REPORTAGEM: A voz dos meninos do Brasil
Cynthia de Almeida
Sonhadoras mas temperadas pela
realidade, 600 crianças fazem suas projeções para o futuro: querem o Brasil no
Primeiro Mundo, exigem o fim da violência e da corrupção e ameaçam mudar de
país se tudo continuar como está.
COMPORTAMENTO
Brasil, 2020. A TV transmite, via
satélite, a entrega do cheque da última parcela da dívida externa brasileira. O
país, agora parlamentarista, evoluiu muito e liquidou suas dívidas depois da
guerra entre Estados Unidos e Europa. Uma cineasta brasileira ganha o Oscar de
melhor filme. A comunidade científica internacional aplaude o pesquisador
brasileiro que descobriu a cura da Aids.
Os autores das previsões sobre esta
grande odisseia brasileira no terceiro milênio não são discípulos do mago Paulo
Coelho. Não usam bola de cristal, não estão filiados a nenhum partido político
e, descontados os arroubos imaginativos e ufanistas próprios da idade, são
menos ingênuos e otimistas do que pode parecer. O sonho de um país ideal, em
plena maturidade política e auto suficiência econômica, é o lado cor-de-rosa
das projeções para o futuro que 600 crianças entre 11 e 14 anos, estudantes de
5ª e 6ª séries do 1° grau de quatro capitais brasileiras, fizeram a pedido de
VEJA.
Com o tema “Como você imagina sua vida
adulta?”, alunos de escolas públicas e particulares de São Paulo, Rio de
Janeiro, Curitiba e Recife foram convidados a descrever suas aspirações
futuras. Os textos fornecidos pelas crianças foram analisados por professores,
pedagogos, psicólogos e psicanalistas. Revelaram o perfil sensível, algumas
vezes amargo e outras surpreendente, de uma geração com muita informação e
poucas perspectivas. “Os textos refletem uma carga de informação maciça que
marcou muito essas crianças”, diz a psicanalista Maria Cristina Kupfer.
Palavras como corrupção, inflação e crise política foram incorporadas ao seu
vocabulário a ponto de a maioria dos pequenos redatores não conseguir projetar
qualquer sonho desvinculado da situação caótica do país. Aspirações
profissionais, desejo de sucesso, fama e realização sentimental passam antes
pela peneira do que o vocabulário político nacional acostumou-se a chamar de o
social.
“É gritante a desesperança em relação
ao Brasil. A maioria situa o sucesso profissional fora do país. E quase todos
mencionam a miséria e a desigualdade social, associadas à incompetência e
corrupção dos políticos”, analisa Samir Mesarani, professor de Processos de
Redação Criativa na PUC de São Paulo, especialista em análise de linguagem e
diagnóstico de texto. Não faltam, porém, projetos otimistas. O desejo de tornar
o Brasil melhor ou a declara intensão de pular do barco para um país mais
atraente aparece na maior parte dos textos. A simples menção da possibilidade
de fuga já demonstra que, antes de mais nada, eles têm um compromisso com a
própria felicidade. No ranking das aspirações, “ganhar dinheiro” é mais
importante do que se realizar profissionalmente. O lado ético do universo destes
cidadãos brasileiros no início da adolescência se canaliza para as relações
familiares, a ecologia e os compromissos sociais, nessa ordem.
Com o uso de clichês adultos sobre a
generosidade e a solidariedade social, disfarçam uma forte vocação individualista.
Para cada jatinho que ousam desejar, abrem creches para crianças abandonadas.
São engraçados, afetivos, individualistas e poderosos o suficiente para manter
os problemas do outro lado de seu universo particular.
Farei de tudo para melhorar o Brasil,
como ajudar crianças pobres que são iguaizinhos a mim (ossos, orelhas, bocas,
etc.) mas que têm um sério problema: A miséria... Vamos parar de escrever este
gravíssimo problema e tentar falar de um assunto muito mais agradável. Quero ter
tudo do bom e do melhor, mas, para isso, é preciso trabalhar. Vou ser um comerciante
formado em arquitetura... venderei sapatos e ganharei muito dinheiro, me
tornando um magnata com uma Ferrari na frente de minha casa. (André, 12 anos,
Escola Nova Lourenço Castanho, São Paulo).
Rebeldes com justíssima causa, as
crianças nascidas no final dos anos 70 ou início dos 80, dentro de um panorama
permanente de crise econômica e política, não apresentam traços de
inconformismo notáveis. Em suas redações, mostram-se bem comportadas, éticas e
extremamente “família”. Contra apenas quatro declarações de celibato convicto,
sendo três delas de meninas, 179 crianças de ambos os sexos planejam constituir
uma família tradicional.
Eu quero ter quatro filhos: Júlia,
Pedro, Maria e Lucas (um pouquinho exagerada, né?). Mas mesmo assim, por que eu
quero chegar do trabalho e ver uma casa sempre alegre. Quero criar todas com
carinho e que tenham uma vida parecida com a minha, que eu considero boa. Quero
que eles tenham os mesmos valores que os meus: solidariedade, amizade e
carisma. Oh! não posso esquecer, eu quero ter um ótimo marido, que goste de mim
e seja um bom pai. (Nina, 12 anos, Escola Senador Correia, Rio de Janeiro).
O papel do homem aparece enfraquecido.
As meninas traçam suas metas de forma independente, muitas vezes já prevendo a
dissolução do futuro casamento. Já aos meus 20 aninhos (na minha cabeça)
começam os problemas de dinheiro. Antes, com mais ou menos 19 anos já fiz sexo
(no fim do ano) e acho que com 20 anos já tive filhos. Quero ter apenas uma
filha. Aos 25 anos: nessa época imagino ter uma carreira ótima e firme como
atriz de televisão e teatro (talvez cinema). Com meu salário, vou sustentar
minha filha. Imagino que vou me separar do meu marido com 24 anos, como a minha
querida mamãe. (Maíra, 12 anos, Escola Senador Correia, Rio de Janeiro).
A análise de conteúdo dos textos feita
pelo professor Samir Meserani destaca a referência à família como o assunto
básico mais abordado. “A família aparece como o grupo social mais importante,
se não o único, dos pequenos redatores”, constata Meserani. “Mostram a família
como um centro de afeto e muitas vezes de sacrifício para mantê-los”. Em alguns
casos, promete-se o pagamento no futuro. “Ajudar os pais” figura entre as dez
maiores aspirações reveladas pelas composições, em sua maioria por crianças da
rede pública de ensino. “As crianças estão expressando uma urgência de crescer
para aliviar os pais. A dependência aparece como situação de ônus”, observa a
professora Ada Pellegrini, psicanalista e coordenadora do Núcleo de Pesquisa de
Família do Programa de Serviço Social da PUC de São Paulo.
(...)
As crianças pedem políticos melhores e
o fim da corrupção, mas não parecem acreditar que isso seja realmente possível.
A promessa desacreditada de um país viável se transfere para uma utopia
simplista da mudança radical de endereço.
(...)
A saída pelo aeroporto é a mais
procurada pelas crianças que revelam projetos definidos de realizações e
carreiras. Do candidato a craque de futebol ao futuro cientista espacial, 48
estudantes referiram-se explicitamente ao desejo de se mudar para o Primeiro
Mundo. “Eles imaginam que vão achar lá o que não encontraram aqui. Isso é um mito”,
alerta a professora Ada Pellegrini. Um mito, evidentemente, partilhado por
muitos brasileiros de todas as idades. A síndrome do futuro negro também foi
diagnosticada numa porcentagem significativa das redações. Em relatos
dramáticos, em que se atropelam as normas de linguagem em relação direta com a
angústia expressada, explode esperança. Eu gostaria de ter uma futuro melhor
que não fosse de ladrões e que as pessoas não podem nem sair para muito longe
que as pessoas poderiam ser sequestradas. Enfim, eu gostaria de um futuro onde
a gente fosse livre. (Everaldo, 13 anos, E.P.G. Presidente Tancredo Neves, São
Paulo).
A violência da sociedade é citada em
quase todos os textos e descrita em sua multiplicidade de manifestações. No
repertório “de crise” de 359 das 600 redações, os temas mais contundentes
abordados foram miséria, assaltos, corrupção, sequestro, drogas, crianças
abandonadas, poluição e devastação da natureza. A resposta à violência surge em
forma de declarações de boa conduta no futuro. “A política vem sempre associada
à ética e à competência e nunca a doutrinas ideológicas ou partidos”, ressalta
Samir Meserani. “Para sobreviver, eles estão desenvolvendo anseios éticos:
trabalho, fidelidade, dignidade, não-segregação”, diz a psicanalista Ada
Pellegrini.
(...)
O bom-mocismo não é, sincera ou
simuladamente, regra geral. Fugindo do enquadramento em que a maioria prefere
se resguardar, aparece a marotice sem freios ou a cópia proposital dos modelos
errados. Gostaria de ser terrorista e ganhar muita grana, defender meus ideais
ou então ser o novo chefão da máfia italiana.
Embolsar milhões de dólares
por dia. Já pensou? Ou ser o presidente da república e aí embolsar e embolsar.
Roubar mais que o P.C. e o Fernandinho. (Cesar, 13 anos, E. P. S. G. Prof.
Carlos de Moraes Andrade, São Paulo). O exemplo do Fernandinho se repete entre
os provocadores mirins. Eu gostaria de ser o presidente da república, para eu
roubar mais do que o Collor, e quando cumprir o mandato, eu sair muito rico, milionário.
(Marcos, 13 anos, E. P. S. G. Prof. Carlos de Moraes Andrade, São Paulo).
Entre os anseios familiares e as
inquietações político-sociais, as crianças perseguem carreiras nobres. A
profissão desejada raramente é associada ao prazer de exercê-la, mas mencionada
como um instrumento para conseguir conforto e dinheiro para uma vida melhor.
“Poucas vezes o sucesso profissional é associado aos estudos, à escola. Esta é
vista apenas como um caminho que precisa ser percorrido para chegar lá”, analisa
Meserani.
Imagino também ser juiz para condenar
as pessoas culpadas. Eu também acho que serei advogado, para proteger os
inocentes e acusar os culpados ou defender as pessoas por justa causa em
empregos. Ou então eu imagino ser dono de lojas de carros, dono de caminhões,
ter muitos carros e caminhonetes, ter várias fazendas, compor músicas, ser dono
de supermercados, etc. (Adriano Augusto Couto Soares, 13 anos, Escola
Embaixador Gilberto Amado, Recife).
Há diferenças sensíveis entre o repertório
profissional das crianças de escolas públicas e particulares. Entre as
carreiras mais citadas, as de professor e secretária só contam com a
preferência das crianças de escolas estaduais ou municipais. Ao contrário dos
alunos de classes mais privilegiadas, aparece também na escola pública a
consciência da barreira social como entrave à realização do sonho profissional.
O meu sonho é estudar medicina só que
eu acho que eu estou sonhando muito alto apesar que sonhar não é proibido e não
paga sonhar... Eu queria muito ter roupas boas para vestir e ter muita coisa
gostosa para comer. Só que minha mãe é doméstica e ganha pouco meu pai é
pedreiro e também ganha pouco e o que ganham só dá para comer e às vezes uma
roupinha nova. (Clélia dos Santos Neiva, 15 anos, E. E. P. G. Presidente
Tancredo Neves, São Paulo).
Sensíveis à causa ecológica, as
crianças demonstram um particular fascínio – e temor – pelo buraco na camada de
ozônio. Uma a cada duas inquietações preservacionistas expressadas é a citação
do iminente perigo associado ao buraco de ozônio, uma espécie de bicho-papão da
nova geração. (...)
Mas também não é preciso se preocupar
tanto. O país – e o mundo de uma forma geral – vai melhorar. A julgar pelos
projetos de quem hoje se prepara para botar seus atrevidos narizinhos na vida,
podemos esperar para os meados do ano 2020 uma geração de famílias harmônicas,
cidadãos corretos, políticos honestos, profissionais competentes, cientistas
geniais, artistas inspirados, consumidores racionais e preservacionistas
conscientes. Se o futuro não for cor-de-rosa, não será por culpa deles. Os
adultos podem envelhecer tranquilos, pelo menos enquanto esta geração, realista
e ao mesmo tempo sonhadora, continuar a ser pessimista no pensamento – e adoravelmente
otimista na ação.
Revista VEJA. 20 jan.
1993.
Fonte: Livro – Encontro e Reencontro em Língua
Portuguesa – 8ª Série – Marilda Prates – Ed. Moderna, 2005 – p. 138/142.
Entendendo o texto:
01 – A abertura é
interessante. Percebemos um otimismo
marcante no resumo dos depoimentos colhidos. Por quê?
Porque o texto
procurou resumir a essência do anseio de boa parte da população brasileira, dos
jovens adolescentes, em particular, que acreditam num futuro melhor para todos
nós.
02 – Palavras como
corrupção, inflação, crise política, aspirações profissionais, sucesso, fama,
realização sentimental fazem parte do vocabulário desses jovens. E, com toda
honestidade e segurança, respondem às perguntas formuladas. Como percebemos isso?
Responda com frases e depoimentos do texto.
“Os textos refletem uma carga maciça que
marcou muito essas crianças.” / “É gritante a desesperança em relação ao
Brasil. A maioria situa o sucesso profissional fora do país. E quase todos
mencionam a miséria e a desigualdade social, associadas à incompetência e à
corrupção dos políticos”.
03 – Existe desesperança
desses jovens em relação ao Brasil? Novamente justifique através dos
depoimentos.
Existe. Tanto que
o texto afirma que a maioria situou o sucesso profissional fora do país.
04 – Observe os três
parágrafos apresentados: profissões desejadas, aspirações, preocupações.
Comente um a um.
Resposta pessoal
do aluno.
05 – Todos os jovens
respondem positivamente, com indícios de conhecer direitos e deveres?
Justifique.
Sim. A
justificativa para uma resposta positiva encontra-se, por exemplo, no seguinte
trecho: “Para sobreviver, eles estão desenvolvendo anseios éticos: trabalho,
fidelidade, dignidade, não-segregação.
06 – Algum depoimento o
chocou? Por quê?
Resposta pessoal
do aluno.
07 – Em muitos momentos
percebe-se a grande preocupação com a família. De que forma?
“A família aparece como o grupo social
mais importante, se não o único, dos pequenos redatores”. “Mostra a família
como um centro de afeto e muitas vezes de sacrifícios para mantê-los”.
08 – Dentro das profissões,
qual é a mais almejada? Você consegue entender a razão?
A profissão de
médico. Porque ganhar dinheiro vem antes da realização profissional.
09 – Nas aspirações, o que
mais almeja o jovem? Que razões teria ele?
Casar e ter
filhos. Na visão de uma jovem, conforme seu depoimento, as crianças trazem
alegria a uma casa.
10 – por que é grande a
preocupação com a ecologia e, em particular, com a camada de ozônio?
Provavelmente, por ser um assunto que
ocupa espaço na mídia e está intimamente ligada à qualidade de vida no futuro.
11 – Como o texto é
concluído? Você concorda com essa conclusão?
O texto é
concluído com a observação de que, no futuro, quando esses jovens estiverem no
comando, a situação será bem melhor, por conta dos ideais elevados da geração
que participou da pesquisa.
12 – Qual sua opinião sobre
essa pesquisa? Conclua, ponderando e justificando.
Resposta pessoal
do aluno.
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