Texto: Os
espelhos
de Phanuel
Hardy Guedes
Conheci um dia, vivendo na mais
profunda miséria, o melhor fabricante de espelhos que já houve em todo o mundo.
Chamava-se Phanuel e era perfeito em
seu ofício; um artesão inigualável.
Dava gosto vê-lo em sua oficina. Os
seus olhos experientes, especialistas, não permitiam qualquer imperfeição, nem
riscos, nem manchas. Por isso, emprestava à escolha do cristal uma atenção
redobrada.
O mesmo se dava como aço, em cujo polimento
gastava horas e horas de paciência e dedicação.
É desnecessário dizer que o resultado
era simplesmente fantástico.
As imagens refletidas nos espelhos de
Phanuel não deixavam escapar os detalhes mais sutis do original, além de não
apresentarem quaisquer distorções.
Mas, apesar de toda a perfeição e
cuidado, Phanuel mal conseguia ganhar o suficiente para a sua sobrevivência. As
encomendas que recebia eram poucas; pouquíssimas por sinal.
Nessa ocasião, eu trabalhava como mercador
e, por onde passava, procurava apregoar a excelência dos seus espelhos, na
esperança de lhe conseguir algumas encomendas a mais.
A minha ajuda pouco adiantava. Eu não
sabia o quê, nem por quê, mas havia algo nos espelhos que, mesmo com toda a
arte empregada no seu fabrico, não lhes conferia o sucesso merecido.
Certa vez, fiz uma longa viagem a um
porto distante. Aguardava a chegada de um navio com uma remessa de tecidos e
tapetes orientais. Pra meu azar, houve um atraso inesperado e considerável
devido ao mau tempo. Uma tempestade obrigou o capitão a desviar a nau de seu
destino original.
Além desse contratempo, fui acometido
de uma febre estranha que me deixou acamado por um longo período.
Assim, fiquei um bom tempo sem ver o
meu amigo Phanuel.
Logo que pude, voltei ao meu ofício de
mercador e, ao passar pela cidade onde morava o artesão, qual não foi minha
surpresa: a velha oficina não existia mais. Em seu lugar, havia uma outra,
moderna, numa atividade febril.
-- Ora, viva! – exclamei. – Até que
enfim o seu talento foi reconhecido!
-- Bons olhos o vejam, mercador! Andava
preocupado, sem notícias suas.
-- Tive alguns problemas, mas já estão
sanados. E você? Conseguiu, finalmente, o sucesso com os seus espelhos?
-- Não da forma como você está
pensando.
-- Como assim?
-- Não fabrico mais os espelhos de
antigamente.
-- Não!?
-- É uma longa história. Vamos combinar
o seguinte: hoje à noite, você vai à minha casa. Faço questão de recebe-lo!
Durante o jantar, eu lhe contarei tudo o que aconteceu comigo, desde a última
vez que nos vimos.
A minha curiosidade não deu sossego e
aumentou à medida que foi se aproximando a hora de me dirigir à casa de Phanuel.
Lá chegando, fiquei admirado. Era um
verdadeiro palacete: jardins, fontes, aves ornamentais... internamente,
decorada com bom gosto e requinte.
Um empregado conduziu-me a uma das
salas, onde o artesão me aguardava.
-- Bem-vindo seja, mercador! Sinta-se,
por favor, em sua própria casa!
-- Obrigado, meu bom amigo! Quero dizer
que estou imensamente feliz com a sua prosperidade. Mas, não estou conseguindo
controlar a minha ansiedade em saber como você, de um pobre artesão, transformou-se
em alguém tão rico.
Phanuel ordenou que servissem o jantar
preparado em minha homenagem; iguarias como jamais havia provado em toda a
minha vida.
Enquanto nos alimentávamos, ele
relatou-me a transformação de sua vida.
-- Após a sua última visita, as encomendas
foram rareando, rareando, a ponto de passar dias e dias seguidos sem ter o que
fazer. Isso foi me dando um desespero tamanho, em função de não conseguir mais
com o meu trabalho o mínimo necessário ao meu sustento. Ao terminar a última de
minhas provisões, resolvi dar cabo de minha vida. Pensei, naquela ocasião, que
esta saída seria mais nobre do que misturar-me aos indigentes e mendigos da
cidade.
-- Nunca poderia imaginar que a sua
situação fosse chegar a esse ponto!
-- Esperei o dia nascer, fiz uma oração
pedindo perdão a Deus pelo ato que iria cometer e caminhei até a ponte na
estrada da cidade. O rio que passa debaixo dela é profundo o suficiente para
que alguém como eu, que nunca soube nadar, fosse levado pela corrente e
desaparecesse sem deixar rastro. Esse era o fim que planejara naqueles dias de
aflição. Ao chegar à ponte, porém, notei que havia um ancião, já sentado na
amurada, com uma pedra amarrada à mesma corda que estava presa ao seu pescoço.
Não sei o que me deu naquela hora. Corri em sua direção, agarrei-o e impedi que
ele se suicidasse. Acho que o meu instinto de sobrevivência e o meu amor ao
próximo foram mais forte.
-- “Por que não me deixas morrer, se é
tudo que quero?” – perguntou-me.
Eu lhe contei, então, o meu drama
pessoal. Falei de minhas dificuldades e que estava ali, com as mesmas intenções
de procurar a morte, até que o vi. Disse-lhe mais: que naquela hora, salvando a
vida de um entranho, senti que ainda tinha muito a realizar e, humildemente,
agradeci a sua presença naquele lugar. O velhinho, Amazarak era o seu nome,
olhou-me comovido e disse: “Não há dúvida que o destino que nos aproximou, de
forma tão misteriosa, deve ter lá as suas razões. Eu, também, acabo de
descobrir uma nova motivação para continuar vivendo. Esta motivação é ensiná-lo
a fabricar espelhos”.
-- Fabricar espelhos!? Como, se não há
ninguém no mundo capaz de superá-lo nesta arte?
-- Eu acho que, algum dia, eu mesmo
cheguei a acreditar nisso. Pura vaidade! Amazarak sabia bem o que estava
dizendo. Ensinou-me, então, o principal segredo da fabricação de espelhos.
Graças a ele, mudei a minha vida da água para o vinho!
-- Que segredo é esse, Phanuel?
Conte-me logo, porque se eu não tivesse lhe conhecido antes, presenciado a sua
transformação; se não ouvisse esta história de sua própria voz, eu jamais
acreditaria! Eu que vi a sua dedicação, o amor à arte de fabricar espelhos
perfeitos, não consigo crer que alguém tivesse algo a lhe ensinar sobre este
ofício!
-- Na verdade, meu caro amigo, o
segredo é bem simples. Eu, realmente, fazia espelhos perfeitos. Por isso não
conseguia o sucesso almejado. Isso era o que me faltava aprender.
-- Não estou entendendo!
-- É que a maioria das pessoas não deseja, de
fato, um espelho perfeito. Porque num espelho assim, elas se veem como
realmente são e não como gostariam de se ver. Com os ensinamentos de Amazarak,
aprendi a fazer espelhos adequados à vaidade humana. Este é o segredo: quem se
olha nos espelhos que faço hoje, vê, apenas, o que deseja ver.
Saí da casa de Phanuel meditando sobre
sua fantástica história, com a certeza de haver aprendido uma grande lição de
vida.
Infelizmente, o segredo de Amazarak se
aplica, também, a todo relacionamento humano. A verdade, a sinceridade, a
franqueza, nem sempre agradam.
Por isso não paravam de crescer as
encomendas dos novos espelhos de Phanuel!
Hardy Guedes.
Fonte: Livro –
Encontro e Reencontro em Língua Portuguesa – 8ª Série – Marilda Prates – Ed.
Moderna, 2005 – p. 78-81.
Entendendo o texto:
01 – O que significa ser um
artesão inigualável? Justifique sua resposta com um exemplo.
Ser um indivíduo
que exerce, por conta própria, uma arte, um ofício manual e de valor
insuperável devido à sua qualidade profissional.
02 – “Os seus olhos
experientes, especialistas, não permitiam qualquer imperfeição, nem riscos, nem
manchas. Por isso, emprestava à escolha do cristal uma atenção redobrada”.
a)
Identifique o sujeito da primeira e da
segunda frases.
Os seus olhos experientes, especialistas / ele (Phanuel).
b)
Se a mesma personagem executou as ações das
duas frases, por que cada frase apresenta um sujeito diferente?
Porque a substituição do todo pela parte foi usada para evitar a
repetição do sujeito e para aumentar a relação entre o olhar da personagem e o
seu ofício.
03 – Reescreva as frases a
seguir sem modificar o significado original.
a)
“Não da forma como você está pensando”.
Não do jeito, da maneira como você está pensando. / Não vendendo os
espelhos perfeitos de antes.
b)
Resolvi dar cabo de minha vida.
Resolvi me suicidar.
c)
Não sei o que me deu naquela hora.
Não sei o que senti / aconteceu comigo naquela hora.
04 – Reescreva as frases a
seguir substituindo os termos em destaque por expressões ou frases que tornem
os acontecimentos explícitos.
a)
“Isso foi me dando um desespero tamanho”.
O fracasso de venda dos espelhos foi...
b)
“Pensei, naquela ocasião, que esta saída
seria mais nobre...”.
Pensei, naquela ocasião, que me suicidar seria a saída / a solução
mais nobre.
05 – Você sabe o que faz um
mercador? Consulte o dicionário.
Um mercador é um
comerciante.
06 – Phanuel tinha um amigo.
Verdadeiro! Justifique a afirmação.
Mesmo depois de
longa ausência, não houve esquecimento no reencontro, mas o fortalecimento da
amizade já existente.
07 – Se Phanuel já conhecia
todas as técnicas para fabricar espelhos perfeitos, o que Amazarak ensinou para
ele?
Amazarak ensinou
Phanuel a fabricar espelhos que refletissem a imagem das pessoas da maneira que
elas queriam ser vistas.
08 – O amigo de Phanuel tira
suas próprias conclusões a partir da lição aprendida por Phanuel.
a)
Identifique essa conclusão.
“A verdade, a sinceridade, a fraqueza nem sempre agradam”.
b)
O que você pensa sobre o assunto?
Resposta pessoal do aluno.
09 – Por que a maioria das
pessoas não deseja um espelho perfeito? Justifique de acordo com o texto.
Porque as pessoas
preferem se ver no espelho como desejariam ser. Estão insatisfeitas consigo
mesmas.
10 – Após a leitura do
texto, que conclusões se pode tirar para o nosso cotidiano? Fale indicando o
seu ponto de vista.
Resposta pessoal
do aluno.
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