REPORTAGEM: Fogo, destruição, morte
Pedro Martinelli
Numa tragédia ecológica que se repete
todo ano, a Amazônia está queimando outra vez.
A Amazônia está queimando de novo. No
dia 31 de julho, uma imagem do satélite americano NOAA – 14 sobre o município
mato-grossense de Alta Floresta registrou queimadas numa extensão de 150
quilômetros entre os rios Teles Pires e Juruena. É apenas um entre milhares de
focos de incêndio na região. Na semana passada, o Aeroporto de Rio Branco, no Acre,
fechou duas vezes em virtude da falta de visibilidade pelo excesso de fumaça.
Há três meses não chove na maior parte da Amazônia. A seca faz com que o fogo
se propague mais rapidamente. “Os focos de queimada já atingem 25% de todas as
áreas habitadas da Amazônia”, afirma Alberto Setzer, pesquisador do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais, Inpe. Todos os dias, o Inpe envia imagens de
satélite com informações atualizadas sobre as queimadas para três diferentes
órgãos governamentais na Amazônia: o Ibama, do governo federal, e as
secretarias do Meio Ambiente dos Estados de Rondônia e Pará. Teoricamente,
todos eles teriam condições de acionar seus fiscais para punir os responsáveis
pelos incêndios. Na prática, ninguém faz nada. “Tenho dois fiscais para cuidar
de 1,5 milhão de hectares”, justifica-se Ênio Figueiredo, chefe da fiscalização
do Ibama em Alta Floresta.
Se eu fosse o presidente da República,
convocaria os ministros para uma visita de emergência, e de surpresa, ao sul do
Pará. De seu gabinete, ele está a apenas uma hora e meia do inferno. É o mesmo
tempo de viagem que gasta quando vai ao oculista, em São Paulo. O presidente
verá coisas de arrepiar. Banditismo, desmatamento, conflitos entre sem-terra e
latifundiários, contrabando, desmando, corrupção – está tudo lá. Está lá,
agora, o fogo, o fogo dos infernos, destruindo uma região de beleza sem igual.
A degradação humana nas bordas da
floresta só não é maior que a ambiental. Sem tratores ou arados, posseiros
miseráveis usam o fogo para cultivar lavouras das quais mal retiram a própria
subsistência. Enquanto isso, garimpeiros embrenham-se na selva em busca de
minas de ouro que não existem. Para caçar, também colocam fogo na mata. É uma
forma de obrigar os animais a sair de suas tocas. O fogo queima de um lado e os
garimpeiros esperam do outro, de espingarda em punho. A fumaça das queimadas
encobre o sol em pleno dia.
Vinte anos atrás, quando a Companhia
Vale do Rio Doce chegou à Serra dos Carajás, toda aquela região era uma imensa
e intocada floresta. Hoje, resta uma ilha verde sitiada por uma paisagem lunar.
Há duas semanas, numa única noite, 4.000 castanheiras foram devoradas pelo fogo
na fazenda de um município vizinho. A castanheira, da qual se tira a
castanha-do-pará, é protegida por lei. É protegida por lei. É proibido
derrubá-la ou queimá-la, mas todo ano milhões delas são transformadas em
pranchas e tábuas nas serrarias. Ninguém fiscaliza. As toras de madeira
circulam livremente porque os madeireiros subornam funcionários do Ibama,
guardas-florestais e patrulheiros rodoviários. Nessa fronteira sem lei, a
corrupção está em todos os cantos, corroendo as pessoas que até pouco tempo
atrás eram honestas. O funcionário ou o policial que recusar a propina pode
aparecer morto no dia seguinte. Em vez de correr o risco decorrentes da
honestidade, é mais fácil se adaptar à cadeia de desmandos e corrupção.
As queimadas da Amazônia são feitas por
dois motivos. O primeiro, mais comum, é limpar terra para cultivar lavouras ou
pastagens. Pela lei, para fazer isso o agricultor precisa de licença do Ibama.
A autorização para cada hectare queimado custa 3 reais. Neste ano foi
autorizada a queimada de 10.000 hectares na Amazônia – mas esse é um número de
ficção. Na prática, a área queimada é horrendamente maior. Uma segunda razão é
o desmatamento em áreas de floresta nativa. Isso é proibido mas, também nesse
caso, ninguém fiscaliza. A expansão da fronteira agrícola, em decorrência do
Plano Real, acelerou o ritmo de destruição da Amazônia. O resultado é uma
tragédia ecológica da qual os brasileiros que vivem nos grandes centros urbanos
não se dão conta.
Está na hora de dar um basta nesse
crime. Todo ano é a mesma coisa. As fotos das queimadas na Amazônia chocam o
mundo, os ecologistas criticam, o governo se defende alegando que não tem
recursos nem estrutura para combater o fogo. Enquanto isso, milhões de árvores
são destruídas e as ilusões se espalham. Espalhou-se, por exemplo, a ilusão de
que nos últimos anos as queimadas diminuíram. Não é verdade. O que houve foi
apenas a mudança do satélite que mede os focos de incêndio. Antes usava-se um
satélite que colhia imagens diurnas. É durante o dia que ocorre a maioria das
queimadas. Agora, utiliza-se um satélite que faz imagens à noite, quando quem
põe fogo na mata está dormindo. Só por isso o número de queimadas diminuiu.
A sociedade brasileira deve exigir do
governo um tratamento de emergência para as queimadas na Amazônia. Agora, nesse
minuto, enquanto você lê este parágrafo, o fogo já avançou 1 metro dentro da
mata e queimou de árvores. No minuto seguinte serão mais dez. É preciso fazer
alguma coisa já.
O que o presidente poderia fazer pela
Amazônia? Muito. Um esforço concentrado no período da seca, entre os meses de julho
e novembro, quando ocorrem as queimadas, faria com que as fogueiras diminuíssem
bastante. Poderia ser usado o Exército, que fica brincando de escoteiro na
região enquanto o fogo sobe. O Exército tem meios e conhece a floresta. Mas,
antes de mais nada, o presidente poderia ajudar a Amazônia saindo do seu
gabinete. Deixando de lado, por um momento, os especialistas e seus doutos
estudos. Precisaria ir lá. Ir lá de surpresa. Ver o que está acontecendo. Ver e
se comover com a destruição. E mobilizar os brasileiros para impedir que o fogo
destrua aquela nossa rica beleza.
Revista VEJA. 20 ago.
1997.
Fonte: Livro – Encontro
e Reencontro em Língua Portuguesa – 8ª Série – Marilda Prates – Ed. Moderna,
2005 – p. 151/4.
Entendendo o texto:
01 – Qual a função das aspas
no texto?
Identificar
partes de depoimentos de especialistas ou de pessoas envolvidas com o tema
abordado.
02 – Identifique o
significado, no texto, das palavras a seguir:
- Banditismo:
Ação, vida, ou qualidade de bandido.
- Embrenhar-se:
Esconder-se nas matas, nas brenhas.
- Desmando:
Excesso, abuso.
- Subornar:
Ato de dar dinheiro ou outros bens como objetivo
de obter vantagens.
- Corrupção:
Ato ou efeito de corromper, suborno.
- Propina:
Gratificação, gorjeta.
- Sem-terra:
Trabalhador rural que não possui terreno para
exercer a sua atividade.
- Alegar:
Apresentar como explicação, prova ou desculpa.
- Posseiros:
Que ou aquele que está na posse legal de imóveis
indivisos.
- Mobilizar:
Movimentar, mover em prol de uma causa.
- Subsistência:
Conjunto do que é necessário para sustentar a
vida.
03 – “Se eu fosse o
presidente da República, convocaria os ministros para uma visita de emergência,
e de surpresa, ao sul do Pará”.
a) Quem
é o eu registrado no texto?
Pedro Martinelli, o autor.
b) Qual
o significado de convocar?
Chamar a particular, convidar.
c) A
escolha do verbo convocar indica que os ministros iriam voluntariamente ao sul
do Pará? Por quê?
Indica que eles precisavam ser estimulados a fazer a visita, que não
a fariam por iniciativa própria.
d) Por
que a visita deveria ser de emergência?
Devido à gravidade do problema.
e) E
por que deveria ser de surpresa?
Porque a surpresa evitaria que os problemas fossem encobertos.
04 – “É o mesmo tempo de
viagem que gasta quando vai ao oculista, em São Paulo”.
a) O
tempo gasto pelo presidente para chegar ao oculista é comparado a quê?
Ao tempo que seria gasto pelo presidente para chegar ao sul do Pará.
b) Qual
o efeito produzido por essa comparação?
A comparação serve para reforçar a ideia de que o tempo gasto pelo
presidente para chegar ao sul do Pará seria pequeno e habitualmente gasto pelo
presidente em ações de interesse particular.
05 – “Vinte anos atrás,
quando a Companhia Vale do Rio Doce chegou à Serra dos Carajás, toda aquela
região era uma imensa e intocada floresta. Hoje, resta uma ilha verde sitiada
por uma paisagem lunar”. Ao mencionar a chegada da Companhia Vale do Rio Doce à
Serra dos Carajás, o autor permite ao leitor estabelecer uma conclusão.
Identifique essa conclusão.
O autor permite ao
leitor concluir que a Companhia foi responsável pela devastação.
06 – De acordo com o texto,
o que permitiu que se formasse a ilusão de que as queimadas haviam diminuído?
O desconhecimento
de que havia mudado o satélite que media os focos de incêndio.
07 – Ao afirmar: “Só por
isso o número de queimadas diminuiu”, o autor faz uma crítica à manipulação de
informações. Por quê?
Porque comprova que a omissão de
informações pode levar ao leitor e o cidadão a conclusões equivocadas.
08 – Conclua a partir do
texto: a quem poderia interessar a ilusão de que as queimadas haviam diminuído?
A ilusão interessava àqueles que se
beneficiavam das queimadas.
09 – “Poderia ser usado o
Exército, que fica brincando de escoteiro na região enquanto o fogo sobe”. O
que essa afirmação permite concluir a respeito da opinião do autor sobre a
atuação do Exército na Amazônia?
Permite concluir
que o autor considera inadequada a atuação do Exército. Pode-se concluir que
ele considera dissimulada a ação do Exército, uma vez que afirma que seus
representantes “brincam de escoteiros”, ou seja, fazem papel de “bons meninos”
sem realizar obras mais relevantes.
10 – A escolha das palavras
para o título obedece a um critério. Identifique-o.
As palavras vão da causa (fogo) para a
consequência, em grau crescente de gravidade.
11 – Em sua opinião, o que é
preciso fazer para transformar as situações descritas em “Ecossistemas urbanos”
e “Fogo, destruição, morte”?
Resposta pessoal
do aluno.
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