segunda-feira, 17 de agosto de 2020

REPORTAGEM: A VOZ DOS MENINOS DO BRASIL - CYNTHIA DE ALMEIDA - REVISTA VEJA - COM GABARITO

 REPORTAGEM: A voz dos meninos do Brasil

                     Cynthia de Almeida

     Sonhadoras mas temperadas pela realidade, 600 crianças fazem suas projeções para o futuro: querem o Brasil no Primeiro Mundo, exigem o fim da violência e da corrupção e ameaçam mudar de país se tudo continuar como está.

          COMPORTAMENTO

        Brasil, 2020. A TV transmite, via satélite, a entrega do cheque da última parcela da dívida externa brasileira. O país, agora parlamentarista, evoluiu muito e liquidou suas dívidas depois da guerra entre Estados Unidos e Europa. Uma cineasta brasileira ganha o Oscar de melhor filme. A comunidade científica internacional aplaude o pesquisador brasileiro que descobriu a cura da Aids.

        Os autores das previsões sobre esta grande odisseia brasileira no terceiro milênio não são discípulos do mago Paulo Coelho. Não usam bola de cristal, não estão filiados a nenhum partido político e, descontados os arroubos imaginativos e ufanistas próprios da idade, são menos ingênuos e otimistas do que pode parecer. O sonho de um país ideal, em plena maturidade política e auto suficiência econômica, é o lado cor-de-rosa das projeções para o futuro que 600 crianças entre 11 e 14 anos, estudantes de 5ª e 6ª séries do 1° grau de quatro capitais brasileiras, fizeram a pedido de VEJA.

        Com o tema “Como você imagina sua vida adulta?”, alunos de escolas públicas e particulares de São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Recife foram convidados a descrever suas aspirações futuras. Os textos fornecidos pelas crianças foram analisados por professores, pedagogos, psicólogos e psicanalistas. Revelaram o perfil sensível, algumas vezes amargo e outras surpreendente, de uma geração com muita informação e poucas perspectivas. “Os textos refletem uma carga de informação maciça que marcou muito essas crianças”, diz a psicanalista Maria Cristina Kupfer. Palavras como corrupção, inflação e crise política foram incorporadas ao seu vocabulário a ponto de a maioria dos pequenos redatores não conseguir projetar qualquer sonho desvinculado da situação caótica do país. Aspirações profissionais, desejo de sucesso, fama e realização sentimental passam antes pela peneira do que o vocabulário político nacional acostumou-se a chamar de o social.

        “É gritante a desesperança em relação ao Brasil. A maioria situa o sucesso profissional fora do país. E quase todos mencionam a miséria e a desigualdade social, associadas à incompetência e corrupção dos políticos”, analisa Samir Mesarani, professor de Processos de Redação Criativa na PUC de São Paulo, especialista em análise de linguagem e diagnóstico de texto. Não faltam, porém, projetos otimistas. O desejo de tornar o Brasil melhor ou a declara intensão de pular do barco para um país mais atraente aparece na maior parte dos textos. A simples menção da possibilidade de fuga já demonstra que, antes de mais nada, eles têm um compromisso com a própria felicidade. No ranking das aspirações, “ganhar dinheiro” é mais importante do que se realizar profissionalmente. O lado ético do universo destes cidadãos brasileiros no início da adolescência se canaliza para as relações familiares, a ecologia e os compromissos sociais, nessa ordem.

        Com o uso de clichês adultos sobre a generosidade e a solidariedade social, disfarçam uma forte vocação individualista. Para cada jatinho que ousam desejar, abrem creches para crianças abandonadas. São engraçados, afetivos, individualistas e poderosos o suficiente para manter os problemas do outro lado de seu universo particular.

        Farei de tudo para melhorar o Brasil, como ajudar crianças pobres que são iguaizinhos a mim (ossos, orelhas, bocas, etc.) mas que têm um sério problema: A miséria... Vamos parar de escrever este gravíssimo problema e tentar falar de um assunto muito mais agradável. Quero ter tudo do bom e do melhor, mas, para isso, é preciso trabalhar. Vou ser um comerciante formado em arquitetura... venderei sapatos e ganharei muito dinheiro, me tornando um magnata com uma Ferrari na frente de minha casa. (André, 12 anos, Escola Nova Lourenço Castanho, São Paulo).

        Rebeldes com justíssima causa, as crianças nascidas no final dos anos 70 ou início dos 80, dentro de um panorama permanente de crise econômica e política, não apresentam traços de inconformismo notáveis. Em suas redações, mostram-se bem comportadas, éticas e extremamente “família”. Contra apenas quatro declarações de celibato convicto, sendo três delas de meninas, 179 crianças de ambos os sexos planejam constituir uma família tradicional.

        Eu quero ter quatro filhos: Júlia, Pedro, Maria e Lucas (um pouquinho exagerada, né?). Mas mesmo assim, por que eu quero chegar do trabalho e ver uma casa sempre alegre. Quero criar todas com carinho e que tenham uma vida parecida com a minha, que eu considero boa. Quero que eles tenham os mesmos valores que os meus: solidariedade, amizade e carisma. Oh! não posso esquecer, eu quero ter um ótimo marido, que goste de mim e seja um bom pai. (Nina, 12 anos, Escola Senador Correia, Rio de Janeiro).

        O papel do homem aparece enfraquecido. As meninas traçam suas metas de forma independente, muitas vezes já prevendo a dissolução do futuro casamento. Já aos meus 20 aninhos (na minha cabeça) começam os problemas de dinheiro. Antes, com mais ou menos 19 anos já fiz sexo (no fim do ano) e acho que com 20 anos já tive filhos. Quero ter apenas uma filha. Aos 25 anos: nessa época imagino ter uma carreira ótima e firme como atriz de televisão e teatro (talvez cinema). Com meu salário, vou sustentar minha filha. Imagino que vou me separar do meu marido com 24 anos, como a minha querida mamãe. (Maíra, 12 anos, Escola Senador Correia, Rio de Janeiro).

        A análise de conteúdo dos textos feita pelo professor Samir Meserani destaca a referência à família como o assunto básico mais abordado. “A família aparece como o grupo social mais importante, se não o único, dos pequenos redatores”, constata Meserani. “Mostram a família como um centro de afeto e muitas vezes de sacrifício para mantê-los”. Em alguns casos, promete-se o pagamento no futuro. “Ajudar os pais” figura entre as dez maiores aspirações reveladas pelas composições, em sua maioria por crianças da rede pública de ensino. “As crianças estão expressando uma urgência de crescer para aliviar os pais. A dependência aparece como situação de ônus”, observa a professora Ada Pellegrini, psicanalista e coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Família do Programa de Serviço   Social da PUC de São Paulo.

        (...)

        As crianças pedem políticos melhores e o fim da corrupção, mas não parecem acreditar que isso seja realmente possível. A promessa desacreditada de um país viável se transfere para uma utopia simplista da mudança radical de endereço.

        (...)

        A saída pelo aeroporto é a mais procurada pelas crianças que revelam projetos definidos de realizações e carreiras. Do candidato a craque de futebol ao futuro cientista espacial, 48 estudantes referiram-se explicitamente ao desejo de se mudar para o Primeiro Mundo. “Eles imaginam que vão achar lá o que não encontraram aqui. Isso é um mito”, alerta a professora Ada Pellegrini. Um mito, evidentemente, partilhado por muitos brasileiros de todas as idades. A síndrome do futuro negro também foi diagnosticada numa porcentagem significativa das redações. Em relatos dramáticos, em que se atropelam as normas de linguagem em relação direta com a angústia expressada, explode esperança. Eu gostaria de ter uma futuro melhor que não fosse de ladrões e que as pessoas não podem nem sair para muito longe que as pessoas poderiam ser sequestradas. Enfim, eu gostaria de um futuro onde a gente fosse livre. (Everaldo, 13 anos, E.P.G. Presidente Tancredo Neves, São Paulo).

        A violência da sociedade é citada em quase todos os textos e descrita em sua multiplicidade de manifestações. No repertório “de crise” de 359 das 600 redações, os temas mais contundentes abordados foram miséria, assaltos, corrupção, sequestro, drogas, crianças abandonadas, poluição e devastação da natureza. A resposta à violência surge em forma de declarações de boa conduta no futuro. “A política vem sempre associada à ética e à competência e nunca a doutrinas ideológicas ou partidos”, ressalta Samir Meserani. “Para sobreviver, eles estão desenvolvendo anseios éticos: trabalho, fidelidade, dignidade, não-segregação”, diz a psicanalista Ada Pellegrini.

        (...)

        O bom-mocismo não é, sincera ou simuladamente, regra geral. Fugindo do enquadramento em que a maioria prefere se resguardar, aparece a marotice sem freios ou a cópia proposital dos modelos errados. Gostaria de ser terrorista e ganhar muita grana, defender meus ideais ou então ser o novo chefão da máfia italiana.

Embolsar milhões de dólares por dia. Já pensou? Ou ser o presidente da república e aí embolsar e embolsar. Roubar mais que o P.C. e o Fernandinho. (Cesar, 13 anos, E. P. S. G. Prof. Carlos de Moraes Andrade, São Paulo). O exemplo do Fernandinho se repete entre os provocadores mirins. Eu gostaria de ser o presidente da república, para eu roubar mais do que o Collor, e quando cumprir o mandato, eu sair muito rico, milionário. (Marcos, 13 anos, E. P. S. G. Prof. Carlos de Moraes Andrade, São Paulo).

        Entre os anseios familiares e as inquietações político-sociais, as crianças perseguem carreiras nobres. A profissão desejada raramente é associada ao prazer de exercê-la, mas mencionada como um instrumento para conseguir conforto e dinheiro para uma vida melhor. “Poucas vezes o sucesso profissional é associado aos estudos, à escola. Esta é vista apenas como um caminho que precisa ser percorrido para chegar lá”, analisa Meserani.

        Imagino também ser juiz para condenar as pessoas culpadas. Eu também acho que serei advogado, para proteger os inocentes e acusar os culpados ou defender as pessoas por justa causa em empregos. Ou então eu imagino ser dono de lojas de carros, dono de caminhões, ter muitos carros e caminhonetes, ter várias fazendas, compor músicas, ser dono de supermercados, etc. (Adriano Augusto Couto Soares, 13 anos, Escola Embaixador Gilberto Amado, Recife).

        Há diferenças sensíveis entre o repertório profissional das crianças de escolas públicas e particulares. Entre as carreiras mais citadas, as de professor e secretária só contam com a preferência das crianças de escolas estaduais ou municipais. Ao contrário dos alunos de classes mais privilegiadas, aparece também na escola pública a consciência da barreira social como entrave à realização do sonho profissional.

        O meu sonho é estudar medicina só que eu acho que eu estou sonhando muito alto apesar que sonhar não é proibido e não paga sonhar... Eu queria muito ter roupas boas para vestir e ter muita coisa gostosa para comer. Só que minha mãe é doméstica e ganha pouco meu pai é pedreiro e também ganha pouco e o que ganham só dá para comer e às vezes uma roupinha nova. (Clélia dos Santos Neiva, 15 anos, E. E. P. G. Presidente Tancredo Neves, São Paulo).

        Sensíveis à causa ecológica, as crianças demonstram um particular fascínio – e temor – pelo buraco na camada de ozônio. Uma a cada duas inquietações preservacionistas expressadas é a citação do iminente perigo associado ao buraco de ozônio, uma espécie de bicho-papão da nova geração. (...)

        Mas também não é preciso se preocupar tanto. O país – e o mundo de uma forma geral – vai melhorar. A julgar pelos projetos de quem hoje se prepara para botar seus atrevidos narizinhos na vida, podemos esperar para os meados do ano 2020 uma geração de famílias harmônicas, cidadãos corretos, políticos honestos, profissionais competentes, cientistas geniais, artistas inspirados, consumidores racionais e preservacionistas conscientes. Se o futuro não for cor-de-rosa, não será por culpa deles. Os adultos podem envelhecer tranquilos, pelo menos enquanto esta geração, realista e ao mesmo tempo sonhadora, continuar a ser pessimista no pensamento – e adoravelmente otimista na ação.

Revista VEJA. 20 jan. 1993.

                         Fonte: Livro – Encontro e Reencontro em Língua Portuguesa – 8ª Série – Marilda Prates – Ed. Moderna, 2005 – p. 138/142.

Entendendo o texto:

01 – A abertura é interessante. Percebemos um otimismo marcante no resumo dos depoimentos colhidos. Por quê?

      Porque o texto procurou resumir a essência do anseio de boa parte da população brasileira, dos jovens adolescentes, em particular, que acreditam num futuro melhor para todos nós.

02 – Palavras como corrupção, inflação, crise política, aspirações profissionais, sucesso, fama, realização sentimental fazem parte do vocabulário desses jovens. E, com toda honestidade e segurança, respondem às perguntas formuladas. Como percebemos isso? Responda com frases e depoimentos do texto.

      “Os textos refletem uma carga maciça que marcou muito essas crianças.” / “É gritante a desesperança em relação ao Brasil. A maioria situa o sucesso profissional fora do país. E quase todos mencionam a miséria e a desigualdade social, associadas à incompetência e à corrupção dos políticos”.

03 – Existe desesperança desses jovens em relação ao Brasil? Novamente justifique através dos depoimentos.

      Existe. Tanto que o texto afirma que a maioria situou o sucesso profissional fora do país.

04 – Observe os três parágrafos apresentados: profissões desejadas, aspirações, preocupações. Comente um a um.

      Resposta pessoal do aluno.

05 – Todos os jovens respondem positivamente, com indícios de conhecer direitos e deveres? Justifique.

      Sim. A justificativa para uma resposta positiva encontra-se, por exemplo, no seguinte trecho: “Para sobreviver, eles estão desenvolvendo anseios éticos: trabalho, fidelidade, dignidade, não-segregação.

06 – Algum depoimento o chocou? Por quê?

      Resposta pessoal do aluno.

07 – Em muitos momentos percebe-se a grande preocupação com a família. De que forma?

      “A família aparece como o grupo social mais importante, se não o único, dos pequenos redatores”. “Mostra a família como um centro de afeto e muitas vezes de sacrifícios para mantê-los”.

08 – Dentro das profissões, qual é a mais almejada? Você consegue entender a razão?

      A profissão de médico. Porque ganhar dinheiro vem antes da realização profissional.

09 – Nas aspirações, o que mais almeja o jovem? Que razões teria ele?

      Casar e ter filhos. Na visão de uma jovem, conforme seu depoimento, as crianças trazem alegria a uma casa.

10 – por que é grande a preocupação com a ecologia e, em particular, com a camada de ozônio?

      Provavelmente, por ser um assunto que ocupa espaço na mídia e está intimamente ligada à qualidade de vida no futuro.

11 – Como o texto é concluído? Você concorda com essa conclusão?

      O texto é concluído com a observação de que, no futuro, quando esses jovens estiverem no comando, a situação será bem melhor, por conta dos ideais elevados da geração que participou da pesquisa.

12 – Qual sua opinião sobre essa pesquisa? Conclua, ponderando e justificando.

      Resposta pessoal do aluno.

 

 

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