Artigo de opinião: Qual é a minha?
Carlos Heitor Cony
Governistas, situacionistas e
fernandistas de todos os tamanhos, feitios e intenções reclamam da mídia, que
não respeita a sacralidade do poder, insistindo em denunciar escândalos,
esqueleto nos armários e contas ilegais no exterior.
A caterva a favor coloca a seguinte
opção: ou o sujeito engrossa ou é carlista ou canalha. Elementar, caro leitor.
Criticam sobretudo a parte da mídia
escrita que denuncia a nudez do rei e de seus áulicos, considerando-a viciada,
subdesenvolvida, pedestre.
Bolas, a imprensa inglesa, com tradição
bem maior do que a nossa, cometendo frequentes enganos e grosserias, nunca
poupou a família real, considerando-a um bem público sustentado pela nação e,
como tal, sujeita à investigação, a denúncias e, eventualmente, a uma ou outra
injustiça.
A imprensa americana não abafou o
escândalo de Watergate, que provocou o impedimento de Nixon, nem a
pornochanchada do caso Monica Lewinsky, que colocou o presidente Clinton numa
situação pública e doméstica bastante incômoda.
Suponhamos – veja bem, estou apenas
supondo – que algum figurão do poder tenha um caso extraconjugal, alguma coisa
como um filho fora do tálamo conjugal. Tanto na Inglaterra como nos Estados
Unidos a mídia não se consideraria impedida de noticiar e comentar o fato.
Ora, dirão, são mídias de países
bárbaros, selvagens, sem tradição democrática e civilizada. Tudo bem. Honra,
louvor e glória à nossa mídia – com óbvia exceção dos abutres, das hienas, dos
carlistas e canalhas que a maculam, negando ao poder o baba-ovo tradicional.
Leitor de Goiânia pergunta-me por que
reclamo tanto do governo. Qual é a minha? Se eu soubesse qual era a minha, não
estaria aqui reclamando por aqueles que não têm voz para reclamar.
CONY, Carlos Heitor.
In: Folha de São Paulo. 15 abr. 2001, p. A2. Opinião.
Fonte: Livro – Língua
Portuguesa – Heloísa Harue Takazaki – ensino médio – Coleção Vitória-Régia –
Volume único – 1ª edição Curitiba - IBEP. 2004, p. 104-5.
Entendendo o artigo de
opinião:
01 – Antes de começar a
análise mais minuciosa do texto, é preciso garantir que você tenha compreendido
qual é a tese e que argumentos o articulista utiliza para defende-la. Responda
a essas questões com o professor e colegas.
A tese defendida
é a de que denunciar, reclamar, investigar faz parte das funções da imprensa.
Para defender essa ideia, o articulista apresenta as relações, em países
considerados desenvolvidos, entre o governo, o público e a imprensa. Nessa
apresentação, o articulista demonstra que a imprensa tem total liberdade par
divulgar aquilo que considera de interesse público, incluindo aí críticas ao
governo e denúncias que envolvem governantes.
02 – No terceiro parágrafo,
há uma referência a um conto infantil: A roupa maravilhosa do rei, de Andersen.
Você conhece esse conto? Qual é a relevância dessa referência para o assunto do
texto? Converse com o professor e colegas sobre isso.
O conto traz a
história de um rei, enganado por alguns tecelões que dizem estar confeccionando
uma roupa maravilhosa para o monarca, mas que só pode ser visto por pessoas
inteligentes. A roupa não existe, mas, com medo de não serem considerados
inteligentes, ninguém, nem mesmo o rei, admite não estar vendo a roupa. Assim,
pensando estar vestido, ele desfila par seu povo. Apenas uma criança se
manifesta, gritando que o rei está nu. O autor usa o conto para dizer que é
preciso denunciar a nudez do rei, ou seja, denunciar os erros dos governantes.
03 – Que outros
conhecimentos, de cunho histórico, o articulista pressupõe que seu interlocutor
tenha?
Nos Estados
Unidos, o caso Watergate, denúncia da imprensa envolvendo o ex-presidente
Nixon; o caso extraconjugal do ex-presidente Bill Clinton, amplamente divulgado
pela mídia. Na Inglaterra, as fofocas rotineiras, envolvendo a família real,
que são divulgadas em jornais sensacionalistas.
04 – Observe que uma das
estratégias usadas pelo articulista é a mescla de diferentes graus de
formalismo em seu texto.
a) Que marcas linguísticas são próprias da linguagem formal? E quais são próprias de um nível mais informal?
O vocabulário apurado com escolhas como caterva, áulicos, tálamo,
maculam, são próprias da linguagem formal. Gírias (baba-ovo), palavras
inventadas (carlistas, fernandistas) e expressões próprias da conversação
(bolas, ora) constituem marcas de um nível mais informal de linguagem.
b) Que efeito de sentido se produz com essa mescla?
O articulista passa ao leitor uma visão de si mesmo a partir do
vocabulário apurado que utiliza: é uma pessoa que tem conhecimento, por isso
sua opinião é importante. O uso da linguagem informal é um recurso persuasivo
para estabelecer proximidade e intimidade com o público leitor. Em outras
palavras, a linguagem formal legitima a opinião e a informal seduz o leitor a
aceitar essa opinião.
05 – Observe que o autor
escolhe palavras a dedo para se referir ao poder público.
a) Que palavras são essas? Liste-as.
“Escândalos”, “sacralidade do poder”, “esqueletos nos armários”,
“contas ilegais”, “caterva”.
b) Essas palavras possuem conotação positiva ou negativa?
Negativa.
06 – O autor também usa
palavras de conotação negativa para se referir à imprensa.
a) Faça uma lista dessas palavras.
Essas palavras não representam o discurso do articulista e, sim,
daqueles que acusam a imprensa.
b) Se a finalidade do texto é defender a imprensa, por que o uso de palavras negativas?
Ironia.
c) Que efeito se produz ao repetir o discurso de oponentes?
O autor se utiliza do sarcasmo para desmerecer, desconsiderar,
refutar, excluir a legitimidade do discurso alheio.
07 – Releia o penúltimo
parágrafo.
“Ora,
dirão, são mídias de países bárbaros, selvagens, sem tradição democrática e
civilizada. Tudo bem. [...]”. Observe que esse trecho, apesar de
assemelhar-se a uma previsão de argumento contrário, constitui-se também em uma
ironia. Por quê?
Porque as ideias
de senso comum sobre a política, a cultura e a sociedade desses países não
condiz com o que foi afirmado. Além disso, uma previsão de contra-argumento
também pressupõe uma refutação, o que não ocorre, já que o articulista
limita-se à expressão “tudo bem”.
08 – Que argumento pode ser
deduzido na conclusão do artigo? Qual é o apelo emocional aí presente?
Os jornalistas
exercem uma função social. Para persuadir o leitor, o articulista se
autoproclama porta-voz do povo, defensor daqueles que “não têm voz para
reclamar”. Tal afirmação constitui um apelo emocional muito forte, mas sem
consistência argumentativa: parte-se do pressuposto que a imprensa é confiável
e que os fatos possuem uma única versão.
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