Crônica: AS PALAVRAS QUE NINGUÉM DIZ
Carlos Drummond de Andrade
-- Sabe o que é diadelfo? Não sabe. É
isso aí: ninguém aprende mais nada na escola, não há professor que ensine o que
é diadelfo. Entretanto, basta você sair por aí, na Gávea, e dá de cara com
pencas de diadelfos. Tão fácil distingui-los. Pelo visto, sou capaz de jurar
que você também nunca experimentou a emoção do ilapso. Ou por outra: pode até
ter experimentado, mas sem identificá-lo pelo nome. Não alcançou a maravilhosa
consciência de haver merecido o ilapso. Conheci um nordestino que na mocidade
exercera a profissão de ultor, e que ignorava o que é ultor: como é que pode
ser tão mau profissional?
Praticamente, as coisas deixaram de ser
nomeadas na boca dos falantes. O vocabulário azulou. São incapazes de
reconhecer o que é beltiano, e mais ainda de qualificá-lo. Paranzela, já ouviu
falar? Conhece entre suas relações alguém que algum dia lhe falou em oniquito?
Se vou ao Number One e peço alfitetes, pensam que estou louco, acham que eu
quero comer alfinetes. Não adianta argumentar que, como paguilha, faço jus à
maior consideração: de resto, sabem lá o que seja paguilha?
Olhe, não é só a piara que ignora tudo,
inclusive que ela é piara. Os da alta, é a mesma coisa. Participei de umas
boedrômias em certa mansão do Cosme Velho, e pude verificar que todos,
satisfeitíssimos com o que faziam, estavam longe de imaginar que tudo aquilo
que se passava em torno da piscina eram boedrômias, autênticas boedrômias. Uma
situação de poslimínio é absolutamente indecifrável para muitos doutores que
conheço. E quantos só dormem sossegados se têm um talambor a protegê-lo,
desconhecendo embora que instalaram um talambor em casa?
Menino, você gosta remuito de siricaia
e não sabe o que é siricaia e o que é remuito? Santa ignorância! Mas que o seu
pai, professor ilustre pratique o harpaxismo e nem desconfie de ser harpaxista,
meus pêsames às codornas. Lamentável ainda, a incontinência de seus borborigmos
em reuniões sociais, pois não?
Quanta gente por aí, precisando de
auriscálpio, e se aconselho que procure obter um, fica perturbada, imaginando
coisas... Chega a manifestar aversamento, sem mesmo desconfiar do que seja
aversamento. De português não aprendem um pigalho. Aventure-se alguém, numa
roda seleta, a falar em cristadelfos. Os que se julgam mais informados pensarão
que nos referimos a porcelanas de Delft.
Pessoas que adoram determinados pitéus,
não os visita a mínima noção de gamararologia (não quer dizer que estejam
gamadas, é outra coisa muito diferente). Dispomos de alguns estratólogos, a
quem ninguém trata pela correta denominação, e se esta for mencionada, haverá
quem supunha tratar-se de peritos em rodoviarismo ou em extratos de contas. Fui
cumprimentar uma campeã de tênis, chamando-a lindamente de vitrice, e ela
abespinhou-se. Achou talvez algo de venéfico no vocábulo. Sabe tênis e não sabe
o idioma.
Vamos dar uma volta seral? Propus a
outra moça, que arregalou os olhos. Não houve meio de convencê-la de que
pretendia levá-la por aí, sob a paz das estrelas. Imagine se eu lhe propusesse
usar subsiles. Ainda que eu aplicasse o máximo de catexe, não conseguiria nada.
E talvez ela até chamasse a polícia.
Bem, não estou exagerando. Você que me
ouve, sabe (pelo menos isso) que eu evito toda e qualquer espécie de cinquete.
Ah, também não sabe o que é cinquete? Era de se esperar. Não posso falar que
sua cabeça mais parece uma abatiguera, porque a bem dizer, você nunca plantou
nada aí, e em consequência nada aí se pode colher. Certas coisas a gente vê
logo, não carece ser mirioftalmo. Passe bem, ignaro, ou melhor, passe mal!
As palavras que
ninguém diz. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 95-98.
Fonte: Português – Uma proposta para o
letramento – Ensino fundamental – 8ª série – Magda Soares – Ed. Moderna, 2002 –
p. 159/163.
Entendendo a Crônica:
01 – No último parágrafo, o
narrador afirma: “Bem, não estou
exagerando”.
a)
Determine o que está implícito nessa frase:
que comportamento do narrador poderia estar sendo considerado um exagero?
Citar um número tão grande de palavras, criticando as pessoas por
não conhece-las.
b)
Qual é a sua opinião: o narrador exagera ou
não?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: exagera, porque é este o
objetivo da crônica surpreender o leitor com grande quantidade de palavras
desconhecidas.
02 – As palavras que ninguém
diz citadas na crônica podem ser divididas em dois grupos:
·
Palavras que designam seres, coisas,
sentimentos, ações que são raros, pouco conhecidos (por exemplo, paranzela);
·
Palavras que designam seres, coisas
sentimentos, ações que são bem conhecidas, mas geralmente são nomeados por
outras palavras e expressões (por exemplo, ultor).
Cite
exemplos de cada um dos dois grupos.
Palavras que têm equivalente na linguagem comum (segundo grupo):
abespinhar-se, aversamento, borborigmo, cinquete, ignaro, paguilha, piara,
pitéu, remuito, seral, talambor, venéfico, vitrice; as demais pertencem ao
primeiro grupo.
03 – Observe que o texto
começa com um travessão; por quê?
Porque o travessão indica que o texto é uma fala, que o
narrador está se dirigindo ao leitor ou ouvinte.
04 – Recorde esta frase do
narrador, no último parágrafo: “Você que
me ouve, sabe...”. Por que o narrador usa ouve e não lê
(você que me lê...)?
Porque o texto é apresentado como se o narrador estivesse
falando, conversando com alguém, não como se estivesse escrevendo para um
leitor.
05 – O narrador acusa várias
pessoas de ignorarem o significado de palavras:
a)
Várias vezes o narrador acusa você de ser ignorante; cite
frases do texto dirigidas a você.
Há várias; exemplos: “Sabe o que é diadelfo? Não sabe”; “Basta você
sair por aí...”; “... sou capaz de jurar que você também nunca
experimentou...”; “Já ouviu falar?” Etc.
b)
Muitas vezes o narrador acusa outros – eles – de serem ignorantes; cite
frases em que a ignorância dos outros
é apontada.
Há várias; exemplos: “Conheci um nordestino...”; “... não é só a
piara que ignora tudo.”; “Os da alta é a mesma coisa.”; “Quanta gente por
aí...”; etc.
06 – Para o narrador, você é ignorante, eles são ignorantes. Que opinião
a respeito de si mesmo ele
deixa transparecer na crônica? Escolha a resposta entre as frases abaixo, e
escreva-a em seu caderno:
·
Eu conheço palavras que ninguém conhece.
·
Eu sei mais português que você e que eles.
·
Eu uso palavras que não precisam
ser usadas.
07 – O que o narrador diz
não está de acordo com o título da crônica – qual é a contradição?
O título anuncia
palavras que ninguém diz, que ninguém conhece, mas o narrador acusa as pessoas
de não conhecerem essas palavras.
08 – Escolha, entre as
frases abaixo, a que, na sua opinião, expressa o objetivo da crônica; escreva-a
em seu caderno:
·
A crônica é uma crítica a pessoas de
vocabulário pobre.
·
A crônica ironiza o uso de palavras que ninguém
diz.
·
A crônica mostra como a língua é rica em
palavras.
·
A crônica é uma brincadeira com palavras
incomuns.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: excetuada a primeira opção, as
três outras são aceitáveis. O objetivo é levar o aluno a explicitar o sentido
que construiu para texto.
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