Crônica: O gavião
Rubem Braga
Gente olhando para o céu: não é mais
disco voador.
Disco voador perdeu o cartaz com tanto
satélite beirando o sol e a lua. Olhamos todos para o céu em busca de algo mais
sensacional e comovente – o gavião malvado, que mata pombas.
O centro da cidade do Rio de Janeiro
retorna assim à contemplação de um drama bem antigo, e há o partido das pombas
e o partido do gavião. Os pombistas ou pombeiros (qualquer palavra é melhor que
“columbófilo”) querem matar o gavião. Os amigos deste dizem que ele não é
malvado tal; na verdade come a sua pombinha com a mesma inocência com que a
pomba come seu grão de milho.
Não tomarei partido; admiro a túrgida
inocência das pombas e também o lance magnífico em que o gavião se despenca
sobre uma delas. Comer pombas é, como diria Saint-Exupéry, “a verdade do
gavião”, mas matar um gavião no ar com um belo tiro pode também ser a verdade
do caçador.
A
verdade é que não posso mais falar de aves: dei meus passarinhos. No fim eram
apenas um casal de canários e um corrupião. Faço muitas viagens curtas e achei
que a empregada não cuidava deles bastante e bem na minha ausência; mesmo que
os cuidasse não lhes fazia companhia, pois mora longe. E o prazer de minhas
pequenas viagens era estragado com a lembrança do corrupião tristemente
trancado em uma sala o dia inteiro, sem ter com quem conversar, ele que é tão
animado e tagarela. Sinto saudades deles (da canarinha; na verdade, não: era
sem graça, e andava doente) e sem eles me sinto mais solteiro. Mas se, por
exemplo, desaba uma chuvarada súbita, ainda me assusto pensando em tirar os
bichos da varanda em que ficam nas noites quentes; quando me lembro que não
estão mais comigo, que não devo mais ter esse susto e essa aflição, então me
vem um certo alívio. Sou mais só, mas também mais livre.
Que o gavião mate a pomba e o homem
mate alegremente o gavião; ao homem, se não houver outro bicho que o mate, pode
lhe suceder que ele encontre seu gavião em outro homem. A vida é rapina. Perdi
os cantos do meu canário e os assovios de meu sofrer; meu coração está mais
triste, mas mais leve também.
(Rubem Braga. Ai de
ti, Copacabana, 1999)
Entendendo a crônica:
01 – O termo gavião, destacado em sua última
ocorrência no texto – ... pode lhe suceder que ele encontre seu gavião em outro homem. –, é
empregado com sentido:
a)
Próprio, equivalendo a inspiração.
b)
Próprio, equivalendo a conquistador.
c)
Figurado, equivalendo a ave de rapina.
d)
Figurado, equivalendo a alimento.
e)
Figurado, equivalendo a predador.
02 – O fato de o gavião
matar a pomba é visto, pelo autor, como um evento:
a)
Mórbido, o qual denuncia a natureza cruel dos
seres vivos.
b)
Espetacular, pois é algo raro de se encontrar
na natureza.
c)
Irrelevante, uma vez que não
interfere no cotidiano da cidade.
d)
Natural, que não é essencialmente positivo
nem negativo.
e)
Entediante, que não justifica alguma reflexão
filosófica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário