Crônica: Assim caminha a humanidade
Rachel de Queiroz
Há
muito que penso nisso e muitas pessoas devem ter pensado a mesma coisa. Mas
ninguém fala, ninguém diz nada. Por que, não o sei. Trata-se do automóvel.
Essa maravilha mecânica, o veículo revolucionário que acabou com os carros de
tração animal e expulsou o trem urbano para os longos percursos.
E agora esse totem da nossa era, o
AUTOMÓVEL, também chega ao seu fim, transforma-se num veículo obsoleto. Não
serve mais. A finalidade a que se destinava, nas áreas urbanas: transporte
individual, rápido, seletivo, perdeu o sentido.
Você, hoje, para transpor alguns poucos mil metros, da sua casa para o
centro, leva o mesmo tempo que gastaria se fosse caminhando a pé. As ruas de
todas as cidades do mundo [...] vivem atravancadas por essas tartarugas ninjas,
andando a passo de – sim, de tartaruga mesmo, cada uma ocupando um espaço que
vai de 10 a 12 metros quadrados e transporta na sua grande maioria só uma ou
duas pessoas, no máximo três, se houver o motorista.
Arrogante. Nas suas janelas de cristal,
na pintura luzidia, nos metais polidos, o automóvel é, acima de tudo, um monstro de egoísmo. A área que ele
exige para si, na via pública, em vez de dois personagens lhe ocupando os
assentos, daria para, no mínimo, três bancos de três pessoas, folgadamente
instaladas. [...]
É, temos de livrar as ruas disso que
Macunaíma chamava "a máquina veículo automóvel". O carro puxado a
cavalos também não desapareceu, por obsoleto? Hoje nem a rainha da Inglaterra o emprega, prefere os seus
reluzentes Rolls Royces. Tal como não se podia mais suportar o atropelo e
sujeira dos cavalos, das lerdas carruagens do fim do século 19, assim também o
automóvel acabou.
Há
que substituí-lo por um transporte coletivo de qualidade, rápido, limpo,
confortável. Metrôs, ou mesmo grandes veículos de superfície, sei lá. A cabeça
dos técnicos já deve estar trabalhando, a dos urbanistas, a dos chamados
cientistas sociais.
[...]
Quem sabe vai-se recorrer ao transporte aéreo, grandes helicópteros que seriam como ônibus voadores, pousando em heliportos arranjados nos tetos dos grandes edifícios? Não sei… Porque logo apareceriam helicópteros particulares, cada executivo teria o seu, de luxo, importado. O que, aliás, já está acontecendo. Eu mesma já viajei num desses, a convite de um amigo.
Ou será que os engarrafamentos vão
continuar por mais anos e anos, como os
assaltos, os sequestros, os meninos de rua, as favelas e demais desgraças dos grandes ajuntamentos
urbanos? Então a solução seria acabar mesmo com os próprios grandes
ajuntamentos urbanos. Voltar todo mundo a se espalhar pelo campo, só procurando
os centros quando a natureza do seu trabalho o exigisse.
Até que o campo se deteriorasse também
– já que esse é o destino do homem sobre a terra: acabar com tudo de bom e
bonito que a natureza para ele criou.
QUEIROZ,
Rachel. Deixa que eu conto. São Paulo: Global,
2003.
Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 9º
ano – Ensino Fundamental – IBEP 4ª edição São Paulo 2015 p. 108-10.
Entendendo a crônica:
01 – O título do texto é “Assim caminha a humanidade”. A que se refere o
texto?
Provavelmente a alguma coisa que faz parte do dia a
dia dos seres humanos, mas em direção ao futuro.
02 – Lendo apenas os trechos destacados no texto e associando-os à
leitura do título, pense e responda:
a)
Provavelmente,
o texto é predominantemente descritivo, narrativo ou argumentativo? Como você
chegou a essa resposta?
Predominantemente argumentativo, pois se desenvolve
defendendo uma ideia.
b)
O tom do texto
em relação às atitudes humanas deve ser mais otimista ou pessimista? O que o
fez pensar assim?
Pessimista. Sugestão: Foi escrito nos trechos
destacados, por exemplo: “Mas ninguém fala, ninguém diz nada”.
03 – A cronista afirma que o automóvel não serve mais à finalidade a que
se destinava. Por quê? Qual era a finalidade original do automóvel?
Porque ele devia ser um transporte prático e rápido
para distâncias maiores, urbanas. Como as ruas estão cheias demais,
congestionadas, o automóvel não consegue mais se deslocar com rapidez.
04 – Observe que o texto tem dez parágrafos:
·
No primeiro
parágrafo, apresenta-se o assunto da crônica: o automóvel e o trânsito caótico
dos centros urbanos.
·
No segundo
parágrafo, a crônica apresenta uma opinião: o automóvel vai acabar.
· No terceiro e no quarto parágrafos, comenta-se o que é o carro, hoje, e o enorme problema do trânsito urbano.
a) De que tratam os parágrafos quinto ao oitavo? Explique resumidamente.
Nesses parágrafos, a cronista discute alternativas
e possibilidades, em contraste com a situação atual, para que se escape ao caos
que os carros trouxeram aos grandes centros urbanos.
b) A que conclusão a cronista chega nos dois últimos parágrafos?
Ela constata o que pode acontecer se não se fizer
nada a respeito desse problema, assim como se não se fizer nada com relação aos
estragos que os seres humanos provocam no mundo em que vivem.
05 – Releia o último parágrafo e identifique qual é a opinião da
cronista sobre as ações humanas, de maneira geral.
Ela acha que o ser humano não sabe conservar o que
é bom e viver bem, porque cada um pensa apenas em si mesmo e não no planeta, no
seu ambiente.
06 – Você concorda com a opinião da cronista? Justifique sua resposta de
maneira convincente, dando pelo menos dois argumentos que confirmem sua
opinião.
Resposta pessoal do aluno.
07 – Qual é a ideia central do texto? Resuma, em apenas um parágrafo, a
mensagem principal da crônica.
A ideia central é a situação incoerente em que se
encontra o ser humano: o desenvolvimento tecnológico, que deveria beneficiar a
todos, traz prejuízos à natureza e às pessoas. Como é o caso do automóvel, que
veio para facilitar o transporte, por ser mais rápido e mais confortável para
longas distâncias, mas se tornou um empecilho urbano, pois ocupa muito espaço,
leva poucas pessoas e, em vez de facilitar, dificulta a locomoção dentro dos
grandes centros urbanos.
08 – Que sentimentos a crônica desperta no leitor? Em seu caderno, copie
dois trechos que justifiquem sua resposta.
Possibilidades: amargura, decepção, pessimismo. “[...]
este é o destino do homem sobre a Terra: acabar com tudo de bom e bonito que a
natureza para ele criou”; “Ou será que os engarrafamentos
vão continuar por mais anos e anos, como os assaltos, os sequestros, os meninos
de rua, as favelas e demais desgraças dos grandes ajuntamentos urbanos? Então a
solução seria acabar mesmo com os próprios grandes ajuntamentos urbanos.”
09 – Justifique o título da
crônica, explicando que sentidos podemos atribuir a ele.
O título exprime
ironicamente certo conformismo ao constatar que o destino da humanidade é
caminhar para uma situação pior que a que tinha antes, porque destrói seu
ambiente. O título também se refere ao modo como “se caminha” nas grandes
cidades: os carros, que deveriam agilizar a locomoção das pessoas, congestionam
as ruas e por isso todos andam muito devagar.
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