terminado um, logo queria outro. Orbeque conseguiu-lhe
uma pilha de volumes. O bandido tinha o que ler por um mês. Cosme, reencontrada
a paz, lançou-se sobre as vidas de Plutarco.
João do Mato, entretanto, estendido em
seu catre, os hirsutos cabelos vermelhos cheios de folhas secas na testa
enrugada, os olhos verdes que se avermelhavam com o esforço, lia sem parar,
mexendo a mandíbula num soletrar furioso, mantendo no alto um dedo úmido de
saliva pronto para virar a página. Ao descobrir Richardson, foi tomado por uma
predisposição que já vinha incubando: um desejo de jornadas rotineiras
domésticas, de parentes, de sentimentos familiares, de virtude, de aversão
pelos maus e pelos viciados. Tudo aquilo que o circundava já não lhe
interessava, enchia-o de desgosto. Não saía mais do esconderijo a não ser para
ir atrás de Cosme e trocar de livro, especialmente se fosse um romance com mais
de um volume e tivesse ficado no meio da história. Vivia assim, isolado, sem
perceber a tempestade de ressentimentos que gerava contra ele inclusive entre
moradores do bosque, antigamente cúmplices fiéis mas que agora já se tinham
cansados de aturar um bandido inativo, que atraía todos os policiais.
Tempos atrás, tinham estreitado
fileiras com ele todos aqueles que, nas redondezas, possuíam contas aa ajustar
com a justiça, às vezes pouca coisa, pequenos roubos de rotina, como os
daqueles vagabundos que consertavam panelas, ou delitos para valer, como os dos
seus companheiros bandidos. Para cada furto ou rapina aquela gente se valia da
autoridade e experiência dele, utilizando como escudo seu nome, que corria de
boca em boca e deixava o deles na sombra. E mesmo quem não participava dos
golpes desfrutava de algum modo dos resultados, pois o bosque enchia-se de
objetos roubados e de contrabando, que era preciso desfazer ou revender, e
todos aqueles que zangavam por ali encontravam um jeito de traficar com tudo
aquilo. E ainda: quem roubava por conta própria, sem avisar João do Mato,
servia-se desse nome terrível para assustar as vítimas e obter o máximo. As
pessoas viviam aterrorizadas, viam em cada malfeitor um João do Mato ou alguém
do seu bando e apressavam-se a desatar os cordões da bolsa.
Esses bons tempos duraram muito; João
do Mato descobrira que podia viver de rendas, e pouco a pouco se acomodara.
Achava que tudo continuava como antes, mas, ao contrário, os ânimos haviam
mudado e seu nome já não inspirava nenhuma consideração.
Agora, a quem era útil João do Mato?
Ficava escondido com os olhos vermelhos de tanto ler romances, não aplicava
mais golpes, no bosque ninguém mais podia cuidar dos próprios negócios, vinham
policiais todos os dias para procurá-lo e qualquer desgraçado que tivesse um ar
minimamente suspeito era levado. Se acrescentar a tentação que significava a
recompensa pela cabeça dele, ficava claro que os dias de João do Mato estavam
contados.
Dois outros bandidos, dois jovens que
tinham sido protegidos por ele e não conseguiam resignar-se a perder aquele
grande chefe, quiseram dar-lhe a chance de reabilitar-se. Chamavam-se Hugão e
Bonitão e haviam integrado o bando dos ladrões de fruta. Agora, adolescentes,
tinham se tornado bandidos de respeito.
Assim, foram procurar João do Mato na
caverna. Estava lá, deitado na palha.
— Sim, quem é? — perguntou sem tirar os
olhos do papel.
— Queríamos propor uma coisa, João do
Mato.
— Hum… O quê? — E lia.
— Sabe onde é a casa de Constâncio, o
fiscal da alfândega?
— Sim… sim… Hein? O quê? Quem é o
fiscal da alfândega?
Bonitão e Hugão trocaram um olhar
contrariado. Se não lhe tirassem aquele maldito livro do alcance da vista, o
bandido não entenderia nem uma palavra.
— Fecha o livro um pouco, João do Mato.
Ouve o que temos a dizer.
João do Mato agarrou o livro com ambas
as mãos, levantou-se de joelhos, deu um jeito para apertá-lo contra o peito,
mantendo-o aberto no ponto em que chegara, mas a vontade de continuar a ler era
tanta que, sempre tendo-o bem próximo, ergueu-se até poder enfiar o nariz
dentro dele.
Bonitão teve uma ideia. Por perto havia
uma teia de aranha com sua dona. Bonitão levantou com as mãos ágeis a teia com
a aranha dentro e jogou-a em cima de João do Mato, entre livro e nariz. O
desgraçado do João do Mato andava tão mole a ponto de ter medo de aranha.
Sentiu no nariz aquela mistura de patas de aranha e filamentos pegajosos, e,
antes de entender o que era, soltou um grito de susto, deixou cair o livro e
começou a abanar as mãos na frente do rosto, os olhos arregalados e a boca
cheia de saliva.
Hugão deu um pulo e conseguiu pegar o
livro antes que João do Mato pusesse um pé em cima dele.
— Me dá esse livro de volta! — disse
João do Mato, tentando livrar-se da aranha e da teia com uma das mãos, e com a
outra arrancar o livro das mãos de Hugão.
— Não, ouve antes! — disse Hugão
escondendo o livro nas costas.
— Estava lendo Clarisse. Me dá de
volta! Estava no ponto culminante…
— Escute. Nós vamos levar hoje de noite
um carregamento de lenha na casa do fiscal. No saco, em vez de lenha, vai você.
De madrugada, sai do saco…
— Eu quero terminar Clarisse! —
Conseguira livrar as mãos das últimas gosmas da teia e tentava lutar contra os
dois jovens.
— Ouça… Quando for de madrugada, você
sai do saco, armado com duas pistolas, arranca do fiscal tudo o que foi
arrecadado na semana, que ele guarda no cofre que está na cabeceira da cama…
— Deixem ao menos eu terminar o
capítulo… Sejam gentis…
Os dois jovens pensavam no tempo em
que, ao primeiro que tentasse contrariá-lo, João do Mato apontava duas pistolas
na barriga. Amarga nostalgia.
— Você pega os sacos de dinheiro, está
bem? — insistiram, tristemente —, entrega tudo para nós, que devolveremos o
livro e você poderá ler quanto quiser. Está bem assim? Topa?
— Não. Não está bem. Não vou!
— Então não vai… É assim, é… Então
olhe! — E Hugão pegou uma página do final do livro (“Não!”, berrou João do
Mato), arrancou-a (“Não! Para!”), fez uma bolinha, jogou-a no fogo.
— Aaah! Cachorro! Não pode fazer isso!
Vou ficar sem saber como acaba! — E corria atrás de Hugão para arrancar-lhe o
livro.
— Agora você vai à casa do fiscal?
— Não, não vou!
Hugão arrancou mais duas páginas.
— Pare com isso! Ainda não cheguei aí! Você
não pode queimá-las!
Hugão já tinha mandado as duas para o
fogo.
— Porco! Clarisse! Não!
— Então, vai?
— Eu…
Hugão arrancou mais três páginas e
atirou-as no fogo! João do Mato sentou-se com o rosto entre as mãos.
— Vou — rendeu-se. — Mas vocês me
prometem que vão esperar com o livro fora da casa do fiscal.
O bandido foi fechado num saco, com um
feixe de lenha na cabeça. Atrás vinha Hugão com o livro. Às vezes, quando João
do Mato com um arrastar de pés ou com um grunhido dentro do saco mostrava estar
a ponto de arrepender-se, Hugão o fazia ouvir o rumor de uma página arrancada e
João do Mato logo ficava bonzinho.
Deste jeito o levaram, vestidos de
lenhadores, até a casa do fiscal e o deixaram lá. Foram esconder-se por perto,
atrás de uma oliveira, esperando a hora em que, executado o trabalho, devia
alcançá-los.
Mas João do Mato estava com muita
pressa, saiu antes de acabar de escurecer, ainda havia muita gente pela casa.
— Mãos ao alto! — Porém, já não era
aquele de antes, era como se olhasse de fora, sentia-se meio ridículo.
— Mãos ao alto, eu disse… Todos nesta
sala, encostados na parede… — Mas que nada: nem ele acreditava mais naquilo,
dizia por dizer. — Estão todos aqui? — Nem notara que uma menina tinha fugido.
De qualquer modo, era coisa para não se
perder um minuto. Ao contrário, a cena rendeu, o fiscal bancava o tonto, não
encontrava a chave, João do Mato percebia que já não o levavam a sério, e no
fundo estava contente que fosse assim.
Finalmente, saiu com os braços cheios
de bolsas com moedas. Correu quase às cegas para a oliveira combinada.
— Aqui está tudo o que havia!
Devolvam Clarisse!
Quatro, sete, dez braços se lançaram sobre
ele, imobilizaram-no das costas até as canelas. Tinha sido preso por um grupo
de guardas e amarrado como um presunto.
— Você há de ver Clarisse quadradinha!
— e o levaram para o cárcere.
A prisão era uma pequena torre à
beira-mar. Um bosque de pinheiros crescia ao lado. Do alto de uma das velhas
árvores, Cosme chegava quase à altura da cela de João do Mato e via o seu rosto
atrás das grades.
Ao bandido não interessava nada dos
interrogatórios e do processo; de um jeito ou de outro, terminaria na forca;
mas sua preocupação eram aqueles dias vazios ali na cadeia, sem poder ler, e
aquele romance deixado pelo meio. Cosme conseguiu outra cópia
de Clarisse e levou-a até o pinheiro.
— Aonde você tinha chegado?
— Ao ponto em que Clarisse foge da casa
de má fama!
Cosme folheou um pouco e logo:
— Ah, sim, aqui está. Portanto… — E
começou a ler em voz alta, virado para a janela de grades, à qual se agarravam
as mãos de João do Mato.
O processo foi demorado; o bandido
resistia ao cerco da corda; para fazê-lo confessar cada um de seus inúmeros
crimes eram necessários dias e dias. Todos os dias, antes e depois dos
interrogatórios ficava escutando Cosme, que continuava a leitura.
Terminada Clarisse, sentindo-o um tanto triste, Cosme achou que
Richardson, para quem está preso, talvez fosse meio deprimente; e preferiu
começar a ler para ele um romance de Fielding, cujo enredo movimentado lhe
compensaria um pouco da liberdade perdida. Eram os dias do processo, e João do
Mato só tinha cabeça para os casos de Jonathan Wild.
Antes que o romance fosse concluído,
chegou o dia da execução. Na carroça, acompanhado por um frade, João do Mato
fez sua última viagem como ser vivo. Os enforcamentos em Penúmbria eram feitos
num alto carvalho no meio da praça. Ao redor, o povo fazia um círculo.
Já com a corda no pescoço, João do Mato
ouviu um assovio entre os galhos. Ergueu o rosto. Descobriu Cosme com o livro
fechado.
— Conta como termina — pediu o condenado.
— Lamento dizer, João — respondeu Cosme
—, Jonas acaba pendurado pela garganta.
— Obrigado. O mesmo aconteça comigo!
Adeus! — E ele mesmo deu um pontapé na escada, enforcando-se.
Quando o corpo parou de se debater, a
multidão foi embora. Cosme permaneceu até a noite, apoiado no ramo do qual
pendia o enforcado. Todas as vezes que um corvo se aproximava para bicar os
olhos ou o nariz do cadáver, Cosme o expulsava agitando o gorro.
CALVINO, Ítalo. O
barão nas árvores. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 108-114.
Fonte: Livro – Viva
Português 2° – Ensino médio – Língua portuguesa – 1ª edição 1ª impressão – São
Paulo – 2011. Ed. Ática. p. 10-6.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Catre: cama dobrável de lona; cama de aspecto rude, tosco.
·
Hirsuto: eriçado, duro.
·
Incubar: preparar, elaborar.
·
Filamento:
fio muito fino.
·
Tentilhão: pássaro encontrado na Europa, na Ásia e na África.
·
Torrente: curso de água rápido e impetuoso, geralmente produzido por
chuvas abundante.
02 – Antes de levantarmos
hipóteses de interpretação para o fragmento do romance “O barão nas
árvores”, vamos recuperar algumas informações do texto.
a) Quais são as personagens principais? Caracterize-as brevemente.
Cosme, jovem que vive nas árvores, e João do Mato, um bandido.
b) Em que espaços ocorrem as principais ações do texto?
Na estrada, no esconderijo de João do Mato, na casa do fiscal, na
prisão, em árvores.
c) Quanto tempo você imagina que tenha durado o episódio narrado?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Imagina-se que o desenrolar dos
fatos não pode ter levado menos de um mês.
d) Quem conta a história? Copie o(s) trecho(s) do texto que comprova(m) sua resposta.
O irmão de Cosme. “Meu irmão estava na idade em que começa [...]” ou
“Meu irmão tentou passar-lhe romances de amor [...]”.
e) Quais são os principais problemas enfrentados pelas personagens centrais ao longo do episódio lido?
Para Cosme, há o problema de o bandido lhe exigir cada vez mais
livros – e livros de seu agrado. Para João do Mato, o principal problema é que
dois outros bandidos, seus antigos protegidos, forçam-no a voltar ao crime; no
assalto, o bandido é capturado e condenado à forca.
03 – O encontro entre Cosme
e João do Mato se desenvolve em torno de um elemento comum: ambos estão
envolvidos na paixão pela leitura. A partir desse momento, a quantidade de
livros que leem é imensa, mas a experiência leitora deles é bastante diferente.
Aponte algumas diferenças.
João do Mato devora livros que prendessem sua atenção,
narrativas envolventes, sem complexidade. Já Cosme lia não só os livros que
pudessem agradar a João do Mato, mas também os que satisfaziam sua própria
necessidade leitora, que começava a se tornar mais densa. Para João do Mato, a
leitura era um passatempo, para Cosme tornou-se quase um ofício.
04 – A leitura se torna a
ocupação principal de Cosme. Mas, também para o bandido ler passa a ser muito
importante. Em que momentos da narrativa essa importância fica evidente para o
leitor?
No momento em que
João do Mato deixa de atuar como bandido para ficar em seu esconderijo lendo e
passa a sair dele apenas para buscar mais sugestões de livros com Cosme. Também
no momento em que Hugão e Bonitão tentam conversar com João do Mato sobre a
realização de um assalto e ele só os escuta quando os bandidos lhe arrancam o
livro das mãos.
05 – Releia os seguintes
trechos e complete a frase no caderno:
“Ao
bandido não interessava nada dos interrogatórios e do processo; de um jeito ou
de outro, terminaria na forca; mas sua preocupação eram aqueles dias vazios ali
na cadeia, sem poder ler, e aquele romance deixado pelo meio. [...]”.
“— Conta como termina — pediu o
condenado.
— Lamento dizer, João — respondeu
Cosme —, Jonas acaba pendurado pela garganta.
— Obrigado. O mesmo aconteça comigo!
Adeus! — E ele mesmo deu um pontapé na escada, enforcando-se.”.
Pela leitura dos dois trechos, é
possível perceber o nível de envolvimento que João do Mato chegou a ter com a
leitura, a qual ...
a)
Passou a ocupar todos os espaços de
sua existência, a ponto de ele confundir-se com uma das personagens.
b)
Enfraqueceu sua relação com Cosme, porém,
tornou-o mais humano, devolvendo-lhe a dignidade perdida.
06 – Nessa narrativa, o
espaço onde acontecem os fatos é sempre importante para a construção da trama,
mas vamos nos concentrar nos cenários onde as personagens liam: as árvores de
Cosme e a caverna de João do Mato. Tente relacionar a caverna à experiência
leitora de João do Mato e as árvores à experiência leitora de Cosme.
A caverna é um
lugar fechado, lugar onde a pessoa se isola do mundo, voltando-se apenas para
si. Nesse espaço de isolamento, João do Mato tem a possibilidade de substituir
sua existência, suas próprias aventuras por aventuras vividas pelas
personagens.
Estar sobre as árvores é uma forma de
distanciamento, mas não de alienação, uma vez que a pessoa por cima consegue
enxergar tudo o que se passa sem estar necessariamente envolvida nos
acontecimentos. E é dessa forma que Cosme vive sua experiência leitora: ele faz
escolhas, analisa, compara, faz com que a leitura possa atender a suas
necessidades e às necessidades de quem precisar, mas sem se deixar dominar por
ela.
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