Entrevista: Crise política e fragilidade das instituições agravam a violência. Entrevista especial com Sérgio Adorno
Por: Ricardo Machado | Edição: Vitor Necchi | 10 Março 2018Não há respostas simples para explicar a gênese da violência no Brasil, entende o cientista social Sérgio Adorno. “As raízes devem ser buscadas na colonização e em seus modos cruéis e rudes de dominação. No entanto, convém lembrar que a condenação da violência, em suas múltiplas formas, é um fenômeno moderno”, afirma.
[...]
Ainda não há consenso entre
pesquisadores acerca do que sejam sociedades seguras. “Muitos de nós sustentam
que, naquelas sociedades onde são menores as desigualdades sociais e
há maior solidez institucional e reconhecimento das autoridades encarregadas de
aplicar lei e ordem, as taxas de crimes, especialmente os violentos, são
menores e não constituem uma preocupação exacerbada na agenda pública”,
explica Adorno em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Confira
a entrevista.
IHU
On-Line – Quais são as raízes da violência no Brasil?
Sérgio
Adorno – Não há respostas simples. As raízes devem ser buscadas na
colonização e em seus modos cruéis e rudes de dominação. No entanto, convém
lembrar que a condenação da violência, em suas múltiplas formas, é um
fenômeno moderno. No passado, seu emprego não era objeto de censura. Na era
colonial, a propriedade da terra, fonte de poder e mando, se estendia a tudo o
que gravitava em torno do patrimônio e de sua organização social –
o patrimonialismo, inclusive o corpo das mulheres, dos escravos e das
crianças. Tudo era concebido como uma espécie de extensão do poder senhorial.
No mesmo sentido,
empregar violência desmedida para extinguir inimigos, opositores
políticos ou movimentos de protesto coletivo era recurso de poder legítimo.
Ainda que saibamos que o presente não é mera repetição do passado, traços dessa
cultura que associa violência – como se legítima fosse – ao poder social e
político se atualizaram na cultura política brasileira, ao longo da
história, concorrendo com a cultura política democrática que justamente apela
para a tolerância, para o respeito às diferenças.
IHU
On-Line – Como compreender o signo da violência na sociedade contemporânea?
Que dimensões – sutis e grotescas – estão em jogo?
Sérgio
Adorno – [...] No curso histórico, o Estado moderno é
justamente a comunidade política que detém o monopólio legítimo do poder
coercitivo, o que significa deter o monopólio das forças armadas e policiais, o
monopólio da aplicação das leis – em especial as penais – e o monopólio fiscal.
Pois bem, mais recentemente historiadores e sociólogos estão identificando, nas
sociedades contemporâneas, um processo descivilizatório, marcado pela
ruptura das regras de cortesia nas relações interpessoais – de que os
xingamentos públicos de uns em relação aos outros e as agressões às identidades
coletivas e pessoais são alguns dos sintomas mais notórios – e pelo
enfraquecimento do Estado-nação por força do processo de globalização.
[...]
IHU
On-Line – Por que a violência é algo que divide as pessoas? Como essa
dinâmica reforça os processos de desigualdade?
Sérgio
Adorno – Ainda não há um consenso, entre pesquisadores e
especialistas, em que de fato consistem sociedades seguras. Muitos de nós
sustentam que, naquelas sociedades onde são menores as desigualdades
sociais e há maior solidez institucional e reconhecimento das autoridades
encarregadas de aplicar lei e ordem, as taxas de crimes, especialmente os
violentos, são menores e não constituem uma preocupação exacerbada na agenda
pública.
[...] Quando alguns grupos sociais se
sentem mais seguros do que outros porque são preferencialmente beneficiários da
proteção estatal, temos um cenário de divisão.
Exemplos são muitos. Por exemplo, veja
a distribuição das taxas de homicídios entre os bairros de um
município determinado. Nos bairros onde habitam preferencialmente cidadãos e
cidadãs procedentes dos estratos médios e altos das hierarquias sociais, as
taxas estão quase sempre abaixo da média local, regional ou nacional. O mesmo
não ocorre nos bairros onde se concentram aqueles procedentes dos estratos
socioeconômicos de baixa renda. Paradoxalmente, naqueles bairros de classes médias
e altas, o medo do crime é exacerbado, e frequentemente os pobres são acusados
de responsáveis pelos crimes e pela insegurança em geral. Nos bairros onde os
pobres predominam, é comum observarmos a naturalização das mortes, como se
fossem uma espécie de destino a ser cumprido.
[...]
IHU
On-Line – A crise política e a fragilidade das instituições políticas
agravam o problema da violência?
Sérgio
Adorno – Sim, seguramente. Principalmente quando desorganizam os
serviços públicos, geram incertezas entre profissionais competentes e
responsáveis e impedem alocação de recursos, modernização de equipamentos e de
infraestrutura em geral. O resultado é sempre o enfraquecimento do poder
institucional e o apelo, mais e mais, a medidas extralegais,
à violência abusiva e a precipitação de medidas como a intervenção
federal no Rio de Janeiro.
IHU
On-Line – Como a defesa intransigente da vida, como direito fundamental a
todos os seres, independentemente da condição socioeconômica, conforma um
paradigma capaz de reorganizar as dinâmicas da violência?
Sérgio
Adorno – Infelizmente, não se logrou ainda um consenso, mínimo que
seja, a respeito de valores que não podem ser transgredidos, não importa em
nome do quê. A vida, por exemplo. Temos visto, não apenas no campo da segurança
pública, uma certa atitude de desprezo pela vida dos mais pobres, daqueles
não alcançados pelas políticas públicas sociais distributivas. É como
se aceitássemos, de bom grado, que uns devem morrer para que os “mais
competentes” possam sobreviver. Questão indicativa de uma espécie de anestesia
moral que se manifesta em alguns grupos socialmente privilegiados e que não
revelam empatia e sequer compaixão com a vida e o destino social de milhares de
famílias com seus filhos que, lamentavelmente, repetirão a trajetória trágica
de seus pais.
É preciso mudar esse cenário,
transformar mentalidades, reconstruir princípios de vida associativa e
cooperativa que ultrapassam as clivagens socioeconômicas, as desigualdades de
poder. Trata-se de uma tarefa confiada às escolas e às universidades, aos
formadores de opinião, aos gestores de redes sociais, aos governantes e
políticos profissionais identificados com o bem comum, capazes de oferecer
às próximas gerações uma qualidade de vida e de democracia superior.
MACHADO, Ricardo.
Crise política e fragilidade das instituições agravam a violência. Entrevista
especial com Sérgio Adorno. Revista Humanitas Unisinos On-line, Rio Grande do
Sul, 10 mar. 2018. Disponível em: https://bit.ly/2ScFJXu.
Acesso em: 24 set. 2018.
Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 9º
ano – Ensino Fundamental – IBEP 5ª edição – São Paulo, 2018, p. 131-4.
Entendendo a entrevista:
01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:
·
Alocação: destinação
(referente à economia); uso para tratar de destinação de dinheiro.
·
Clivagem: Divisão ou
oposição existente entre grupos sociais ou étnicos (Sociologia).
·
Coercitivo: que reprime.
·
Descivilizatório: tornando(-se)
bárbaro, bruto, selvagem.
·
Estrato: cada uma das camadas sociais mais ou menos
segregadas entre si em decorrência de suas diferenças.
·
Extralegal: tudo que não é disciplinado por lei.
·
Gênese: origem.
·
Instituição política: estrutura
política, estabelecida por lei, que rege os poderes Executivo e Legislativo.
·
Monopólio: controle exclusivo
de toda ou de quase toda atividade.
·
Paradoxalmente: contraditoriamente.
02 – Releia o título da reportagem:
“Crise
política e fragilidade das instituições agravam a violência. Entrevista
especial com Sérgio Adorno.”
a) Como o título da reportagem foi produzido?
Foi produzido com uma paráfrase de uma fala do entrevistado.
b) O que o título antecipa em relação à entrevista?
Duas das causas que agravaram a violência.
03 – No primeiro parágrafo
da reportagem, é feita a apresentação e a contextualização do entrevistado.
Responda:
a) Quem é o entrevistado?
O professor Sérgio Adorno.
b) Por que ele foi convidado pela Revista Instituto Humanitas Unisinos On-line para ser entrevistado?
Porque é especialista em estudos sobre violência.
c) Qual a relevância da análise do entrevistado sobre a violência no Brasil? Que fatos originaram essa entrevista?
A relevância da entrevista é compreender como se origina a
violência, tendo em vista que há uma escalada em todo o país, com o agravante
no Rio de Janeiro, que culminou na intervenção militar.
04 – Durante a entrevista, o
pesquisador apresentou uma tese sobre a origem da violência no Brasil.
Responda:
a) Segundo o entrevistado, quais são as raízes da violência no Brasil? Explique.
As raízes vem desde a colonização e em seus modos cruéis e rudes de
dominação, incorporando valores à cultura até os dias de hoje, embora o mundo
não valide mais a violência para tomar o poder de terras.
b) O que o contexto histórico da criação da nação brasileira revela sobre a herança cultural da violência no Brasil?
Os colonizadores, quando chegaram ao Brasil, usaram métodos cruéis
de dominação. Na era colonial, a propriedade da terra era conseguida
extinguindo inimigos, opositores políticos ou movimentos de protesto coletivo.
Tudo isso era visto como um recurso de poder legítimo. Esses traços de
violência se arraigaram na cultura brasileira.
05 – Por que o autor e
outros pesquisadores defendem que estamos vivendo um processo descivilizatótio?
O que isso significa na prática?
O processo descivilizatório é marcado
pela ruptura das regras de cortesia nas relações interpessoais. Na prática,
isso se revela com as ofensas nas redes sociais, por exemplo, a intolerância no
trânsito ou a agressão física porque a pessoa pensa diferente ou é de outra
etnia ou orientação sexual.
06 – De acordo com o
entrevistador, a dinâmica da violência reforça desigualdades sociais. Responda:
a) Como são as sociedades mais seguras de acordo com muitos pesquisadores?
São aquelas em que há menos desigualdades sociais e há maior solidez
institucional e reconhecimento das autoridades encarregadas de aplicar a lei e
a ordem. Nesses países, as taxas de homicídio são menores ou quase
inexistentes.
b) Qual exemplo é dado para mostrar que a desigualdade social e os números de violência caminham lado a lado?
Nos bairros em que habitam pessoas de classes alta e média-alta, as
taxas de violência estão sempre abaixo da média local, regional ou nacional. Em
contrapartida, nos bairros em que se concentram as classes mais pobres, o
índice de violência é quase sempre mais alto que a média.
c) Por que há maior percepção da violência entre pessoas que vivem em bairros menos violentos que aquelas de lugares com as taxas mais altas?
Nos bairros de classes média e alta, o medo do crime é exacerbado e
frequentemente os pobres são acusados de serem responsáveis pelos crimes e pela
insegurança em geral. Nos bairros mais pobres, há uma naturalização das mortes,
e a percepção da violência é menor.
07 – A entrevista é um
gênero textual do campo jornalístico/midiático cuja composição é apresentação,
contextualização do entrevistado e do tema, pergunta e resposta. Responda:
a) Releia o primeiro parágrafo. É feita a apresentação do tema ou do entrevistado? O que essa escolha revela sobre o enfoque dado pela Revista IHU nessa entrevista?
Sim, é feita a apresentação do tema e do entrevistado. Essa escolha
revela o enfoque da Revista IHU em discutir temas, não o currículo das pessoas,
e apresentar a posição assumida sobre determinadas questões.
b) Na contextualização do entrevistado, qual enfoque é dado à sua biografia?
É dado o enfoque sobre o trabalho feito pelo entrevistado no Núcleo
de estudos da Violência (NEV).
c) Como o tema é apresentado? No texto, estabelece-se relação com o currículo do entrevistado?
O tema é apresentado com trechos da fala de Sérgio Adorno sobre
violência. Além disso, o texto estabelece relação com o currículo do
entrevistado, que é referência em estudos sobre violência.
d) Na parte da entrevista, o enfoque encontra-se mais na pergunta ou na resposta? Que papéis são alternados entre entrevistador e entrevistado? Explique.
O enfoque encontra-se mais na resposta. Isso porque o papel do
entrevistador é perguntar o que for pertinente para informar o leitor, e o do
entrevistado, fornecer resposta integral àquilo que foi perguntado.
08 – Releia a entrevista,
observando a distribuição dos tempos verbais no texto. Responda:
a) Em quais situações do texto os verbos são apresentados no presente do indicativo? Que efeito de sentido é produzido com esse uso?
O texto apresenta-se predominantemente no presente do indicativo.
Esse uso produz efeito de atualidade às informações e aos argumentos
apresentados.
b) Em quais situações do texto os verbos são apresentados no pretérito perfeito? Que efeito de sentido é produzido com esse uso?
Na parte da entrevista, em que o entrevistado aborda o contexto
histórico que ele trata sobre a gênese da violência. O efeito produzido foi
retomar ações passadas e relacioná-las com o presente, tendo em vista que, em
seguida, volta-se a usar o presente do indicativo.
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